Aldonso, o eremita, desde que se recolhera ao deserto, elegendo por morada a lapa mais áspera e mais fria, em terra sáfara, onde não medrava semente, todas as noites, vincava fundamente as carnes com as tiras laminadas das disciplinas e, sangrando por mil feridas, estendia-se nu na pedra gelada onde escabujava, aos urros, acordando o silêncio com gritos de arrependimento.
Tinham-no todos os eremitas por santo e, quando passavam diante da sua furna inclinavam-se com humildade como se avistassem um santuário. E Aldonso, se percebia rumor de passos, brandia, com mais força, o tagante (açoite) para que os caminheiros ouvissem os golpes e admirassem a sua devoção fervorosa.
Acudiam peregrinos de todas as partes, para ver de perto o santo homem e beijavam os coágulos de sangue que manchavam as pedras e quando o viam, alto, embrulhado em cortiça, macilento e lívido, os cabelos longos, a barba intonsa, emaranhada de ervas, as unhas negras e retorcidas, prostravam-se em terra pedindo-lhe a benção, rogando-lhe intercedesse a Deus por eles, certos de que a oração de tão beato eremita seria atendida no céu.
E Aldonso, no fundo tenebroso da lapa, cantava hinos ao ritmo das vergalhadas com que ia retalhando as carnes.
Ora, na vizinhança, vivia um penitente alegre. Era homem de boa feição, meigo e de muita hospitalidade. Os dias passava-os na horta, semeando, podando, regando, e era um gosto ver-se-lhe a almoinha (horta) viçosa, com os talhões muito verdes e as árvores em flor ou em fruto.
À noite, recolhendo-se, ajoelhava-se ante um crucifixo de pedra, fazia a sua oração e dormia, deitado em ramas secas que cheiravam.
Aldonso, passando, uma tarde, pela choça e ouvindo o ermitão cantar, entrou e, chamando-o com severidade, disse-lhe:
— Irmão, a vida que aqui levais escandaliza o eremitério. Em vez de orações cantais desde que amanhece até a hora sagrada de vésperas. Deixais a imagem pelas ervas e pelas flores, e, enquanto nossos irmãos sangram sob as disciplinas, e definham à força de abstinências, folgais e engordais porque a vossa mesa é farta e escolhida. Até afirmam — praza a Deus que haja nisto calúnia — que, certa noite, recebestes nesta cabana formosa mulher e só a despedistes na manhã seguinte.
Humildemente o ermitão respondeu:
— Não foi um caluniador quem tal vos disse, irmão. Efetivamente acolhi a mulher de que falais. Se era formosa, não sei. Era noite, chovia torrencialmente quando bateram à minha porta. Sem pedir nome, abri e, à luz da candeia, vi um vulto de mulher. Fiz lume para aquecê-la, dei-lhe o que tinha e ofereci-lhe, para repouso, as ramas em que me deito. Quanto a mim juro-vos que passei a noite junto do crucifixo. Se foi pecado o que fiz, imponde-me a penitência e eu a cumprirei.
— Fazei o que eu faço se quiserdes obter o perdão de Deus.
E Aldonso mostrou-lhe as fundas feridas do corpo. Estavam os dois em tal prática quando bateram à porta. Correu o ermitão a ver quem era e pasmou de achar-se em presença de uma mulher que lhe disse:
— Tomo à vossa hospitalidade, irmão, pedindo-vos agasalho por uma noite. É tarde, as feras uivam: nuvens negras acastelam-se.
Hesitou o ermitão, mas os instantes pedidos da mulher venceram-no. Cruzando, então, os braços, baixando a cabeça afastou-se, deixando-a entrar.
Irado ergueu-se impetuosamente Aldonso e, tomando o cajado que deixara a um canto, disse:
— Ficai-vos, irmão. Não serei eu quem permaneça convosco, arriscando minh'alma em tamanha
impureza!
— Mas quereis que deixe uma pobre criatura de Deus exposta ao tempo, desamparada às feras?
— E sabeis quem é?
— Sei que é uma peregrina, irmão. A misericórdia não pede o nome dos que a procuram. Que direi ao Senhor, se Ele me arguir de cruel na hora da justiça, por não haver atendido aos rogos de uma infeliz?
— Dir-lhe-ás que essa infeliz era uma impura.
— E não foi à sombra da túnica de Cristo que se refugiou a adultera?
— Sim, em público: não a recolheu ao seu lar.
— Então o vosso receio é que eu sucumba à tentação da beleza?
— Sim, irmão.
— Nada temais — ando sempre com a consciência acordada. Os atos que pratico não são para o mundo, mas para Deus. Se é pecado ser bom... ai de mim! Nunca me emendarei.
E vendo que a mulher tremia, disse-lhe:
— Tendes lume para aquecer-vos e ali sobre a mesa um resto de pão e alfaces; o cântaro está cheio. Comei e bebei. O leito é o mesmo em que dormistes da outra vez.
E, humildemente, murmurou, cruzando os braços: Faça-se em mim segundo a vontade do Senhor. Assim como me ordena o coração, assim procedo.
Acabava de falar quando uma claridade súbita iluminou a choça e, caindo os andrajos que mal cobriam o corpo da peregrina, alargaram-se-lhe dos ombros amplas asas resplandecentes, despejaram-se-lhe pelas espáduas bucres (anéis) de cabelos louros, vestiu-a até os pés uma túnica mais fina que as névoas, brilharam seus olhos com vivo fulgor de estrelas e, caminhando para os eremitas em passos sonoros, disse a Aldonso que caíra sobre os joelhos, maravilhado:
— "A tua virtude é como o reflexo das árvores verdes nas águas límpidas — uma sombra. A tua penitência não passa de hipocrisia. Cobres-te de sangue como se vestem os príncipes de púrpura: por ostentação. Este que repreendes e condenas é um justo, votado à justiça e a Deus, não procede como tu que não te penitencias sem alarde de gritos e trazes as chagas em exposição. Negas agasalho à mulher com receio de ti mesmo, porque se a visses sem defesa, ao alcance da tua mão, talvez enfraquecesses e te precipitasses no crime. Este que me acolheu acolheria, com o mesmo carinho, um leproso — e não receou incorrer em pecado de luxúria, porque é puro. Esta é a verdadeira piedade, o verdadeiro religioso é este. Quanto ao copioso sangue que espalhas quando te flagelas estrondosamente, não passa da terra e nela escurece em mancha e o canto meigo deste generoso eremita, canto que lhe sai d'alma, é ouvido no céu e foi por ele que vim a este ermo atroante dos teus guaiados (lamentos).
"Não julgues que Deus se comove com as grandes penitências clamorosas — mais vale a seus olhos uma lágrima sincera. Cantando fez este eremita por sua alma o que não fizeste com todo o sangue derramado em tão longos anos. Deus não quer ostentações, quer sinceridade."
Fez-se silêncio. Quando os eremitas saíram do assombro, a mulher havia desaparecido.
Então ergueu-se Aldonso e, acabrunhado, chorando lágrimas amargas, saiu para a noite negra e o ermitão prostrou-se ante o Cristo de pedra agradecendo a visita que o anjo fizera ao seu humilde tugúrio (cabana) e a suave lição de misericórdia com que confundira a vaidade.
Fonte> Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.
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