AS MANHÃS, todos os dias, se abriam numa arquitetura radiosa e indescritível, dessas em que o sol pulava cedo e, ao se levantar, se punha ainda meio que espreguiçadamente sonolento sobre as plantações de milho que se perdiam de vista. Dona Ornela, deficiente visual (contava somente com o olho direito), já havia pulado da cama as quatro, feito o café e chamado seus empregados. Esse pequeno entrave da vista faltosa não se constituía para ela nenhum tipo de problema. Tirava de letra. Levava numa boa. Aceitava a sua condição. Dona Ornela, noventa e nove anos, se constituía numa senhora de mãos calejadas e sorriso acolhedor. De bem com a vida, fazia tempo estava na cozinha preparando as suas famosas pamonhas. O cheiro forte do milho fresco invadia todos os recantos e os vizinhos sabiam que seria mais um dia especial.
A longeva tinha um segredo que guardava a sete chaves: as suas pamonhas eram as melhores da região. No preparo, ela misturava amor, carinho, afeto, e claro, a tradição transladada do berço de seus pais. Os ingredientes se faziam simples: milho verde, leite, açúcar e uma pitadinha de saudade. Logicamente nesse conjunto, havia algo além. Uma fórmula especial que só ela conhecia de cor e salteado. Naquela manhã enquanto mexia a massa, dona Ornela sentiu uma pontada forte na perna. Sempre na mesma. Não uma coisa de primeira vez. Tal incômodo dava sinais de vida, fazia tempo. Não sabia precisar o diagnóstico correto. Achava ser uma espécie de cãibra oriunda de velhos carnavais. Por conta desses imprevistos, nesses momentos que a cada vez se faziam mais presentes e custosos, parava por breves momentos. Se apoiava na mesa onde trabalhava e respirava fundo.
Tomava água. Muita água. Em seguida, mandava uma caneca até a borda de café com leite. O café nunca faltava. A dor, coisa de meia hora depois, sumia de vez. Nesses interregnos, ela se dobrava sobre si mesma, via estrelas. Às vezes chorava e mal conseguia gritar por socorro. Passado o transtorno, ficava a lembrança. Esse registro perdurava. Chegou a pensar, numa dessas, que se não se tratasse, poderia ficar aleijada, ou pior, carecesse de amputar o membro adoecido. Todavia, não parava. Seguia feliz o diário de seus afazeres: “A vida da gente —, nas vezes em que relatava seu problema com a Delza e a Bibiana —, as moças que ajudavam na cozinha, argumentava que se assemelhava “como a uma pamonha com cãibra.” E completava: “Às vezes, precisamos enfrentar a dor para saborear, logo em seguida, o doce prazer de continuar viva e respirando.”
Enquanto as pamonhas cozinhavam, dona Ornela refletia sobre a sua própria jornada. E que jornada! Daria um romance, se alguém se dispusesse a escrever. Perdera o marido, o Luiz Corneteiro, muito precocemente. Quando o conheceu, a criatura tocava corneta na praça da matriz e angariava uns trocados. A figura acabava de completar vinte e cinco anos e ela florescia na esteira dos vinte. Com o falecimento, aos oitenta, dona Ornela batia o pé e reclamava que o Luiz poderia ter esperado mais um pouco para bater as botas. Sozinha, criara os filhos num total de seis. Os rebentos, anos depois, se casaram, arranjaram famílias e, como se esperava, todos, sem exceção, bateram asas em busca de horizontes mais prósperos. Sozinha, a matriarca enfrentara tempestades e secas.
Contudo, sempre encontrava no vazio da sua vida, forças suficientes para seguir em frente, assim como o milho que brotava teimosamente no solo fértil da sua quinta, propriedade que fora comprada com muito sacrifício por seu saudoso e querido pai. Por volta das oito horas, a galera chegava. Abeirava em peso. Às vezes vinham poucos aos bocados. Noutras, pareciam brotar como água em nascente. Davam os ares da graça, não só os confinantes. Também rostos estrangeiros, com paladares atraídos pelo aroma irresistível do comestível caseiro. Dona Ornela servia junto com a Delza e a Bibiana, as pamonhas com um sorriso largo e franco embaladas com jarros de bebidas geladas (sucos de sabores os mais variados). Em cada gole, se alguém quisesse ouvi-la, uma história real de vida sofrida capaz de deixar as pessoas boquiabertas bailava a todo vapor. Cada mordida levava a uma viagem no tempo, tipo uma conexão paradisíaca com as raízes mais profundas e em erupção.
Os clientes riam, choravam e agradeciam. A pamonha, mais do que comida, se precipitava como um abraço apertado para dentro das barrigas esfomeadas, o que a levava, logo depois, a um consolo saudável, talvez, quem sabe, pelas horas difíceis que às vezes precisava atravessar. No final do dia, quando o sol se punha e as estrelas riscavam o firmamento, dona Ornela dispensava as empregadas para as suas residências (as moças moravam dentro do próprio terreno junto com os demais empregados, cada um no seu quadrado) e só então se sentava na velha cadeira de balanço ao lado do fogão de lenha, o bule de café recém-saído do fogo e contava calmamente o montante do dinheiro que conseguira com a venda das pamonhas. Em seguida, saia no terreiro, olhava longamente para o céu, se ajoelhava perto do paiol (onde guardava as espigas de milho a serem usadas) e agradecia à Deus. Orava com humildade e fervor.
Se fechava numa eufemia (prece) aprendida dos tempos em que fizera a primeira comunhão. A bondosa sabia que a vida se assemelhava e sempre repetia esse jargão, como um mantra —, “uma pamonha com cãibra.” Sorria alimentando essa loucura meio que neurastênica. Por vezes, o incômodo chegava doloroso, subversivo, cada vez mais forte e resistente. Tempos depois, coisa de vinte minutos, meia hora, o molesto se retirava. E dona Ornela se quedava recheada de momentos encantadores. Dessa forma meio que piegas, a lenda da pamonha com cãibra se espalhou pela cidade. Não só naquela comunidade pequena. A coisa se alastrou. Correu para outras paragens próximas, como Bandeirantes, Cambará, Barra do Jacaré, Palmital e Itamaracá. Havia dias em que as pessoas vinham dessas urbes para provarem a iguaria mágica de dona Ornela. À frente de seu casarão se ancorava uma infinidade de carros, ônibus de excursão e até caminhões pesados que atravessavam a BR vindo ou indo em direção à São Paulo.
Uma fila enorme se formava para comprar o alimento que cheirava gostoso e cujo sabor donairoso se propagava além da linha da velha estação da antiga Maria Fumaça que cortava a pequena e bucólica Andirá. Ela nunca revelou seu segredo, mas todos sabiam: nas pamonhas habitava um amor incondicional que fazia a diferença. Hoje, meu caro leitor amigo, quando você saborear uma pamonha, se lembre de dona Ornela e a sua inesquecível lição de vida. “Às vezes, precisamos enfrentar as cãibras, as dores corriqueiras, para nos depararmos com o verdadeiro sabor da existência.” Como ela, a querida dona Ornela, encontrou o bálsamo da verdadeira substancia que a matinha viva, forte e a seu modo, feliz. A boa velhinha, infelizmente, veio à óbito aos cem anos. Em seu velório, se fez impossível contar o número de pessoas e carros presentes. No cemitério local a idosa desceu à sepultura enterrada ao lado do marido, o Luiz Corneteiro.
Para quem se dispõe a visitar a pequena e aconchegante Andirá e logicamente o Campo Santo na Rua Ingá, número duzentos e trinta e três, certamente se deparará, no jazigo perpétuo do casal, com duas peças interessantes. Uma corneta em bronze ao lado do busto do Luiz Corneteiro. Na parte dos restos mortais de dona Ornela, a escultura enorme talhada em forma de uma enorme pamonha. E a inscrição feita por toda a comunidade:
“Aqui jaz a memória inquestionável de uma senhorinha elegante e o segredo de uma pamonha de primeiríssima qualidade que fez muita gente se deslocar de rincões distantes para provar o seu sabor inconfundível. Aos cem anos, ela nos deu adeus e hoje repousa dos braços do Pai Maior, para quem, agora, dona Ornela deve estar preparando as suas suculentas e saborosas pamonhas como ela carinhosamente as cognominou de “Pamonhas com cãibra.” Dona Ornela, descanse em PAZ.
Fonte: Texto enviado pelo autor
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