sexta-feira, 24 de março de 2023

José Fabiano (Muros de Trovas) 07

 

O. Henry (A Água-Furtada)

Mrs. Parker mostraria primeiramente os salões duplos. Você não ousaria interromper-lhe a descrição das vantagens desses aposentos e dos méritos do cavalheiro que os havia ocupado durante oito anos. Só depois de finda a descrição é que você conseguiria gaguejar a confissão de que não era médico nem dentista. A maneira de Mrs. Parker receber tal declaração era de sorte a fazer com que você nunca mais sentisse o mesmo afeto por seus pais, que haviam descurado de educá-lo numa das profissões que se coadunavam com os salões de Mrs. Parker.

Depois, você subiria um lance de escada para examinar o quarto dos fundos do segundo andar, a oito dólares. Convencido, pela atitude "segundo andar" de Mrs. Parker, de que o quarto valia bem os doze dólares que Mr. Toosenberry costumava pagar por ele até que saiu para ir tomar conta de uma plantação de laranjas do seu irmão, na Flórida, perto de Palm Beach, onde Mrs. Mcintyre sempre passava o inverno, e que compreendia a dupla sala de frente com banheiro privativo, você a custo balbuciaria que desejava coisa mais em conta ainda.

Se lograsse sobreviver ao desprezo de Mrs. Parker, seria então conduzido ao espaçoso quarto de Mr. Skidder, no terceiro andar. O quarto de Mr. Skidder não estava vago. Nele, esse senhor escrevia peças de teatro e fumava cigarros o dia todo. Porém, quantos estivessem à procura de quartos eram levados a esse aposento par admirar os lambrequins. Depois de cada visita, Mr. Skidder, com medo de um possível despejo, pagaria alguma coisa por conta do aluguel.

Depois — oh! depois —, se você ainda conseguisse manter-se de pé, e proclamasse roucamente a sua pobreza hedionda e culposa, enquanto apalpava com mão quente os três pegajosos dólares no bolso, nunca mais teria por cicerone Mrs. Parker. Berrando a palavra "Clara", ela lhe voltaria as costas e desceria as escadas. Então Clara, a empregada de cor, acompanhá-lo-ia pelos degraus atapetados do lance que levava ao quarto andar, e mostrar-lhe-ia a Água-Furtada, cubículo de exíguas dimensões que se erguia no centro do patamar. Flanqueavam-no, de ambos os lados, escuros quartinhos de despejo ou de guardados.

No cubículo havia uma cama de ferro, um lavatório e uma cadeira. Uma prateleira vazia de cômoda. As quatro paredes nuas pareciam fechar-se sobre quem ali entrasse, como os lados de um sarcófago. Você levaria a mão à garganta, daria um suspiro, olharia para cima como se estivesse num poço e respiraria de novo. Pelo vidro da trapeira, você poderia ver um quadrinho de infinito azul. 

— Dois dólares, patrão — diria Clara, em tom meio de desprezo, meio de piedade.

Certo dia, apareceu Miss Leeson à procura de um quarto. Trazia uma máquina de escrever, evidentemente feita para ser carregada por uma senhora mais robusta. Era uma mocinha miúda, com olhos e cabelos, que haviam continuado a crescer depois que ela deixara de fazê-lo, e que pareciam estar sempre a dizer: — "Ora essa! Por que não nos acompanhou?"

Mrs. Parker mostrou à moça os salões duplos.

— Neste armário, — informou —, pode-se guardar um esqueleto, ou anestésico, ou ainda carvão...

— Mas não sou médica, nem dentista — replicou Miss Leeson, com um arrepio.

Mrs. Parker lançou-lhe o olhar incrédulo, penalizado, insolente e gélido, que reservava para os que não logravam diplomar-se médicos ou dentistas, e conduziu-a ao segundo andar. 

— Oito dólares? — exclamou Miss Leeson. — Deus do céu! Não sou milionária. Sou apenas uma pobre moça que trabalha. Mostre-me algo mais para cima e de preço mais baixo.

Ao lhe baterem à porta, Mr. Skidder deu um pulo, espalhando tocos de cigarros pelo chão.

— Desculpe-me, Mr. Skidder — disse Mrs. Parker, sorrindo diabolicamente ante a palidez do inquilino. — Não sabia que estava em casa. Convidei esta senhora para ver seus lambrequins!

— São lindos demais para terem serventia — atalhou Miss Leeson, sorrindo exatamente como sorriem os anjos.

Depois de as duas se terem retirado, Mr. Skidder ocupou-se ativamente em substituir a heroína alta e de cabelos pretos de sua última (inédita) peça, por outra heroína miúda, maliciosa, de feições vivas e cabelos fartos e sedosos.

— Anna Held ficará louca pelo papel — munnurou, apoiando os pés contra os lambrequins e desaparecendo numa nuvem de fumaça, qual um aéreo molusco.

Pouco depois, o toque de alarme — "Clara!" — proclamou ao mundo o estado financeiro de Miss Leeson. Um negro duende agarrou a moça e, subindo a escada estígia, introduziu-a numa catacumba com uma nesga de luz ao alto e murmurou as palavras cabalísticas e ameaçadoras.

— Dois dólares! 

— Fico com ele! — suspirou Miss Leeson, deixando-se cair sobre a cama de ferro rangedora.

Todos os dias, Miss Leeson saía para trabalhar, À noite, trazia para casa folhas manuscritas e as copiava na máquina de escrever. Quando não tinha serviço à noite, sentava-se nos degraus da íngreme escada com os outros pensionistas. Miss Leeson não devia ter sido destinada a uma água-furtada quando lhe traçaram o caráter no dia da sua criação. Era alegre e cheia de fantasias delicadas e caprichosas. Certa vez, permitiu que Mr. Skidder lhe fizesse a leitura de três atos da sua grande comédia (inédita), Não é Criança ou O Herdeiro do Metropolitano.

Os inquilinos masculinos se alegravam sempre que Miss Leeson tinha tempo para sentar-se nos degraus por uma ou duas horas. Porém, Miss Longnecker, a loura alta que ensinava numa escola pública e dizia "Oh, com efeito!" a tudo quanto ouvia, sentava-se no último degrau e torcia o nariz para ela. E Miss Dorn, que todos os domingos ia a Coney Island para exercitar a pontaria nos patinhos do tiro ao alvo, sentava-se no degrau debaixo e torcia-lhe igualmente o nariz. Miss Leeson sentava-se no degrau do meio e os homens imediatamente se agrupavam à sua volta.

Especialmente Mr. Skidder, que já a imaginava como heroína de um drama particular, romântico (não declarado) da vida real. E especialmente Mr. Hoover, que tinha quarenta e cinco anos, era gordo, afogueado e tolo. E especialmente o mui jovem Mr. Evans, que simulava uma tosse cava para induzir a moça a pedir-lhe que deixasse de fumar. Os rapazes a elegeram "a mais alegre e a mais espirituosa de todas", mas as fungadas do degrau de cima e do degrau debaixo eram implacáveis.

Peço-vos licença para interromper o drama enquanto o coro avança para a ribalta e deixa cair uma lágrima lúgubre sobre a obesidade de Mr. Hoover. Afinal as flautas para a tragédia da banha, o flagelo do volume, a calamidade da corpulência. Se fosse a julgamento, Falstaff renderia mais romance por tonelada do que as raquíticas costelas de Romeu por onça.

Um apaixonado pode suspirar, mas não deve bufar. Os gordos são reenviados à corte de Momo. Em vão bate o mais fiel dos corações acima de uma cintura de 1,30 m de diâmetro. Eia, avante, Hoover! Hoover quarentão, afogueado e tolo, poderá raptar Helena; Hoover, quarentão afogueado, tolo, e gordo, é caso perdido. Nunca houve oportunidade para você, Hoover.

Certa tarde de verão, estando os inquilinos de Mrs. Parker acomodados na escada, Miss Leeson levantou os olhos para o céu e exclamou com uma risadinha alegre:

— Ei! Lá está Billy Jackson! Vejo-o perfeitamente daqui.

Todos olharam para cima — alguns para as janelas dos arranha-céus, outros à procura de uma nave aérea pilotada por Jackson.

— É aquela estrela — explicou Miss Leeson, apontando-a com o seu dedinho. — Não a grande que pisca; a azul, fixa, que lhe fica ao lado. Vejo-a todas as noites pela minha trapeira. Apelidei-a de Billy Jackson.

— Oh! Com efeito! — disse Miss Longnecker. — Não sabia que era astrônoma, Miss Leeson.

— Sou, sim. — replicou a pequena contempladora de estrelas. — Sei tão bem quanto qualquer astrônomo que estilo de mangas estará na moda no outono próximo cm Marte.

— Oh! Com efeito! — retrucou Miss Longnecker. — A estrela a que se refere é Gama, da Constelação de Cassiopéia. É quase de segunda grandeza, e sua passagem pelo meridiano é...

— Ora! — interrompeu o mui jovem Mr. Evans. — Acho Billy Jackson um nome muito mais apropriado.

— Eu também! — asseverou Mr. Hoover, bufando alto em desafio a Miss Longnecker. — Penso que Miss Leeson tem tanto direito de dar nome a estrelas quanto qualquer desses velhos astrólogos.

— Oh! Com efeito! — exclamou Miss Longnecker.

— Será que é uma estrela cadente? — perguntou Miss Dorn. — No domingo passado, acertei nove patos e um coelho, de dez, numa barraca de Coney.

— Daqui não se pode vê-la muito bem. — disse Miss Leeson. — Vocês deviam observá-la de meu quarto. Como sabem, avistam-se estrelas mesmo durante o dia, do fundo de um poço. À noite, meu quarto é como uma galeria de mina de carvão, e faz Billy Jackson parecer um grande alfinete de diamante com que a noite prende seu quimono.

Veio uma época em que Miss Leeson não mais trouxe formidáveis calhamaços para copiar. E quando saía de manhã cedo, em vez de ir trabalhar, andava de escritório em escritório, o coração confrangido ante as frias recusas que lhe eram transmitidas por insolentes contínuos. Isso continuou.

Certa tarde, ela subiu com dificuldade a escada de Mrs. Parker, à hora em que sempre costumava voltar do seu jantar no restaurante. Mas não jantara.

Ao passar pelo vestíbulo, encontrou Mr. Hoover que, aproveitando-se da oportunidade, pediu a moça em casamento. A corpulência de Mr. Hoover oprimia Miss Leeson como uma avalancha. Ela recuou e agarrou-se à balaustrada. Mr. Hoover procurou-lhe a mão; ela a ergueu e deu-lhe uma bofetada, com pouca força. Amparando-se ao corrimão, Miss Leeson pôs-se a subir a escada, degrau por degrau. Passou pela porta de Mr. Skidder, que estava justamente anotando, com tinta vermelha, uma marcação para Myrtle Delorme (Miss Leeson) na comédia (não aceita): "fazer uma pirueta através do palco, de L até junto do Conde". Arrastando-se pela escada atapetada, ela finalmente chegou à porta da água-furtada, que abriu.

Estava muito fraca para acender a lâmpada ou despir-se. Deixou-se cair sobre o leito de ferro; seu corpo frágil mal pesou sobre as molas gastas. E nesse quarto do Érebo vagarosamente descerrou as pálpebras cansadas e sorriu.

Através da trapeira, Billy Jackson brilhava sobre ela, calma, brilhante e fiel. Não havia nada à sua volta: ela estava mergulhada num poço de escuridão, com apenas aquele quadrado de luz pálida a emoldurar a estrela a que com tanto capricho e, oh!, com tanta impropriedade dera nome. Miss Longneker devia ter razão: era Gama, da Constelação de Cassiopéia, e não Billy Jackson. No entanto, ela não podia admitir que fosse Gama. 

Deitada de costas, experimentou por duas vezes erguer o braço. Na terceira tentativa, logrou levar dois dedos aos lábios e mandou um beijo, de dentro do poço negro, a Billy Jackson. Logo caiu-lhe inerte o braço.

— Adeus, Billy. — murmurou, fracamente. — Estás a milhares de milhas de distância, e não vais dar nem uma piscadela, Mas ficaste sempre aí, onde eu podia ver-te, quando não havia senão escuridão para se ver, não é mesmo?... Milhares de milhas... Adeus, Billy Jackson.

Clara, a empregada de cor, encontrando a porta ainda fechada às 10 horas do dia seguinte, arrombou-a. Vinagre, batidas no pulso, penas queimadas, nada surtiu efeito; alguém correu ao telefone para chamar uma ambulância.

No devido tempo, depois de muita sirene, a ambulância encostou à porta dos fundos. O jovem médico, no seu avental de linho branco, disposto, ativo, confiante, a face entre jovial e séria, subiu saltitante os degraus da entrada.

— Chamado de ambulância para o n.° 49 — disse, secamente. — Que é que há?

— Oh, sim, doutor — suspirou Mrs. Parker, como se o embaraço que o incidente lhe causava fosse maior do que o incidente em si. — Não posso atinar com o que houve com ela. Nada do que tentamos fê-la voltar a si. É uma moça, uma certa Miss Elsie... isso mesmo, Miss Elsie Leeson. Jamais em minha casa...

— Que quarto? — berrou o médico, com uma voz terrível, até então desconhecida para Mrs. Parker.

— A água-furtada. É...

Evidentemente o médico da ambulância estava familiarizado com a localização de águas-furtadas. Subiu as escadas, de quatro em quatro degraus. Mrs. Parker seguiu-o vagarosamente, como o exigia sua dignidade.

No primeiro patamar, ela deu com o médico já de volta, com a pequena astrônoma nos braços. O rapaz deteve-se e pôs em ação, sem muito ruído, o escalpelo de sua língua. Gradualmente, Mrs. Parker foi-se encolhendo, como um vestido que escorregasse de um prego. Mesmo depois,
ficaram-lhe rugas na mente e no corpo. Algumas vezes, seus inquilinos curiosos indagavam-lhe o que lhe dissera o médico.

— Não se incomodem — respondia ela. — Se eu for perdoada por ter ouvido o que ouvi, ficarei satisfeita.

O médico da ambulância, com o seu fardo, atravessou a matilha de curiosos reunida pelo som da sirene. Mesmo estes se afastaram pela calçada, envergonhados, pois o rosto do jovem médico era o de quem trouxesse consigo a própria morte.

Repararam que o médico não depositou na cama adrede preparada na ambulância o fardo que carregava. Tudo o que disse foi:

— Corra como um demônio, Wilson!

Eis aí tudo. Será uma história? No jornal do dia seguinte, vi, nas notícias diversas, um pequeno parágrafo cuja última sentença talvez ajude você (como me ajudou) a ligar entre si os incidentes.

O parágrafo contava a chegada ao Hospital Bellevue de uma mocinha que fora removida do n. 49 da rua..., e que sofria de debilidade por fome.

E concluía com estas palavras;

"O Dr. William Jackson, médico da ambulância que atendeu o caso, diz que a paciente se salvará."

Fonte:
Disponível em domínio público.
O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909.

Dorothy Jansson Moretti (Folhas Esparsas) 3

RIO TIETÊ

Ele era belo ao tempo das bandeiras,
seguindo a rota de uma a outra ponta,
esboçando o progresso além fronteiras,
correndo livre, sem sofrer afrontas.

Ele era belo ao longo dos povoados,
atravessando-os manso e camarada,
peixes à farta e espaços namorados
aos mergulhos saudáveis da moçada.

Hoje percorre a caminhada, triste,
e semi-morto, embora, ainda resiste,
e à espera de um milagre não se cansa.

O vento sopra e a encardida espuma
pousando às margens, lúgubre se agruma
e roga aos céus a luz de uma esperança.
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SAGA DE SOROCABA

Ao toque do cincerro da madrinha,
as mulas seguem, mansas, resignadas...
Vêm lá do sul longínquo, e extenuadas,
atingem os cercãos da vilazinha.

Há tantas, tantas décadas passadas,
cresce o fruto de humilde sementinha,
a Manchester que esplêndida caminha
mas não renega a poeira das estradas.

Ao lado de edifícios imponentes,
resistem casarões remanescentes,
herança que do tempo menoscaba.

E a estátua do tropeiro audaz, altivo,
é o marco apaixonante e persuasivo
da saga que deu vida à Sorocaba.
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SOL

Hoje estás escondido, olhando para fora,
por entre a névoa densa em vão eu te procuro.
Que falta fazes quando, ao se esboçar a aurora,
vejo o céu carrancudo e tão cinzento e escuro!

És tu que trazes vida, a ausência eu te censuro.
Sem ti sofre a semente a emergir para a flora,
falta a luz dos teus raios ao trigo maduro,
esmaecem os tons quando te vais embora.

De repente, através de uma nesga apareces...
Com que força vital a alma da gente aqueces
e afastas tão depressa as nuvens de tristeza!

És dono do universo, a nada te comparas.
E ao sentir teu calor reconfortando as searas,
feliz volta a sorrir de novo a Natureza.
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TROMBADINHA

Ontem, eu, pela vez primeira em minha vida,
também fui atacada... e por um trombadinha .
Levei um susto enorme, estava distraída,
só vi caindo ao chão medalha e correntinha.

“Maldito” - veio o meu protesto a toda brida;
rompeu seco e brutal, tirando-me da linha;
e o garoto sumiu entre a turba aturdida
que logo se acercava e formava rodinha.

Pouco tempo depois, relembrando o incidente,
meu coração batia triste e penitente
por chamar de maldito um pobre menininho.

Maldita é a sociedade horrível que formamos,
que gera o trombadinha infausto que execramos
e faz de uma criança esse infeliz monstrinho!
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VERÃO

Volta o verão e vai-se acomodando...
Os dias se apresentam desiguais,
o calor e o aguaceiro se alternando
ao sabor dos caprichos tropicais.

Sol, novamente, tudo estorricando,
as taperás retornando aos beirais...
Quase se enxerga o ar tremelicando
e a brisa, em greve, já nem sopra mais.

Lá no jardim, as flores, ressentidas,
pendem das hastes, murchas, abatidas...
Um gato se espreguiça no canteiro.

Não me afeta o calor, se me domina,
fecho os olhos e finjo que é piscina
o meu gostoso banho de chuveiro.

Fonte:
Enviado pela poetisa.
Dorothy Jansson Moretti. Folhas esparsas: sonetos. Itu/SP: Ottoni, 2006.

Aparecido Raimundo de Souza (171)

 

ENQUANTO ESPERAVA pela minha simpática secretária Carina, no saguão do Aeroporto de Viracopos, em Campinas, onde voaríamos para Nova York, sentado praticamente na cara do portão de embarque dos voos internacionais, um sujeito tentou me contar uma historinha triste. Percebi que ele trazia no rosto corado (não de vergonha, mas pela falta de destreza em arranjar uma desculpa que convencesse), uma cronologia negativa de outras pessoas anteriormente abordadas. 

Deve ter imaginado, ao olhar para mim, que eu era um desses idiotas improvidentes, com o rabo entre as pernas, cheio de medos, fácil de ser levado no bico, e que se afogava tropeçando os pés em pouca água. Como me considero macaco velho, e em razão disso não meto a mão em cumbuca, ando longe, portanto, de cair como um patinho nesses tipos de lorotas baratas expostas às voracidades construídas em botecos de esquina, diante da aproximação do cabra, fiquei, pois, em completo estado de alerta. 

Em sentido idêntico, estou careca de saber que nos ajuntamentos de grandes terminais há sempre algum safardana contador de rodelas, procurando tirar proveito da ingenuidade alheia, notadamente dos sem malícia e dos puros de espírito, e, principalmente, fazendo valer a degenerescência de caráter, muito comum em quem não tem respeito pelos seus semelhantes. Assim, quando a criatura chegou com um sorriso maroto à mostra dos dentes bem tratados, já estava em guarda e tratei de me livrar rapidinho do estouvado, sem magoar a sua coragem, usando de toda elegância possível que me ia na alma.

Nos minutos que ficou ali na minha beira, jogando conversa fora tentando criar cenários ficcionais e se passar pelo bom moço, descobri que o meu interlocutor havia saído do interior de Belo Horizonte para trabalhar em São Paulo. O empregador (depois de ele ter laborado por trinta dias ininterruptos), não pagou ninguém, deu calote e fugiu com o dinheiro deixando todos os funcionários a verem ossos onde sequer existiam pedaços apodrecidos de “pecanhas” (carnes de galinhas sem unhas).  Esses operários, como ele, chegavam a mais de duzentos. Corroborando a sua tese, exibiu um bilhete da Azul (companhia aérea datado de quatro meses atrás), referente à sua vinda com a respectiva taxa de embarque coletada no aeródromo da Pampulha. 

Até aí, tudo bem. Casos assim acontecem. Pode, inclusive, suceder com qualquer um de nós, meros seres mortais. Para pegar a mentira do dito cujo, me fiz solidário à sua desdita. Ato contínuo me propus a ir com o prezado até o balcão de uma das companhias que cobrem o trecho e, no meu cartão de crédito, adquirir a passagem de volta para as Minas Gerais. Para meu espanto e incredulidade, aconteceu exatamente o que eu não esperava: o jovem recusou a oferta. E o fez veementemente!

— “Oxente – disse a ele meio que intrigado. – O amigo não quer regressar para a sua terra? Estou lhe pagando o bilhete sem pedir nada em troca. Aceite como um presente de coração!”.

Qual o quê! O engraçadinho tratou de sair da minha aba sem se beneficiar da alvissareira generosidade que lhe oferecia. Sumiu do pedaço e, de repente, se tornou invisível, mais difícil de pôr os olhos em cima que mulher virgem em terra de tarado. Graças à Deus, estava certo. Senti que ficou pairando no ar, no curto interregno de nosso bater de línguas, uma cansativa transição frustrada entre a verdade e a mentira em rejeitar a minha oferenda, e, por derradeiro, se eximir sem mais detenças, da auspiciosa ajuda. 

Valeu, a bem da verdade. Tirei um peso da consciência. Penso sempre o seguinte: se não estendo à mão à caridade dos necessitados, me condenaria a depois. Poxa!... Poderia ter concordado...  se ofereço ajuda, como de fato me dispus, de coração aberto, o que aconteceu? Me deparei com uma surpresa desagradável. A repugnante esquivança de uma negação fria e repulsiva. Nessa hora, a gente se sente impotente, fraco, débil, como se passado para trás. Ele não queria a passagem, deixou isso bem claro. Almejava o dinheiro vivo. 

Fatos como esses, me levam a analisar o impasse, como se espiasse para quadros de um mesmo pintor com molduras diferentes: 1) o cidadão pretendia, realmente me enlear numa garabulha (embrulhada) maquiavélica e, ao final, passar a mão no meu rico e suado dinheirinho ou, 2): não viera de onde havia dito coisíssima nenhuma e só almejava inteirar a grana, não para uma passagem de regresso à terra de origem, obviamente com a finalidade preestabelecida de mergulhar no submundo das drogas. 

Ou coisa pior, vai se saber, agora, nessa altura do campeonato. Embora estivesse vestido com certo apuro, acompanhado de uma porção de malas à tiracolo, percebi nessa mescla de tantas palavras ardilosas que o seu objetivo não se prendia a rever seu velho e abençoado lar, sua casa, seus pares. Ao contrário, tinha por pretensão me engambelar, como certamente tentaria (ou tentara) fazer com outros, antes de me acercar, numa patranha mal ajambrada (desajeitada) com finalidades inverídicas e escusas. Nesse escopo meio confuso, pela falta de lisura das pessoas, até pelas mentiras, falta de decoro e compostura, acaba o justo pagando pelo pecador.  

Ora, se a intenção do cidadão se baseava, mesmo, em voltar nos passos que o trouxeram à um fiasco, por que recusou a minha oferta ao seu pedido de socorro? Diante dessa imprevista e inesperada rejeição, restou patente que ele não estava com nenhuma vontade de embarcar para Belo Horizonte. Recepcionava, por certo, dar o surrado “golpe da volta para casa” e, pior, repetindo, tricotando por conhecidos fios de uma malha de linhas retorcidas que não o levaria à lugar nenhum, a não ser a desgastante indução maligna de algum outro futuro imprudente desavisado a rodopiar feito pião bêbado em “esparrelado” (logrado) erro. 

Não só ao juízo falso, igualmente ao desvio do caminho reto, sem mencionar a fraude, embutida no artigo 171 do Novo Código Penal, tendo como seslóio (*) à conversa mole que não convenceria nem uma dessas nobres velhinhas que não pensam duas vezes antes de abrirem as bolsas e doarem os poucos tostões disponíveis, pensando nas regalias do “emprestando aos pobres, se tornarão virtuosas aos olhos do Criador”. Apesar desse entrave, eis que a Carina apontou lá longe, cheia de malas e sacolas. A sua chegada, como sempre, despertando em mim, il bimbo nel vecchio (a criança no velho).   
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Seslóio – Não confundir com soslaio. Seslóio variante de referência, ou alusão.   

Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.

terça-feira, 21 de março de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 2

 

Cecy Barbosa Campos (Recomeço)

Maura pensou, com alívio, que o mais difícil já havia passado. Aqueles longos anos de um casamento convencional, frio e sem entusiasmo, que se limitava a um educado "Bom dia", a cada manhã, num café com torradas, que entalava na garganta, sufocada pelos longos silêncios que se alternavam com frases corriqueiras e ocasionais.

Não havia o que dizer. O que acontecera com eles. Maura não conseguia entender. Sem brigas, sem rancor, sem discussões, só aquele afastamento inexplicável, a falta de carinho, a apatia total. Até o sexo acabara, se fora distanciando, acontecendo às vezes, pela insistência de Maura, que sentindo na mecanização do ato, o cumprimento de uma obrigação, acabou desistindo. Passou a sonhar apenas, com a volta de um momento em que o marido lhe tomasse o rosto entre as mãos, suavemente, e murmurasse: Eu só queria te dizer que te amo muito, sim? — numa declaração inesperada, que poderia acontecer sem hora marcada e que seria seguida por um terno abraço, ao qual Maura corresponderia, cheia de emoção.

Se houvesse outra, teria sido mais fácil de entender. No princípio, fez perguntas e cobranças, dava indiretas, mostrava-se carente e insegura. O marido não parecia incomodar-se e nem mesmo se aborrecer com os questionamentos da esposa. Na verdade, à medida que o tempo passava, deixou até mesmo de responder, e Maura chegou à conclusão de que, por ele, não teria nenhum esclarecimento. 

Apelou, então, para um detetive particular, indicado por uma amiga que, suspeitando do marido, havia comprovado a eficiente discrição do serviço. Este era um quesito fundamental, pois Maura sabia que, caso se descobrisse vigiado, o marido se sentiria alvo de uma ofensa mortal.

As investigações não levaram a nenhum fato desabonador, a nada que pudesse comprometer a reputação de Roberto como um marido fiel, mas o espaço entre os dois aumentava, cada vez mais, num constrangimento insuportável que a presença de um causava no outro.

Finalmente, Maura, sem premeditar, pôs fim á situação. No café da manhã, gritou desvairada:

— Chega! É impossível continuar assim! Não podemos mais viver este casamento de aparências!

Aquele rompante imprevisível, que não fora precedido por nenhuma conversa ou acontecimento, não causou qualquer reação em Roberto. Ele permaneceu impassível, sem manifestar espanto ou susto. Simplesmente, concorda.

— Está bem. Posso contratar um advogado que cuide dos trâmites legais, enquanto você pode ir escolhendo os objetos de sua preferência e separando nossos livros, discos e objetos pessoais...

Agora, que estes detalhes materiais e prosaicos já estavam resolvidos, Maura sentia-se cansada, muito cansada. Olhando-se ao espelho, observou que aqueles anos de agonia e dúvida haviam sulcado seu rosto e escrito várias linhas.

— Sem dúvida, falou consigo mesma, enquanto puxava a pele em direção às orelhas - não é nada tão grave que uma boa plástica não possa resolver…

Fonte:
Enviado pela autora.
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.

Vidal Idony Stockler (Trovas Avulsas) 2


A cabana na colina
o braseiro pelo chão,
a jorrar águas da mina
lá nas plagas do sertão.
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A criança, santo ser,
feitura da Divindade;
é planta do bem-querer
de suave felicidade.
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Alameda na cidade
é caminho no sertão;
amor é felicidade
que nasce no coração.
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A morada da Isabela,
um ranchinho no sertão
alumia à luz de vela
e também de lampião.
= = = = = = = = = 

A sertaneja faceira,
moça bela, tez morena,
supera a flor da roseira,
simples, graciosa, serena.
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A verde e perene erveira
todo ano faz doação,
a sertaneja faceira
corre a cuia mão por mão.
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Choupana de pedra e terra
dominando a natureza
lá bem no cume da serra,
panorama de beleza!
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Chovendo lá no sertão,
relâmpagos falseando,
pessoas de pé no chão
nos caminhos se molhando.
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Criança é rumo, caminho,
no seu andar de verdade
requer da mãe o carinho
que lhe traz felicidade.
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E canta o galo-da-serra
na colina do sertão,
seu canto não é de guerra
mas sim, de satisfação.
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E na grandeza do amor
a criança sorridente,
é a raiz, também a flor,
a paz e luz transparente.
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Festa em noites de luares
bem ao redor da fogueira
e com cantos populares,
bom violão e moça faceira.
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Lá nas matas do sertão
sempre solto, destemido
andava de pé no chão
no caminho percorrido.
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Linda moça sertaneja
sabe de sua beleza,
muito carinho deseja,
quer agrado de duquesa...
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Lindos pontos faiscantes
nas noites do meu sertão,
belezas exuberantes
trazendo grata emoção.
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Na colina, na fazenda,
onde a lua beija o chão,
a moçoila tece renda
cantando suave canção.
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Na paz frutifica o amor,
a pureza, fé, esperança,
simbolizando uma flor
no sorriso da criança.
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Nas belezas do sertão
passarinhos a cantar,
à noite, fogo no chão,
brisa e clarão do luar!
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No cume da elevação,
os casebres pequeninos;
nas plagas do meu sertão
sol e lua cantam hinos.
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No sertão, tranquilidade...
seguindo pelos caminhos
eu sinto felicidade
escutando os passarinhos.
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O boi de carro ou carreiro,
animal de estimação,
mais trabalha o dia inteiro
nas lides lá do sertão.
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O lindo jardim florido,
é bailado de criança,
desperta nosso sentido
para bem-aventurança.
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Os alegres sertanejos
tocando viola ou violão,
cantam todos os desejos
vindos com a inspiração.
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O viver lá no sertão
alimentos naturais;
crianças de pés no chão
e águas dos mananciais.
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Também gosto do palhaço
mas não pela palhaçada
e sim pelo estardalhaço
e riso da criançada.
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Fonte:
Vidal Idony Stockler. Trovas. Curitiba: Juruá, 2001.

Carolina Ramos (Folclore Brasileiro) Amazonas

A Amazônia, mercê dos encantos oferecidos pela pujança de sua flora e fauna,  atrai não só os que a procuram por interesse turístico, mas também desperta e cada vez mais incrementa a cobiça mundial de olhos voltados para as riquezas entesouradas no seu solo.

E é lá que o folclore avulta a correr livre como se, "num rasgo de benevolência da Natureza, a Amazônia inteira tivesse sido escolhida para perfeito habitat e abrigo de mitos, lendas e de personagens os mais diversos, tais como Curupiras, Caiporas, Sacis, Saçurás, Uiaras e demais entidades que se acoitam naquele mundo verde que pulsa, irrigado pela pujança dos rios ainda não rendidos à poluição ambiental."

Várias comemorações ligadas ao folclore agitam anualmente as cidades dos amazonenses, como o Festival da Canção Itacoatiara, Festival de Ciranda de Manacapuru e o famoso Festival Folclórico de Parintins. Este município, durante os três dias que encerram o mês de junho, ferve de entusiasmo acompanhando as disputas entre o Boi Caprichoso, que defende as cores Azul e Branca, e o Boi Garantido, que "briga" pela cor Vermelha. Nessa competição,
mitos e lendas indígenas são exploradas nas letras das músicas que incluem rituais indígenas e regionais e levam a plateia ao delírio.

Várias Lendas enfeitam as páginas da tradicional cultura amazonense. Impossível não começar pela maior delas que é a do Eldorado. Sobre essa lenda, temos em mãos o livro "A fascinação dourada", de autoria de J. Muniz, do IHG de Santos, o nosso "Marechal do Samba", como será explicado no momento oportuno. Na obra citada, J. Muniz inclui, à guisa de prefácio, um texto esclarecedor de Manoelito Teixeira Lima, onde se lê: "O mitônimo "Eldorado" significa lugar de ouro. Litré o vê como um pretendido país que teria sido descoberto por um tenente de Pizarro, na América do Sul".

Teixeira Lima também cita J. O. de Meira Penna, que explica: - "Eldorado inscreveu-se entre os três arquétipos míticos da ficção brasileira, a saber: Visão do Paraíso, Inferno Verde e Eldorado".

É evidente que a história do Eldorado faz parte da história do ouro do Brasil sempre impregnada de lirismo, de imaginação e que se estendeu por todo o mundo, em particular pela península ibérica, estimulando tanto a curiosidade como também a gula dos interesses, através dos tempos, o que, por sua vez, contribuiu bastante para o desenvolvimento da região amazônica.

J. Muniz relata a ousada "passagem dos fenícios e hebreus pela monumental Amazônia, digna de admiração e que continua envolta por muita magia, escondendo segredos e mistérios que aguçam a curiosidade do homem moderno". - Termina a introdução de sua obra, citando palavras do escritor Amorim Neto: -"A Amazônia será eternamente bruta e indomável... Inteligência alguma descreverá a sua beleza e rebeldia"... E exalta, ao terminar: - "Dentro das tuas selvas sombrias guardarás, por toda a vida, os tesouros da tua riqueza fabulosa e os mistérios das tuas lendas fascinantes".

A Lenda do Guaraná

Esta lenda tem por base um casal de índios que não tinha filhos, embora muito desejasse ter... pelo menos um. E isto era motivo de grande sofrimento.

O deus Tupã, reconhecendo o merecimento do jovem casal, acabou por satisfazer-lhe esse desejo. 

O menino chegado foi recebido com muita alegria pela tribo inteira. Crescia cercado de muito afeto e carinho, o que acabou por enciumar Jurupari, deus da escuridão e do mal, que, envenenado pela inveja, tramou-lhe a morte.

Numa tarde, a criança embrenhada na floresta procurava frutos. Jurupari, sob o aspecto de uma cobra venenosa, consumou sua vingança! A triste notícia espalhou-se rapidamente pela tribo e uma tempestade violenta, precedida por trovoada e relâmpagos, apavorou toda a aldeia.

Para a desesperada mãe do menino morto, aqueles trovões soaram como se fossem "mensagem expressa de Tupã, a aconselhá-la a "plantar" os olhos da criança, no local em que ela fora morta - o que daria origem a uma viçosa planta, cujos frutos seriam sempre muito doces".

O conselho foi seguido. E, naquele lugar onde os olhinhos do menino foram "plantados", nasceu o guaraná, cujas sementes negras, cercadas por uma película branca, muito se parecem com olhos humanos.

A Lenda da Uiara ou lara 

A riqueza das lendas da Amazônia! Talvez a mais conhecida e uma das mais belas seja a Lenda da Iara, ou Uiara, entidade meio mulher, meio peixe, sempre sentada à beira d'água, a pentear seus cabelos verdes como algas, enquanto o fascínio da sua beleza leva para o fundo do lago os incautos apaixonados atraídos pela magia do seu mavioso "canto de sereia".

Contam alguns que os cabelos da Iara não eram verdes, e, sim, negros, e que ela era, a princípio, não uma sereia, mas uma jovem índia, que vivia com o pai e dois irmãos. Estes, enciumados pela atenção que o pai dedicava à irmã, decidiram-se a eliminá-la. Ao perceber o perigo, a Iara, tentando defender-se, acabou por matá-los. 

Temerosa da ira do pai, fugiu, então, para a floresta, chegando exausta à beira do rio Solimões, sendo adotada pelos peixes e acabando por transformar-se naquela Sereia que sobe à superfície das águas e atrai jovens incautos com sua voz melodiosa. Sentada à margem do rio, ela penteia os longos cabelos verdes (ou negros), escondendo sempre a cauda de peixe, que é mantida mergulhada nas águas.

É assim que a Iara consegue arrastar para o fundo do lago (lagoa ou rio), os jovens ingênuos que se deixam enfeitiçar pela maviosidade da sua voz - ao concretizar sua vingança de punir os homens, que ela diretamente implica no fato que a levou a ser transformada em Sereia.

Origem do Rio Amazonas (lenda)

A criação do Rio Amazonas tem várias explicações, dentro do imaginário. Segundo uma delas, o imenso rio foi criado pelas lágrimas derramadas pela Lua, ao ver-se separada do seu amado, o Sol, sabendo-se condenada a brilhar apenas à noite, enquanto ele somente durante o dia poderia aparecer. Deste modo, aos dois enamorados, Cuara e Jassy (Sol e Lua), por determinação do deus Tupã, jamais seria permitido um encontro, uma vez que a ardência daquele amor, tão grande e impetuoso, poderia pôr em risco o equilíbrio do próprio mundo!

Boiuna de Prata

A Boiuna de Prata, diz a lenda, é o reflexo da própria Lua, "que chega até a Terra, a afundar navios, a fascinar e desencaminhar meninas, sob a forma de uma grande cobra de prata (o luar), que se esgueira coleante por entre a mata".

"Atraídas pelo fascínio do luar, ou seja, pela Boiuna de Prata, as meninas incautas acabam por ter sua felicidade roubada". Os olhos dessa cobra "iluminam, como dois grandes faróis". 

Ao arremate do assunto que envolve o riquíssimo folclore amazonense, impossível esquecer Macunaíma, esse "herói sem nenhum caráter", "esculpido em letras" pelo paulistano Mário de Andrade, que, no romance, lançado em 1928, usa como protagonista essa mesma figura vivificada, anos antes, por Theodor Koch-Grünberg, etnologista alemão, cujas pesquisas sobre os indígenas, lendas e mitos amazônicos, continuamente exploradas pelos estudiosos, teriam dado base ao trabalho de Mário de Andrade, o que resultou numa acusação de plágio. Entretanto, aquele Macunaíma, ativado e elaborado pelo escritor paulistano, acabou por ampliar e fazer crescer bastante o interesse pelo folclore amazonense, acabando por tomar-se protagonista de um filme. Nesta obra, escrita com bastante humor e linguagem peculiar, Mário de Andrade acentua a falta de caráter dessa personagem clonada do tal "jeitinho brasileiro", feito da contumaz esperteza e malandragem, que esbanja e que fingimos tolerar, embora nos desabone aos olhos do mundo.

Conduzido por Mário de Andrade, Macunaíma tripudia dentro do folclore nacional, imiscuindo-se em suas lendas, mitos e crendices. O sucesso da obra, porém, embora tropece em algumas críticas, acaba por trazer de retorno ao autor a prestigiosa conceituação de ter escrito "uma das mais importantes obras modernistas, numa época em que ele, Mário de Andrade, ferrenho defensor da Semana de Arte Moderna de 22, procurava, por todos os meios, "ridicularizar a maneira de expressão usada pelo Romantismo".

Outro nome, ligado ao acervo folclórico do Amazonas, é o do compositor Waldemar Henrique, que, embora nascido no Pará, inspirou-se bastante no folclore amazonense ao compor grande parte do seu alentado acervo musical, a exemplo das músicas: - Foi boto, Sinhá!, Cobra grande, Coco peneruê, Uirapuru, Curupira, e outras mais.

Fonte:
Enviado pela autora.
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: 
publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.

segunda-feira, 20 de março de 2023

Daniel Maurício (Poética) 49

 

George Abrão (E por falar em amizade...)

Um dos mais importantes fatores que determinam uma amizade verdadeira é a reciprocidade. Sem ela, sem a troca de apoio, confiança e querer bem, ela transforma-se em simples conhecimento como tantos outros. Amigo de verdade é aquele com quem você pode contar a qualquer momento, que está com você sempre que precisar: com quem você chora as suas mágoas e compartilha a sua felicidade, e também mesmo que você não precise, esteja ali, ao seu lado, mesmo que distante. E que, tudo isso, seja recíproco da sua parte, porque amizade unilateral é insustentável. 

Entre amigos não pode haver lugar para melindres, nem para omissões, tudo o que tiver que ser, deve ser dito sem reservas, sem falsos pudores, pois o amigo verdadeiro não se magoa com o que ouve, pode ser que até fique momentaneamente chateado, mas isso passa muito depressa e a amizade até se fortalece. Também saber ouvir é muito importante, sem pressa, sem apartes, deixando que o amigo desabafe seus temores ou que expanda as suas alegrias fazendo parte deles, como se fossem seus.

Um amigo verdadeiro é um presente de Deus, é mais um irmão, não de sangue, mas de alma. É uma planta rara que deve ser sempre regada com afeto, com carinho, com atenção.

A comunicação é muito importante, sempre! Se você não tiver nada importante a dizer, diga apenas um lacônico “oi”, um “como vai? ”, mas diga sempre, não deixe que a amizade entre no ostracismo; não deixe que o seu silêncio seja confundido com falta de interesse.

E, tudo isso posto, você então poderá dizer, como eu e com muita felicidade:

- Eu tenho amigos verdadeiros!

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXXIX

Amor, carinho, amizade,
um tripé na construção
de um lar de felicidade,
se houver participação.
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Deus atenda a cada intuito
que na alma se refugia,
se não for lhe pedir muito:
– Conceda a sabedoria!
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Entre as grades da prisão
o apenado se rebela,
não vê nela uma razão
de estar ocupando a cela.
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Fora do esquife, alguém fala,
implora a quem vai partindo:
– “Por que partes?” Mas se cala,
quem parece estar dormindo.
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Jamais, a felicidade,
venha a nos abandonar,
e um lugar na eternidade
Deus possa nos reservar.
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Muitos pés estão cansados
de tantas adversidades,
outros andam apressados
enfrentando as tempestades.
= = = = = = = = = 

Ninguém enfrenta a batalha
sem um leme norteador,
tal um navio que encalha
e aguarda um rebocador.
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Ninguém ouse construir
um sonho sem planejar,
melhor, antes desistir,
que partir e não chegar.
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O infrator mostra a proposta
que o faz do mundo, banido,
tendo, na pena, a resposta
do ato insano cometido.
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Pela força, tão sentida,
da flor ao sopro do vento,
obrigado, ó Deus, a vida,
por viver este momento!
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Pessimista, o sofredor
não deglute a solução,
torna prolongada a dor
no leito da prostração.
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Quem disser, 'não tenho nada',
tentando enganar alguém,
de uma forma equivocada,
está afirmando que tem.
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Quem tem pressa pra chegar
ou se mostrar tão cansado,
bem melhor é descansar
pra ver seu sonho alcançado.
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Que ninguém seja julgado
por algo não cometido
e, tampouco, condenado
por não ter se defendido.
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São tantas pedras e espinhos
ao longo das caminhadas,
que atravancam os caminhos
e emolduram as estradas.
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Se à vida a flor desabrocha
e à noite a estrela incandesce,
o sol, em forma de tocha
ilumina e nos aquece.
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Se colheres nos caminhos
frutos de estranhos sabores,
é porque plantaste espinhos
presumindo que eram flores.
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Sem luz o dia escurece
e atrapalha a caminhada,
mas se o sol desaparece
decreta o fim da jornada.
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Se na eternidade alçamos
de mãos áridas, vazias,
é porque a vida passamos,
sem vivermos nossos dias.
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Tão faminto quanto atento
por um prato de comida,
segue em busca de alimento
o sedento por mais vida.
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Temos leis, até demais,
naturais ou promulgadas,
que entre os seres racionais
muitas nem são respeitadas.
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Toda a beleza que enfeita
o jardim com suas cores,
faz a rosa ser eleita
a rainha, dentre as flores.
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Todo ser vivo, pensante,
só difere dos demais,
se amar o seu semelhante
respeitando os animais.
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Tudo o que ao derredor vemos
podemos engrandecer,
vida, o grande dom que temos,
resta a Deus, agradecer.
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Vida, bem mais que um reflexo
de algo em pleno movimento,
de Deus, um plano complexo,
que foge ao conhecimento.

Fonte:
Enviado pelo trovador.
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.