quarta-feira, 13 de março de 2024

Estante de Livros (“Pigmaleão”, de George Bernard Shaw)

A peça se passa na Inglaterra, no início do século XX. Em Covent Garden, os Eynsford Hills estão tentando pegar um táxi na chuva. Quando Freddy sai correndo para chamar um táxi que passava, ele derruba as flores de uma vendedora no chão. A florista, chamada Eliza, aceita da mãe de Freddy e do Coronel Pickering. Um homem observa que há um sujeito escrevendo o que ela está falando. Eliza o confronta, dizendo que não tinha feito nada de errado. O sujeito, que se chama Higgins, espanta a multidão imitando o sotaque dela e adivinhando a origem de cada um dos presentes. Pickering e Higgins se encontram e decidem ir jantar. Antes de partir, Higgins enche a cesta de flores de Eliza com dinheiro. Ela vai embora de táxi.

No dia seguinte, Eliza invade a casa de Higgins, e quer que ele lhe dê aulas de fonética. Pickering, que estava presente, duvida das habilidades de Higgins e aposta que ele não conseguirá fazê-la passar por uma dama da sociedade na recepção da Embaixada dali a um mês. Higgins aceita, e ordena que sua governanta leve Eliza para banhá-la e vesti-la apropriadamente. Mais tarde, chega Doolittle, pai de Eliza, que lhe pede algum pagamento. Higgins simpatiza com ele e lhe dá cinco libras.

Algum tempo depois, a Sra. Higgins está escrevendo algumas cartas em casa quando ela é interrompida pelo seu filho, que a deixa chocada ao contar que está trazendo uma florista para a casa dela. Os Eynsford Hills chegam para uma visita, e pouco depois chega Eliza, com suas novas maneiras e seu novo sotaque. Freddy fica fascinado imediatamente. Eliza comete o engano de praguejar e descrever o alcoolismo da sua tia, e acaba sendo mandada embora por Higgins. Clara pensa que praguejar está na moda e choca sua mãe ao praguejar na hora de sair. A Sra. Higgins critica Pickering e seu filho por não considerarem o que será feito de Eliza depois da experiência.

Na casa de Higgins, à meia-noite, Eliza entra, parecendo exausta. Higgins a ignora, procurando seus chinelos e se vangloriando sobre o sucesso dela em enganar a todos como se fosse seu próprio sucesso. Eliza começa a se enfurecer. Quando Higgins pergunta onde estão seus chinelos, Eliza os arremessa no rosto dele. Ela diz que não sabe mais o que fazer, agora que Higgins a transformou. Ele sugere que ela se case, e ela responde que costumava ser algo melhor que uma prostituta quando vendia flores. Eliza lança o anel que ele lhe dera na lareira. Higgins perde a paciência com ela e sai do quarto. Ela procura pelo anel nas cinzas.

A Sra. Higgins está no seu quarto de vestir quando seu filho entra e conta a ela que Eliza tinha fugido. Chega Doolittle. Ele conta que, depois de ter falado com Higgins, ele o recomendara como um grande pensador para um milionário americano, que morrera e deixara tudo para ele. Doolittle agora era da classe média e odiava cada minuto disso; sua amante o estava forçando a se casar com ela naquela tarde. Eliza desce as escadas – ela tinha fugido para a casa da Sra. Higgins – e Higgins parece embaraçado. Doolittle convida Pickering e a Sra. Higgins para o casamento e eles deixam Eliza e Higgins a sós para conversarem. Eliza diz que não quer ser tratada como um par de chinelos, e que Freddy escreve cartas de amor para ela todos os dias. Quando ela ameaça se tornar uma professora de fonética e usar os métodos de Higgins, ele diz que gosta da nova versão mais forte de Eliza. Ele deseja viver com ela e com Pickering como “três solteiros”.

A Sra. Higgins volta arrumada para o casamento e leva Eliza com ela. Higgins pede a Eliza para que ela resolva algumas coisas para ele, incluindo comprar um pouco de queijo e de presunto. Ela dá um último adeus a Higgins, que parece acreditar que ela seguirá suas ordens.

A peça termina com uma narrativa do destino dos personagens. Eliza conclui que Higgins está destinado a ser um eterno solteirão e ela se casa com Freddy. Com um presente do Coronel Pickering, Eliza abre uma floricultura. Clara decide que o casamento deles não ajudará seus próprios planos matrimoniais. Ela começa a ler H. G. Wells, frequenta os grupos de fãs do escritor e é convidada a trabalhar numa loja de móveis na esperança de um dia conhecê-lo pessoalmente, pois a proprietária também é fã dele. Freddy não é muito prático, e ele e Eliza precisam ter aulas de contabilidade para conduzir seu negócio. Eles conseguem ser bem sucedidos e vivem uma vida bastante confortável.

ANÁLISE

A famosa peça teatral Pigmalião não parte de uma ideia original. No entanto, isto não impediu que Shaw construísse uma obra original. O mote principal do texto vem de Metamorfoses, do poeta romano Ovídio, que se vale do mito de Pigmalião, rei de Chipre, obcecado escultor que, desiludido com as mulheres do seu reino, resolve esculpir para si a mulher perfeita. E a esculpe tão perfeita e tão bela que acaba se apaixonando pela sua estátua. Afrodite, a deusa da beleza e do amor, apiedando-se de Pigmalião, transforma a escultura em mulher, de carne e osso. Portanto, o que nasceu de uma idealização, torna-se realidade. Pigmalião de Ovídio casa-se com sua Galateia e com ela tem filhos.

Shaw, brilhantemente, cria seu próprio Pigmalião, o intragável, arrogante, preconceituoso, impetuoso e cômico professor Higgins. Henry Higgins se dedica ao estudo da língua inglesa, especializando-se em fonética, o que fez dele um profundo conhecedor dos dialetos universais. Esta extrema habilidade o leva, admiravelmente, através das falas de seus interlocutores ocasionais, a determinar, sem que o digam, o local de nascimento e origem de cada um deles.

Há muitas discussões sobre como Bernard Shaw acabou por construir o enredo da peça. Evidente, ele não estava preocupado em formatar mais uma comédia romântica, mesmo que, ao longo do tempo, Broadway e Hollywood, através do belo musical My Fair Lady, tenham se esforçado para transformar o texto original em um conto de fadas. Para Shaw, interessava discutir a terrível estratificação sociocultural através da linguagem e dos comportamentos sociais dela decorrentes. É pela forma como as pessoas falam que passamos a catalogá-las socialmente. E mesmo que pessoas com educação precária e condição social inferior venham a melhorar de vida (o pai de Eliza), elas necessariamente vão se trair pela linguagem, o que as prenderão eternamente à sua origem pobre. O contrário também se faz verdadeiro. Mesmo que o rico se descuide da linguagem, isto não abalará sua posição social. Ele, afinal, nasceu rico, e este é um privilégio indissolúvel. O que Shaw tenta mostrar é que se pode esculpir o ser humano desde que ele próprio se idealize numa perspectiva superior e persiga esta idealização. Pois é. O ser humano pode, sim, idealizar seu destino. Esta é a ideia didática de Shaw. A ascensão social através da transformação pela linguagem. É a crença no poder transformador do ser humano, desde que ele obsessivamente se proponha a tal. É com esta obsessão que o professor Higgins ganha a aposta feita com o coronel Pickering. Ele de fato transforma a ignorante e estúpida florista Eliza Doolittle numa encantadora lady.

Pigmalião pode não passar de uma comédia satírica, simples, rápida, mas é tão bem arquitetada, tão bem escrita, vai ao ponto em questões de relacionamentos e de sonhos, esta ilusão transformadora que carregamos dentro de nós, nos mostrando que quando idealizamos algo bom para nós já estaremos pelo menos afastando a ideia de impossibilidade, por estas e muitas razões, não à toa, o texto de Shaw acaba se transformando num grande clássico da literatura mundial. E que fique bem claro. A idealização de transformação é nossa, está em nós, não no outro. Diferente do que pensa o famigerado Higgins, não se esculpem seres humanos.

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