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sábado, 2 de março de 2024
Laé de Souza (Cada filho tem a mãe que merece)
Mãe tem de todos os tipos, jeitos e manias. Igual a minha, a tua, a do vizinho, a do amigo, a da namorada. Aquela que chega da feira e te traz na cama o pastel de queijo que você tanto gostava quando menino, e que hoje enjoa só de sentir o cheiro. Mas ela vem com tanta festa, que você não tem coragem de recusar. Mais chato ainda quando você está numa ressaca por ter saído à noite com os amigos e ela te acorda: "Olha o pastelzinho do menininho da mamãe." Dá até ânsia.
Tem aquela que quando sabe que o namorado da filha vem para almoçar, se arruma mais do que ela, usa aquela roupa especial e percebe-se no seu jeito um olhar de sedução. Muitas já perderam o namorado e outras evitam apresentá-los à mãe. Mas isso já é aberração da natureza e acontece muito raramente.
Tem as que quando a filha sai para namorar, obrigam a levar o irmãozinho (que sempre é enrolado para não ver nada e quando vê é subornado). Estas, naturalmente, já estão ultrapassadas, mas têm algumas que resistem à modernidade.
Tem a que quer conhecer todos os amigos do filho e saber quem são os pais, se a família tem tradição. Namorada, então, é vigiada constantemente e a qualquer desvio ou comportamento inadequado, um batom mais vermelho, uma saia mais curta ou pequena mostra dos seios, ela cai de pau em cima e difama a moça, aconselhando o filho que acabe com o romance.
Tem a que quer os filhos sempre unidos e faz questão de tê-los juntos todos os domingos para o almoço, em sua casa. E você tem que fingir que adora aquela macarronada sempre igual, que já era feita pela tua avó. Segurar a mulher para não reclamar e não ter nenhuma encrenca entre as cunhadas e ainda aguentar aquela mais exibida que se apresenta todo santo domingo cheia de badulaques para fazer inveja às outras.
Tem a que não quer que você saia à noite, espera que seja caseiro e não acredita que você cresceu. Pede satisfação de tudo e ainda dá as ordens.
Tem a que reza por você sempre e pede a Deus que tudo de ruim passe de longe e se não tiver jeito, que seja desviado para ela.
Tem a que pega na extensão para ouvir as confidências, que lê o diário às escondidas, que revira os cadernos para verificar as lições ou até um bilhetinho para a colega.
Aquela que quando você diz que vai num lugar às vezes ela aparece de surpresa para conferir. E as que dão a maior força e se tornam cúmplices em tuas traquinagens enfrentando até o pai feroz.
De qualquer forma, geralmente todas elas amam demais os filhos e passam a se amar menos depois que os têm. Conduzir o comportamento da mãe depende deles. E cada filho tem a mãe que merece. E não esqueçam daquele domingo de maio que é o dia delas. Portanto, nesse dia, demonstrem interesse em ouvir o desenrolar do capítulo da novela que ela te conta e deixe pelo menos um dia de se ligar no rock, dê o direito de ela colocar na vitrola aqueles antigos discos do Roberto. Ela vai adorar.
Fonte: Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor.
Araceli Rodrigues Friedrich (Pequenos Versos)
gentilmente eu ofereço,
com modéstia e alegria,
a pureza do meu verso.
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A dezenove de julho
foi que a Ida Márcia nasceu.
Estava frio... era inverno...
Mas a minha alma aqueceu.
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Afonso, meu queridinho,
bisneto do coração
veio bem de mansinho
para alegrar-me a visão!
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Ao ler tanta poesia
enorme emoção me invade
e aumenta em meu coração
o perfume da saudade.
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A quadrinha é uma prece
que recito com fervor
nela minha alma agradece
as graças do Criador.
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Das palavras pequeninas
"não" é a que mais força tem.
Tanto leva para o mal
como serve para o bem.
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De Joinvile, na lembrança,
eu trago uma laranjeira,
grande, onde havia um balanço
e eu brincava a tarde inteira.
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De manhã quando levanto
logo tomo um bom café,
dando ao corpo mais encanto
com mais firmeza no pé.
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Do coração, bem no fundo,
tenho uma grande ambição:
- Que desta copa do mundo
o Brasil seja o campeão.
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Ele fugiu da escola
não quis mesmo aprender
até parece uma bola
no subir e no descer.
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E meu coração, em prece,
em carinhoso fervor
reverente Te agradece
“Obrigado, Deus de amor!"
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Em oposição à guerra
e às tristezas que traz
alguém inventou na terra
a suavidade da paz.
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Eu tenho medo do dia
daquele que vai chegar
ele não traz só alegria
mas, também, muito pesar.
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Eu tenho uma dor constante,
judia de hora em hora,
ela maltrata bastante
e não pensa em ir embora.
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Hoje é dia de eleição;
são tantos os candidatos
que meu pobre coração
não distingue os mais sensatos.
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O menino brincou com a bola
a bola rolou e caiu;
O mesmo aconteceu na escola
o estudo rolou. Ninguém viu.
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Ó nosso Jesus amado,
Senhor, Nosso Deus do Céu
De Ti nos afasta o pecado;
não nos abandone ao léu!
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O primeiro beijo eu dei
escondidinho e sapeca
foi aquele que apliquei
na minha primeira boneca.
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Os primeiros versos fiz
quase todos pé quebrado
- foi isto mesmo que eu quis,
eles me lembram o passado.
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Pela minha honestidade
eu alcancei a vitória
e com discreta vaidade
vou desfrutando esta glória...
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Quando eu escrevo um versinho
é de alegria que o faço
é verdadeiro caminho
pra te mandar um abraço.
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Quantas flores há nas serras,
do Estado do Paraná
Eu desconheço outras terras
tendo tanto manacá.
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Que o trovador tem seu dia
não me disseram. Confesso.
Hoje, é com grande alegria
que lhe dedico este verso.
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Querida seleção atente
para meu desejo profundo;
- Volte feliz e contente
trazendo a Copa do mundo.
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Recebi hoje a notícia
encantadora! Vejam só:
- Pra mim foi uma delícia;
- "Logo serei bisavó."
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Recebi uma visita
lá da terra do meu pai
foi a minha prima Roly
que veio do Uruguai.
Luiz Hélio Friedrich. Maurício Norberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.
Coelho Neto (A peregrina)
Aldonso, o eremita, desde que se recolhera ao deserto, elegendo por morada a lapa mais áspera e mais fria, em terra sáfara, onde não medrava semente, todas as noites, vincava fundamente as carnes com as tiras laminadas das disciplinas e, sangrando por mil feridas, estendia-se nu na pedra gelada onde escabujava, aos urros, acordando o silêncio com gritos de arrependimento.
Tinham-no todos os eremitas por santo e, quando passavam diante da sua furna inclinavam-se com humildade como se avistassem um santuário. E Aldonso, se percebia rumor de passos, brandia, com mais força, o tagante (açoite) para que os caminheiros ouvissem os golpes e admirassem a sua devoção fervorosa.
Acudiam peregrinos de todas as partes, para ver de perto o santo homem e beijavam os coágulos de sangue que manchavam as pedras e quando o viam, alto, embrulhado em cortiça, macilento e lívido, os cabelos longos, a barba intonsa, emaranhada de ervas, as unhas negras e retorcidas, prostravam-se em terra pedindo-lhe a benção, rogando-lhe intercedesse a Deus por eles, certos de que a oração de tão beato eremita seria atendida no céu.
E Aldonso, no fundo tenebroso da lapa, cantava hinos ao ritmo das vergalhadas com que ia retalhando as carnes.
Ora, na vizinhança, vivia um penitente alegre. Era homem de boa feição, meigo e de muita hospitalidade. Os dias passava-os na horta, semeando, podando, regando, e era um gosto ver-se-lhe a almoinha (horta) viçosa, com os talhões muito verdes e as árvores em flor ou em fruto.
À noite, recolhendo-se, ajoelhava-se ante um crucifixo de pedra, fazia a sua oração e dormia, deitado em ramas secas que cheiravam.
Aldonso, passando, uma tarde, pela choça e ouvindo o ermitão cantar, entrou e, chamando-o com severidade, disse-lhe:
— Irmão, a vida que aqui levais escandaliza o eremitério. Em vez de orações cantais desde que amanhece até a hora sagrada de vésperas. Deixais a imagem pelas ervas e pelas flores, e, enquanto nossos irmãos sangram sob as disciplinas, e definham à força de abstinências, folgais e engordais porque a vossa mesa é farta e escolhida. Até afirmam — praza a Deus que haja nisto calúnia — que, certa noite, recebestes nesta cabana formosa mulher e só a despedistes na manhã seguinte.
Humildemente o ermitão respondeu:
— Não foi um caluniador quem tal vos disse, irmão. Efetivamente acolhi a mulher de que falais. Se era formosa, não sei. Era noite, chovia torrencialmente quando bateram à minha porta. Sem pedir nome, abri e, à luz da candeia, vi um vulto de mulher. Fiz lume para aquecê-la, dei-lhe o que tinha e ofereci-lhe, para repouso, as ramas em que me deito. Quanto a mim juro-vos que passei a noite junto do crucifixo. Se foi pecado o que fiz, imponde-me a penitência e eu a cumprirei.
— Fazei o que eu faço se quiserdes obter o perdão de Deus.
E Aldonso mostrou-lhe as fundas feridas do corpo. Estavam os dois em tal prática quando bateram à porta. Correu o ermitão a ver quem era e pasmou de achar-se em presença de uma mulher que lhe disse:
— Tomo à vossa hospitalidade, irmão, pedindo-vos agasalho por uma noite. É tarde, as feras uivam: nuvens negras acastelam-se.
Hesitou o ermitão, mas os instantes pedidos da mulher venceram-no. Cruzando, então, os braços, baixando a cabeça afastou-se, deixando-a entrar.
Irado ergueu-se impetuosamente Aldonso e, tomando o cajado que deixara a um canto, disse:
— Ficai-vos, irmão. Não serei eu quem permaneça convosco, arriscando minh'alma em tamanha
impureza!
— Mas quereis que deixe uma pobre criatura de Deus exposta ao tempo, desamparada às feras?
— E sabeis quem é?
— Sei que é uma peregrina, irmão. A misericórdia não pede o nome dos que a procuram. Que direi ao Senhor, se Ele me arguir de cruel na hora da justiça, por não haver atendido aos rogos de uma infeliz?
— Dir-lhe-ás que essa infeliz era uma impura.
— E não foi à sombra da túnica de Cristo que se refugiou a adultera?
— Sim, em público: não a recolheu ao seu lar.
— Então o vosso receio é que eu sucumba à tentação da beleza?
— Sim, irmão.
— Nada temais — ando sempre com a consciência acordada. Os atos que pratico não são para o mundo, mas para Deus. Se é pecado ser bom... ai de mim! Nunca me emendarei.
E vendo que a mulher tremia, disse-lhe:
— Tendes lume para aquecer-vos e ali sobre a mesa um resto de pão e alfaces; o cântaro está cheio. Comei e bebei. O leito é o mesmo em que dormistes da outra vez.
E, humildemente, murmurou, cruzando os braços: Faça-se em mim segundo a vontade do Senhor. Assim como me ordena o coração, assim procedo.
Acabava de falar quando uma claridade súbita iluminou a choça e, caindo os andrajos que mal cobriam o corpo da peregrina, alargaram-se-lhe dos ombros amplas asas resplandecentes, despejaram-se-lhe pelas espáduas bucres (anéis) de cabelos louros, vestiu-a até os pés uma túnica mais fina que as névoas, brilharam seus olhos com vivo fulgor de estrelas e, caminhando para os eremitas em passos sonoros, disse a Aldonso que caíra sobre os joelhos, maravilhado:
— "A tua virtude é como o reflexo das árvores verdes nas águas límpidas — uma sombra. A tua penitência não passa de hipocrisia. Cobres-te de sangue como se vestem os príncipes de púrpura: por ostentação. Este que repreendes e condenas é um justo, votado à justiça e a Deus, não procede como tu que não te penitencias sem alarde de gritos e trazes as chagas em exposição. Negas agasalho à mulher com receio de ti mesmo, porque se a visses sem defesa, ao alcance da tua mão, talvez enfraquecesses e te precipitasses no crime. Este que me acolheu acolheria, com o mesmo carinho, um leproso — e não receou incorrer em pecado de luxúria, porque é puro. Esta é a verdadeira piedade, o verdadeiro religioso é este. Quanto ao copioso sangue que espalhas quando te flagelas estrondosamente, não passa da terra e nela escurece em mancha e o canto meigo deste generoso eremita, canto que lhe sai d'alma, é ouvido no céu e foi por ele que vim a este ermo atroante dos teus guaiados (lamentos).
"Não julgues que Deus se comove com as grandes penitências clamorosas — mais vale a seus olhos uma lágrima sincera. Cantando fez este eremita por sua alma o que não fizeste com todo o sangue derramado em tão longos anos. Deus não quer ostentações, quer sinceridade."
Fez-se silêncio. Quando os eremitas saíram do assombro, a mulher havia desaparecido.
Então ergueu-se Aldonso e, acabrunhado, chorando lágrimas amargas, saiu para a noite negra e o ermitão prostrou-se ante o Cristo de pedra agradecendo a visita que o anjo fizera ao seu humilde tugúrio (cabana) e a suave lição de misericórdia com que confundira a vaidade.
Fonte> Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.
Hinos de Cidades Brasileiras (Araranguá/SC)
Rosa de um vale sempre em flor,
Tu ostentas, com largas avenidas,
A beleza e o esplendor.
Grande marco na história,
Meu orgulho, minha glória,
Terra de descanso, mar e sol
És tu, Araranguá.
Beija o sol o vigor de tuas veigas
Dourando imensos arrozais;
O trabalho, a cultura e o progresso
Te exaltam sempre mais.
Amo o rio que espelha teu encanto
Nas lindas noites de luar,
E o verde sereno da paisagem
E as dunas do teu mar.
Amo o mar que afaga mansamente
Teu areal deitado ao sol,
E o morro que orienta os pescadores
Com a luz do seu farol.
Mitos Indígenas (Irapuru - o canto que encanta)
Certo jovem, não muito belo, era admirado e desejado por todas as moças de sua tribo por tocar flauta maravilhosamente bem. Deram-lhe então o nome de Catuboré (flauta encantada).
Entre elas, a bela Mainá conseguiu o seu amor; casar-se-iam durante a primavera.
Certo dia, já próximo do grande dia, Catuboré foi à pesca e de lá não mais voltou.
Saindo a tribo inteira à sua procura, encontraram-no sem vida, à sombra de uma árvore, mordido por uma cobra venenosa.
Sepultaram-no no próprio local.
Mainá, desconsolada, passava várias horas a chorar sua grande perda. A alma de Catuboré, sentindo o sofrimento de sua noiva, lamentava-se profundamente pelo seu infortúnio.
Não podendo encontrar paz, pediu ajuda ao Deus Tupã. Este então transformou a alma do jovem no pássaro Irapuru, que mesmo com escassa beleza possui um canto maravilhoso, semelhante ao som da flauta, para alegrar a alma de Mamã.
O cantar do Irapuru ainda hoje contagia com seu amor os outros pássaros e todos os seres da Natureza.
=====================
Irapuru, também chamado Uirapuru
Fonte> Adaptação do Texto de Jayhr Gael in O Caminho de Wicca - http://www.caminhodewicca.com.br (desativado). acesso em 13/10/2023.
sexta-feira, 1 de março de 2024
Silmar Bohrer (Croniquinha) 106
Quantos de nós temos alguma ligação quase afetiva com aquele cantinho que é aprazível e que se torna ponto de parada costumeiro. E as pedras, e as matas, e o canto do pássaro que só se ouve nestas paragens?
Os finais de semana beirando a boca noitinha conduzem ao rumo habitual junto à bica d'água - refúgio num canto da mata onde sempre aparece alguém para beber água na concha da mão, ou lavar a fuça, ou encher um cântaro com água pura que alcançou a estrada. Delícia geladinha nestes verões senegaleses.
Nestas horas são contadas histórias e estórias, os caminhantes alongam conversas, risos e gargalhadas. E o caminho segue. Vagares, digressão, encantamentos.
As trilhas do existir nos levam a todos os caminhos - nortes com rumo, nortes sem rumo - , cabe a cada um aproveitar e curtir os deleites da viagem.
Fonte: Texto enviado pelo autor
Renato Frata (Um pé de goiabas)
Há uns treze anos dei-me de presente um imóvel que transformei em escritório. É bem central, defronte a uma bela igreja e vi, no momento da compra, que fazia um belo negócio por três razões: o ponto privilegiado, a qualidade do imóvel e, o mais importante, a vizinhança. Meu vizinho de frente é espetacular! Atende-me em tudo: "Pede e atenderei", disse ele um dia.
Pois bem, reforma concluída, móveis instalados, fachada pintada, notei que num dos cantos do terreno, perto da pequena lavanderia, nascia um broto tão verde que se destacava do piso acimentado.
Eram duas folhinhas no formato de orelhas que, curiosas, procuravam a suavidade do sol da manhã sem se importar com a quentura do da tarde. A pequena planta foi por nós adotada e lhe demos água. Todos os dias. Não há vegetal que resista a um bom copo de água, assim como não resistimos a um copo bem gelado de cerveja, e ele cresceu, esgalhou-se, encorpou-se bebendo da nossa água e se aquecendo no sol do quintal. E nos tornamos amigos; tanto que primeiro abrigou uma bicicleta, depois uma motocicleta e, mais tarde, pela fresca das folhas, um automóvel, e, portentoso, seguiu verde como a esperança não contagiável.
Você, por acaso, já viu um pé de goiabas espremido entre o muro e o acimentado de quintal? Ali ele não é um número como numa plantação, ele é único, um ser vivo respeitado como se tivesse coração, como nós. Suas raízes fortes e profundas se grudam no chão com o afinco que damos à vida e suas folhas, oblongas e de ápice arredondado, pilosas na face inferior e com até 13 centímetros de comprimento, balançam ao vento como cabelos destrançados e fazem, no vaivém que a nervura dos galhos permite, um bailado belo e envolvente, oferecido àqueles que têm olhos para ver.
Sem ser surrealista, ao vê-lo tremular folhas, vejo-o parecido com crianças em bando na calçada no Dia da Independência a gesticular bandeirolas para a fanfarra, e reconheço que a natureza retribui o carinho que lhe dedicamos, pois, passados quase dois anos do seu nascimento, ele nos surpreendeu, deixando vazar pelos gabos pequenos botões-verrugas tão verdes quanto as folhas que logo se amarronzaram para se abrirem em flores brancas, pequeníssimas margaridas - e receberem o sol da vida, e com ele abelhas às centenas - preocupadas em colher o néctar do seu âmago.
Dediquei-lhe uns minutos naquela manhã, vendo-o beijado pelo vento e pelas abelhas, enriquecendo o canteirinho vulgar de fundo de quintal, mesmo porque um pé de fruta, qualquer seja a espécie, e - como disse Rubem Braga ao falar de seu pé de milho – um belo gesto da terra.
Tá certo que de vez em quando cochonilhas (insetos perniciosos à plantas cultivadas) o invadem, sugando suas folhas e me obrigando a banhos semanais de inseticida mas seus doces e suculentos frutos são, eu reconheço, a devolução carinhosa de reciprocidade que a natureza faz dos copos de água que diariamente recebe.
Fonte> Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor
Beatrix Potter (O Conto de Benjamin Coelho)
Certa manhã, um coelhinho estava sentado em um banco. Ele aguçou as orelhas e ouviu o trit-trot, trit-trot de um pônei.
Um espetáculo estava chegando ao longo da estrada; era dirigido pelo Sr. McGregor, e ao lado dele estava a Sra. McGregor em seu melhor gorro.
Hop, skip
Assim que eles passaram, o pequeno Benjamin Coelho deslizou para a estrada e partiu – com um salto, salto e salto – para visitar seus parentes, que viviam na floresta nos fundos do jardim do Sr. McGregor.
Aquela floresta estava cheia de buracos de coelho; e no buraco mais limpo e arenoso de todos viviam a tia de Benjamin e seus primos – Flopsy, Mopsy, Rabo de Algodão e Peter.
A velha Sra. Coelho era viúva; ela ganhava a vida tricotando luvas e cachecóis de lã de coelho (uma vez comprei um par em um bazar). Ela também vendia ervas, chá de alecrim e tabaco de coelho (que é o que chamamos de lavanda).
O pequeno Benjamin não queria muito ver sua tia.
Ele deu a volta por trás do abeto e quase caiu em cima de seu primo Peter.
Peter estava sentado sozinho. Ele parecia mal e estava vestido com um lenço de bolso de algodão vermelho.
“Peter”, disse o pequeno Benjamin, num sussurro, “quem está com suas roupas?”
Peter respondeu: “O espantalho no jardim do Sr. McGregor”, e descreveu como ele foi perseguido pelo jardim e deixou cair os sapatos e o casaco.
O pequeno Benjamin sentou-se ao lado de seu primo e assegurou-lhe que o Sr. McGregor havia saído em uma carruagem, e a Sra. McGregor também; e certamente seria o dia inteiro, porque ela estava usando seu melhor gorro.
Peter disse que esperava que chovesse.
Nesse ponto, ouviu-se a voz da velha Dona Coelha dentro da toca do coelho, chamando: “Rabo de algodão! Rabo de algodão! Traga mais camomila!”
Peter disse que achava que poderia se sentir melhor se fosse dar uma caminhada.
Eles foram embora de mãos dadas e chegaram ao topo plano da parede no fundo da floresta. Dali eles olharam para o jardim do Sr. McGregor. O casaco e os sapatos de Peter podiam ser vistos claramente sobre o espantalho, encimado por um velho gorro do Sr. McGregor.
O pequeno Benjamim disse: “Estraga a roupa se espremer debaixo do portão; a maneira correta de chegar é descendo pelo pé de pera.”
Peter caiu de cabeça; mas não teve importância, pois o chão abaixo estava recém-arrumado e bastante macio.
Fora semeado com alface.
Eles deixaram muitas e estranhas marcas de pés por todo lugar, especialmente o pequeno Benjamin, que usava tamancos.
O pequeno Benjamim disse que a primeira coisa a fazer era recuperar as roupas de Peter, para que pudessem usar o lenço de bolso.
Eles os tiraram do espantalho. Chovera durante a noite; havia água nos sapatos e o casaco estava um pouco encolhido.
Benjamin experimentou o gorro, mas era grande demais para ele.
Então ele sugeriu que enchessem o lenço de bolso com cebolas, como um presentinho para sua tia.
Peter não parecia estar se divertindo; ele continuou ouvindo ruídos.
Benjamin, ao contrário, estava perfeitamente à vontade e comeu uma folha de alface. Disse que tinha o hábito de ir ao jardim com o pai buscar alface para o jantar de domingo.
(O nome do pai do pequeno Benjamin era o velho Sr. Benjamin Coelho.)
As alfaces certamente eram muito boas.
Peter não comeu nada; ele disse que gostaria de ir para casa. Logo ele derrubou metade das cebolas.
O pequeno Benjamim disse que não era possível subir no pé de pêra com uma carga de legumes. Ele liderou o caminho corajosamente em direção à outra extremidade do jardim. Fizeram uma pequena caminhada sobre tábuas, sob uma ensolarada parede de tijolos vermelhos.
Os camundongos sentavam-se na soleira de suas portas quebrando caroços de cerejeira; eles piscaram para Peter e o pequeno Benjamin.
Logo Peter soltou o lenço de bolso novamente.
Eles se misturaram a vasos de flores, molduras e banheiras. Peter ouviu barulhos piores do que nunca; seus olhos ficaram grandes como pirulitos!
Ele estava um ou dois passos à frente de seu primo quando parou de repente.
E o que foi que ele viu naquela esquina?
O pequeno Benjamin deu uma olhada e, em menos de meio minuto, escondeu a si mesmo, Peter e as cebolas debaixo de uma grande cesta…
A gata levantou-se e espreguiçou-se, aproximou-se e cheirou o cesto.
Talvez ela gostasse do cheiro de cebola!
De qualquer forma, ela se sentou em cima da cesta.
Ela ficou sentada lá por cinco horas.
Não posso fazer um desenho de Peter e Benjamim debaixo da cesta, porque estava muito escuro e porque o cheiro de cebola era terrível; fez Peter e o pequeno Benjamin chorarem.
O sol estava por trás da floresta e já era bem tarde; mas o gato ainda estava sentado em cima da cesta.
Por fim, houve um tamborilar, mais ruídos e alguns pedaços de argamassa caíram da parede acima.
O gato olhou para cima e viu o velho Sr. Benjamin Coelho saltitando ao longo do topo da parede do terraço superior.
Ele estava fumando um cachimbo de tabaco para coelhos e tinha um pequeno cajado na mão.
Ele estava procurando por seu filho.
O velho Sr. Coelho não tinha opinião alguma sobre gatos.
Ele deu um tremendo salto do topo da parede para cima do gato, o empurrou para fora da cesta, e o chutou para dentro da estufa, arrancando um punhado de pelo.
O gato ficou surpreso demais para lutar de volta.
Quando o velho Sr. Coelho jogou o gato na estufa, ele trancou a porta.
Então ele voltou para a cesta e pegou seu filho Benjamin pelas orelhas, e o bateu com uma pequena vara.
Então ele pegou seu sobrinho Peter.
Sr. Coelho pegou o lenço de cebolas e marchou para fora do jardim.
Quando o Sr. McGregor voltou cerca de meia hora depois, ele observou várias coisas que o deixaram perplexo.
Parecia que alguém andava por todo o jardim com um par de tamancos – só que as pegadas eram ridiculamente pequenas!
Também não conseguia entender como a gata conseguiu se trancar dentro da estufa, trancando a porta por fora.
Quando Peter chegou em casa, sua mãe o perdoou, porque ela ficou muito feliz em ver que ele havia encontrado seus sapatos e casaco. Rabo de Algodão e Peter dobraram o lenço de bolso, e a velha Dona Coelha pendurou as cebolas no teto da cozinha, com os molhos de ervas e o tabaco para coelho.
Fonte: Beatrix Potter (escritora e ilustradora). O conto de Benjamin Coelho. Publicado originalmente em 1902 como The Tale of Benjamin Bunny. Disponível em Domínio Público
Mitos Indígenas (Yara - a rainha das águas)
Yara, a jovem Tupi, era a mais formosa mulher das tribos que habitavam ao longo do Rio Amazonas. Muito atraente, com longos e negros cabelos, tinha um sorriso meigo e sensual. Mantinha-se, entretanto, indiferente aos muitos admiradores, preferindo ser livre.
Caminhava pela floresta e pelas areias brancas dos rios, envolvendo-se constantemente em suas águas claras. Por sua doçura, todos os animais e as plantas a amavam.
Numa tarde de verão, mesmo após o sol se pôr, Yara permanecia no banho, quando foi surpreendida por um grupo de homens estranhos. Tinham longas barbas, usavam roupas pesadas, botas e chapéus. Falavam uma língua desconhecida e pareciam muito agressivos.
Sem condições de fugir, a jovem foi agarrada e amordaçada, não podendo se livrar daquelas mãos que tocavam todo o seu corpo. Acabou por desmaiar, sendo mesmo assim violentada e atirada ao rio.
O espírito das águas transformou o corpo de Yara num ser duplo. Continuaria humana da cintura para cima, tornando-se peixe no restante. Assim permaneceria bela, podendo ao mesmo tempo viver eternamente no rio.
Yara passou a entender os pássaros e a conversar com eles e com os peixes, como uma sereia, cujo canto atrai os homens de maneira irresistível.
Ao verem a linda criatura, aproximam-se dela, que os abraça e os arrasta às profundezas, de onde nunca mais voltarão.
Fonte> Adaptação do Texto de Jayhr Gael in O Caminho de Wicca - http://www.caminhodewicca.com.br (desativado). acesso em 13/10/2023.
quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024
Eduardo Martínez (Parada Inusitada)
Não estavam propriamente se dirigindo para aquela cidade, mas resolveram fazer uma visita breve para conhecê-la. Gostavam de fazer isso, mesmo que por alguns instantes. O sol escaldante aguçou o desejo de tomar sorvete. Procuraram e logo encontraram um local ali perto da principal lagoa do centro, uma das sete da famosa cidade próxima à Belo Horizonte. Ela, menos afoita, olhava a loja com certo ar de curiosidade. Ele, no entanto, já foi direto para o balcão, onde havia um vidro separando-o daqueles inúmeros potes enorme de sorvete: morango, chocolate, creme, avelã, uva... Ih, a lista ia longe!
– Quero esse, esse, aquele, aquele outro e também os dois do canto.
– Não pode! - a atendente o interrompeu.
– Por que não pode? - ele a questionou.
– Porque é muito caro! - ela retrucou.
Ele sorriu,
– Mas eu tenho dinheiro!
– Mas mesmo assim não pode, pois dá muito trabalho - ela insistiu.
Ele voltou a sorrir.
– São só duas bolas - a atendente disse.
Ele, com o sorriso ainda presente no seu rosto, disse:
– Então, eu quero esse e aquele.
A atendente pegou a casquinha e o pegador e colocou os dois escolhidos. Em seguida, ela ficou estática o observando, como se esperasse que ele completasse o pedido. Ele não entendeu direito aquela situação e, antes que pudesse falar algo, a atendente o questionou:
– E aí, já escolheu o outro sabor?
– Ué, mas não são apenas duas bolas?
– São duas bolas, mas são três sabores! - a atendente finalizou.
Acreditem! Isso realmente aconteceu!
Fonte: Blog do Menino Dudu
Chico Anysio (Um amigo antigo)
De início, tudo são flores. Esta frase idiota era, no entanto, verdade, porque ela, Margarida, e ele, João Cravo, tinham flores nos seus nomes.
Conheceram-se na Penha quando pagavam promessa, subindo os dois, de joelhos, os degraus da igreja. Durante a subida, nos momentos de parada para o repouso das rótulas, ficaram sabendo das coisas que os torturavam a ponto de dar motivo às promessas. Souberam mais: os seus nomes, telefones, endereços, dissabores, esperanças, e também ficaram a par das imensas solidões que dominavam a vida que carregavam, pois o verbo era bem esse.
Entraram na igreja já um pouco mais amigos. Tinham as mãos dadas num quente apertar de dedos que se entrelaçavam, pondo isto ao bom serviço da santa que amavam. Achavam um exagero o milagre nem pedido, só de longe imaginado.
Na prece que os dois fizeram em pé (joelhos sangrando), mudamente agradeceram o encontro proporcionado pela santinha adorada, sempre de mãos em aperto, amor pingando dos poros abertos pelo esforço na subida.
Não nos atenhamos, porém, ao começo do romance, que foi igual a milhões: trocas de muitos beijos, juras de amor infindo, a constante procura e encontro de João Cravo e Margarida, passeios pelos jardins, encostamentos nos muros, sofá da sala da dona que, por ser desquitada, dava a João certos favores que eram retribuídos no carinho que ele dava.
Margarida nem lembrava do primeiro marido. Sumira um mês depois do casamento civil, e a última notícia era a de que ele andava em Manaus ou Belém. Sabia que era no Norte.
Como não podia casar, um mês depois do milagre os dois se juntaram.
João Cravo, querendo filhos, Margarida transferindo, acabou engravidando, botando gêmeos no mundo. Depois dos dois, a menina, que se chamou Madalena. Devia chamar-se Penha, mas João Cravo ponderou que isso não era certo. Penha só se chamaria filha de casal casado. Esperavam pela morte do marido em Santarém, porque chegaram notícias contando ele andar doente.
Ficaram em três, todavia. Os gêmeos (Mário e Marino) e Madalena, a menina, um ano e pouco mais nova. Os três, a fuça do pai, moreno da cor de um índio, cara de linhas marcadas, um rosto anguloso, feito com régua, olho aberto a compasso.
Ponha-se em conta do encanto a boa vida levada nos quatro primeiros anos de João Cravo e Margarida. Pode ser que tenha sido a busca louca de filhos que tenha cegado João, a ponto de não lhe deixar notar a frieza da mulher. Passados cinco anos, João Cravo então se deu conta de que o amor muitas noites evitado, a busca sem proveito pelo corpo da mulher, dor de cabeça constante, tudo chocho, sem graça, o sexo obrigatório, de pouco ou nenhum prazer.
— O que é que você tem?
— Nada. Uma dorzinha...
— De novo?
— Dor de cabeça.
— Toda noite, Margarida?
— Mas eu não posso ter dor?
— Pode, bem, mas toda noite?
Não era assim toda noite, mas era em volta disso.
Ponha-se em conta das dores de Margarida a aceitação do amor que Suzana ofereceu.
Suzana cresceu na vida, tomando João pra si, e ele sumiu com ela, deixando assim Margarida desquitada e desamada, com 3 filhos pra criar, os gêmeos já com 3 anos, Madalena indo aos dois.
Margarida não tentou tirar esta ideia de João.
— Quer ir? A porta está aberta.
Ficou com os meninos e a máquina de costura que lhe ajudava na criação das crianças. De noite fazia doces pra festas de aniversário. Deitava depois da uma, acordava antes das sete. Mesada João não lhe dava e nem tinha obrigação. Mesmo sendo casada, não lhe pediria nunca um centavo. Os filhos, os seus problemas, ela os resolveria. Mas tinha uma resolução tomada pra toda a vida: "Homem, nunca mais!"
As poucas joias que tinha, de valor pequeno, dormiram nas prateleiras da Caixa, em penhor. Depois vendeu as cautelas, fazendo dinheiro. Sem contar os empréstimos tomados a juros descomunais.
Os filhos cresceram tanto quanto as dívidas contraídas. Os três eram muito certos, estudavam o necessário, e Marino, o mais esperto, arranjou um empreguinho que o ajudava a ajudar nas contas que a mãe pagava.
No quarto, luz apagada, preparada para dormir, Margarida agradecia os filhos que João lhe dera, três crianças feito ouro, três joinhas muito ricas, que um dia seriam gente e, então, oferecia contrita Salve-Rainha à "memória" de João Cravo, de cujo paradeiro não tinha notícia.
Passaram-se quinze anos do dia em que João se tinha ido.
Madalena, professora, ensinava em Madureira, numa escola do governo, e os irmãos, Mário e Marino, faziam cursos pra enfrentar o vestibular. Margarida emagrecia, cabeça já tão grisalha, os olhos diminuídos pela lente avantajada, via os filhos debruçados sobre os livros e chorava a alegria de vê-los no rumo certo, a caminho do diploma.
— Meus filhos de anel no dedo, minha filha professora, a vida foi muito boa, Deus tomou conta de mim.
Foi assim que João a achou no dia em que, arrependido, apareceu de repente, na volta nunca pensada.
— Alô — foi o que falou quando a porta foi aberta.
Ela olhou e, de cabeça, retribuiu o alô, sem nenhum pasmo ou surpresa, olhando apenas nos olhos, os olhos que João trazia, embotados por um choro que era quase evidente.
— Alô — ele repetiu.
E então ela disse: "Alô".
— Quer entrar? — ofereceu, gentil e maquinalmente.
— Se você deixa... — e sorriu.
A porta escancarada deu passagem a João Cravo que, muito desajeitado, entrou, sentou no sofá, mãos fechadas entre as pernas, um jeito mais de visita do que qualquer outra coisa.
A roupa, suja e surrada, a camisa encardida, sapatos desengraxados, cabelos em desalinho, as rugas tomando os olhos, vincos fartos pela testa, um ricto de sofrimento. "Um homem meio molambo" — Margarida deduziu depois de muito o olhar no exame que fazia no homem que ali estava.
— Como vai? — João quis saber.
— Muito bem — ela falou.
— E as crianças?
— Crescidas.
— Estudando?
— Estudando. Madalena é professora.
— Que bonito!
— Também acho.
— Os meninos...
— Vão ser médicos. Vão fazer vestibular, e eu tenho plena certeza de que serão aprovados.
— Doutores... — suspirou fundo — ...doutores!
— Se Deus quiser.
— E você?
— Eu já falei. Eu vou bem, vou muito bem.
João levantou um instante, foi à janela e a abriu. Queria ficar de costas para não mostrar o pranto que descia pelo rosto. Margarida ali o deixou e foi fazer um café. Quando voltou, ele estava ainda lá na janela, olho parado na rua, como quem examinasse as pedras do calçamento.
— Um cafezinho, João?
Ele aceitou e sorveu o café num gole longo.
— Senta, João.
Ele sentou.
Madalena e os meninos ainda não tinham chegado. Ele voltou ao sofá. Ela, na cadeira em frente.
— Eu andei lá pelo Sul.
— É?
— Andei. Você não soube?
— Não. Se soube, não me lembro.
— Andei por lá um tempão.
— Calculo. Faz tanto tempo...
— Quinze anos.
— Tudo isso? Gozado. Parece menos.
Ele sofreu muito a frase. No modo como falara, João percebeu que a chance de voltar àquela casa era nenhuma. Nenhuma. Ficaram calados, mudos, por minutos infindáveis. Ele olhava a simpatia da mulher que tanto o amara, simpatia que crescia pelos cabelos cinzentos. Os óculos lhe davam um jeito de professora primária, um aspecto agradável, os óculos caíam bem.
— Você fica bem de óculos.
Ela os levantou com o dedo, chegando-os ao posto certo, e sorriu agradecida pelo elogio de João.
A porta abriu-se depressa, como se fosse empurrada por força de furacão. Madalena, muito alta, cabelos longos e lisos que deveriam dançar a lhe varrer por detrás, quando corresse ou andasse em passo mais apertado. Madalena, alta e linda, entrou e freou o passo. Seus olhos de moça nova viram João no sofá. À entrada dela ele levantara quase em salto. Madalena olhou o homem e nele viu sua cara. Depois fitou Margarida num olhar que perguntava. A resposta foi um riso escondido, disfarçado. Madalena não fez mais que dizer um boa noite e sumiu no corredor.
— Ela não me conheceu.
— Nem podia conhecer. Tinha menos de dois anos, não podia conhecer.
— É verdade.
— Quinze anos. Não lembra? Faz quinze anos.
Ele muito se lembrava. Depois chegaram os gêmeos, entrando às gargalhadas. Beijaram a mãe na testa e nem deram atenção ao homem que, no sofá, esperava pelo menos um boa noite igual ao que ouvira da filha. Sumiram no corredor, e os dois voltaram a ficar sozinhos naquela sala.
— Dois homens!
— Vão ser doutores — reafirmou Margarida, desta vez muito orgulhosa.
Daí, por falta de assunto, ela perguntou as coisas que ele há muito queria falar, contar, explicar.
— Estou no fim.
Foi o começo da estória que contou. Estória muito sofrida, de enganos e dissabores, contou da mulher (Suzana) de mau proceder constante. Falou de amor só de carne, sem filhos, sem bem-querer, do uruguaio Manolo, com quem Suzana sumira pros lados de Uruguaiana; da ida dele à procura da mulher que o enganara. E antes houvera outros, até um negro peão, de uma fazenda de gado, andara achando em Suzana o xodó que procurava. Mas sempre havia o perdão ditado pelo desejo. Confessou que era Suzana a mulher que o atendia na justa medida, a exata, do sexo. Somente sexo. Aos poucos, foi acordando e vendo que aquilo tudo era coisa de animal. Gente não procede assim, isso não é coisa humana. Falou um quarto de hora na resposta da pergunta que era só:
— E você?
Foram essas cinco letras que provocaram o chorrilho de confissões tão sinceras, tardio arrependimento.
Madalena perguntou se não iriam jantar.
Margarida levantou, depois de pedir licença, e foi preparar a janta, modesta como a de sempre.
— O senhor janta conosco?
A filha, que perguntou.
— Não obrigado, filhinha. Eu já estou de saída.
Muito delicadamente Margarida despediu-se com os filhos já em volta da mesa, começando a se servir.
Da porta, João escutava o tinir de prato e faca. Margarida lhe estendeu a mão, num gesto comum. Ele lhe deu um boa noite, ela, então, fechou a porta e foi sentar-se à mesa, juntando-se aos seus três filhos.
— Quem era? — perguntou Mário.
— Um amigo antigo da mamãe, um amigo do passado — lhe respondeu Madalena, tomando o lugar da mãe na resposta que ela, tonta, procurava encontrar.
— É, meu filho. Um amigo antigo.
Comeram muito calados.
Fonte: Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.
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