sábado, 16 de março de 2024

O. Henry (O Guarda e o Hino)

Soapy mexia-se, inquieto, no seu banco da Praça Madison. Quando gansos selvagens grasnam alto, de noite; quando mulheres que não possuem capa de peles tratam bem dos maridos; e quando Soapy se mexe, inquieto, no seu banco do parque — pode-se ter a certeza de que  o inverno não anda longe.

Uma folha morta caiu no colo de Soapy. Era o cartão de visitas do Homem de Gelo, que é bondoso com os habitantes regulares da Praça Madison e honestamente os previne de sua visita anual. Na encruzilhada das quatro ruas, entrega o seu cartão ao Vento Norte, mordomo na mansão de todos os Sem-Teto, a fim de que seus moradores se precavenham.

Na mente de Soapy formou-se a ideia de que era chegado o tempo de convocar uma espécie de comitê de emergência para proteger-se do rigor vindouro. Por isso, ele se mexia, inquieto, no banco.

As ambições hibernais de Soapy não eram das maiores. Não pensava em cruzeiros pelo Mediterrâneo, em modorrentos céus sulinos, ou em deslizar pela Baía do Vesúvio. Três meses na Ilha era o quanto sua alma aspirava. Três meses de cama e comida garantidas, em companhia congênita, livre de Bóreas e de fardas, pareciam a Soapy a quintessência das coisas desejáveis.

Havia já muitos anos, a hospitaleira Blackwells vinha sendo seu quartel de inverno. Assim como, à chegada do frio, os nova-iorquinos mais afortunados reservavam passagem para Palm Beach ou para a Riviera, assim também Soapy fazia modestos preparativos para a sua estada anual na Ilha. E já não era sem tempo. Na noite anterior, três alentados jornais colocados, um debaixo do casaco, outro ao redor dos pés, e outro sobre o colo, não haviam conseguido impedir o frio de castigá-lo, enquanto ele dormia no banco perto da fonte esguichante da velha praça. A Ilha surgia, grande e oportuna, no pensamento de Soapy. Ele desprezava as providências caridosamente tomadas pela municipalidade em favor dos que dela dependem. 

Na opinião de Soapy, a Lei era mais benigna do que a Filantropia. Havia um sem-número de instituições oficiais ou particulares a que poderia recorrer para obter alojamento e comida consuentâneos com um modesto padrão de vida. Todavia, para os de caráter orgulhoso como Soapy, os dons da caridade são incomodativos. Quando não em moeda, todos os benefícios recebidos de mãos filantrópicas têm de ser pagos em humilhações morais. Assim como César teve um Bruto, toda cama gratuita implica em banho prévio, todo pedaço de pão requer um inquérito particular e pessoal. Por isso mesmo, é melhor ser hóspede da Lei, que, conquanto obedeça as regras, não se intromete indevidamente nos assuntos privados de um cavalheiro.

Tendo decidido ir para a Ilha, Soapy tratou de imediatamente por em prática seu plano. 0s meios para fazê-lo eram muitos. O mais agradável seria jantar lautamente em algum restaurante caro; em seguida, declarar-se insolvente, e ser, tranquilamente e sem escândalo, entregue a um policial. Um Juiz condescendente faria o resto.

Soapy levantou-se do banco e, atravessando a praça, chegou ao liso mar de asfalto que une a Broadway à Quinta Avenida. Subindo a Broadway, deteve-se diante de um café cheio de luzes brilhantes, onde se reuniam todas as noites os mais finos derivados da uva, do bicho-da-seda e do protoplasma.

Do último botão do colete para cima, Soapy sentia-se seguro de si. Havia-se barbeado, seu casaco era decente e a elegante gravata preta de laço feito fora-lhe presenteada por uma senhora missionária, no Dia de Ação de Graças. Se pudesse alcançar uma das mesas do restaurante, teria êxito absoluto. A parte de sua pessoa que se mostrasse acima do tampo da mesa não causaria espécie a nenhum garçom. Um pato assado — pensou Soapy — não seria mau, acompanhado de uma garrafa de Chablis, queijo Camembert, um cafezinlio e um charuto. Bastaria um charuto de um dólar. A conta não devia ser tão alta que exigisse uma suprema manifestação de vingança por parte da gerência do café. A carne de pato, no entanto, o deixaria saciado e feliz para a viagem até o seu refúgio de inverno.

Tão logo, porém, pôs ele os pés no umbral do restaurante, o chefe dos garçons viu-lhe as calças esfarrapadas e os sapatos cambaios. Mãos fortes e experimentadas deram-lhe meia volta e o conduziram, rápida e silenciosamente, de volta outra vez à calçada, alterando assim o ignóbil destino que aguardava o pato.

Soapy deixou a Broadway. Parecia que a estrada para a Ilha desejada não seria epicuriana. Precisava pensar noutro meio de chegar lá.

Na esquina da Sexta Avenida, uma profusão de luzes e vários artigos dispostos com arte por detrás dos vidros de uma vitrina chamavam a atenção dos transeuntes. Soapy apanhou uma pedra e atirou-a contra o vidro.

Logo acorreu um grupo de pessoas, com um guarda à frente. Soapy ficou parado, com as mãos nos bolsos, e sorriu ao ver os botões de metal.

— Quem fez isso? — perguntou o guarda, excitado.

— Não percebe que eu talvez tenha alguma coisa a ver com o caso? — disse Soapy, algo sarcástico, e amavelmente, como quem cumprimenta a boa sorte.

A mente do policial recusava-se a aceitar Soapy, mesmo como pista. Homens que quebram vitrinas não permanecem no local do crime à espera dos mercenários da lei. Fogem logo. Vendo alguém na metade do quarteirão, a correr para tomar um carro, o guarda ergueu o seu bastão e saiu-lhe no encalço. Duas vezes mal sucedido, Soapy demorou-se por ali, com a alma desgostosa.

Do outro lado da rua, havia um restaurante sem muitas pretensões. Atraía grandes apetites e bolsas modestas. Sua louça e sua atmosfera eram espessas; a sopa e a toalha, muito ralas. Sem qualquer dificuldade, Soapy introduziu ali suas calças indiscretas e seus sapatos acusadores. Sentou-se a uma das mesas e devorou bife, doces folhados, roscas e uma torta. Findo o repasto, confessou ao garçom que não possuía um níquel que fosse.

— Agora mexa-se e chame a polícia — disse Soapy. — Não faça um cavalheiro esperar.

— Nada de tiras para gente como você — respondeu o garçom, com voz untuosa e olho salientes. — Vamos lá, Con!

Dois garçons atiraram Soapy ao duro pavimento, onde ele caiu exatamente sobre o ouvido esquerdo. Ergueu-se, junta a junta, como um metro de carpinteiro ao se abrir, e limpou a poeira da roupa. A prisão lhe parecia um sonho róseo. A Ilha estava muito longe. Um policial, postado diante de um drugstore duas portas além, riu-se e afastou-se pela rua abaixo.

Soapy percorreu cinco quarteirões antes de readquirir coragem bastante para tentar mais uma vez ser preso. Então, apresentou-se-lhe uma oportunidade que chamou fatuamente de "barbada". Uma moça de aparência modesta e cativante estava parada diante de uma vitrina, examinando com grande interesse os potes de barbear e os tinteiros ali expostos; a duas jardas da vitrina, um policial corpulento, de aparência severa, encostara-se a um hidrante.

Era intenção de Soapy representar o papel do janota desprezível e execrado. A aparência refinada e elegante de sua vítima e a proximidade do consciencioso tira encorajaram-no a acreditar que em breve sentiria a agradável manopla oficial sobre o braço, o que lhe asseguraria uma temporada hibernal na pequenina e catita Ilha.

Soapy endireitou a gravata de laço feito da missionária, puxou para fora os punhos encolhidos, entortou o chapéu num ângulo audacioso, e foi-se por ao lado da moça. Lançou-lhe olhares insistentes, tossiu e pigarreou para chamar-lhe a atenção, sorriu-lhe afetadamente e com descaro recitou-lhe a litania impudente e desprezível do conquistador. De soslaio, Soapy percebeu que o policial o fitava atentamente. A moça afastou-se um pouco e voltou a concentrar-se nos potes de barbear. Soapy a acompanhou, audaciosamente, tirou-lhe o chapéu e disse:

— Olá, beleza, não quer vir brincar um pouco no meu quintal?

O policial continuava a olhar. Bastaria à moça perseguida mover um dedo e Soapy estaria praticamente a caminho do seu paraíso insular. Já imaginava sentir o calor aconchegante do posto policial. A moça voltou-se para ele e estendendo a mão, agarrou-lhe a manga do casaco.

— Sim, meu bem — disse, alegremente — se você me ensinar a fazer bolhas de sabão. Já lhe teria respondido antes se o guarda não estivesse olhando.

Com a moça agarrada a si como a hera ao carvalho, Soapy, contristado, cruzou pelo policial. Parecia estar mesmo condenado à liberdade.

Na primeira esquina, desvencilhou-se da companheira e pôs-se em fuga. Deteve-se no distrito em que, à noite, se encontram as ruas, vozes, promessas e libretos mais alegres. Mulheres envoltas em peles e homens de sobretudo movimentavam-se lentamente no ar invernoso. Um medo repentino apoderou-se de Soapy, de que algum encantamento temível o houvesse tornado imune à prisão. Tal pensamento deixou-o meio em pânico, e quando encontrou outro policiai rondando imponentemente a entrada iluminada de um teatro, agarrou-se à tábua salvadora da "conduta desordeira".

No pináculo da sua voz rouca, Soapy começou a berrar, em plena rua, o palavrório enredado dos bêbados. Dançou, urrou, esbravejou, e fez tudo quanto sabia para perturbar os circunstantes.

O policial girou seu bastão, voltou-lhe as costas, e observou, a um cidadão.

— É um dos rapazes de Yale, comemorando a surra que deram no Colégio Hartford. Barulhento, mas inofensivo. Temos ordens de deixá-los em paz.

Desanimado, Soapy interrompeu a algazarra inócua. Será que guarda nenhum lhe deitaria as mãos? Na sua imaginação, a Ilha parecia uma Arcádia inatingível. Abotoou o casaco ralo para se proteger do vento enregelante.

Numa tabacaria, viu um homem bem trajado acendendo o charuto numa chama vacilante. Ao entrar, colocara ele seu guarda-chuva de seda junto à porta. Soapy penetrou na loja, apoderou-se do guarda-chuva e foi-se retirando devagar. O homem que acendia o charuto seguiu-o apressadamente.

— Meu guarda-chuva — disse, com voz ríspida.

— Seu, é? — zombou Soapy, acrescentando o crime de insulto ao de roubo ligeiro. — Bem, por que não chama um guarda? Roubei-o, seu guarda-chuva! Por que não chama um guarda? Lá está um, na esquina.

O dono do guarda-chuva diminuiu o passo. Soapy fez o mesmo, com o pressentimento de que a sorte mais uma vez o traíra. O policial olhou para os dois com curiosidade.

— Naturalmente — disse o homem do guarda-chuva —, isto é... bem, o senhor sabe como são esses enganos... eu... se é seu, espero que me desculpe... apanhei-o hoje de manhã num restaurante... se o reconhece como seu, espero que...

— Claro que é meu — respondeu Soapy, rancorosamente.

O ex-dono do guarda-chuva retirou-se. O policial correu a ajudar uma loira alta, em casaco de gala, que atravessava a rua por onde vinha, a dois quarteirões de distância, um bonde elétrico.

Soapy encaminhou-se para leste, por uma rua em conserto. Atirou o guarda-chuva raivosamente dentro de uma escavação de esgoto. Praguejou contra os homens que usam capacetes e bastões. Justamente porque queria cair-lhes nas garras, pareciam considerá-lo um rei incapaz de erro. 

Por fim, Soapy chegou a uma das avenidas de leste, onde as luzes e os ruídos eram mais fracos. Voltou o rosto em direção da Praça Madison, pois o instinto doméstico sobrevive mesmo quando o lar não passa de um banco de jardim,

Todavia, numa esquina particularmente quieta, Soapy deteve-se. Deteve-se diante de uma velha igreja, esquisita, desconjuntada, cheia de empenas. Uma luz suave coava-se por uma janela de vitrais roxos, atrás da qual, sem dúvida, o organista martelava as teclas, certificando-se de que dominava bem o hino de sábado vindouro. Aos ouvidos de Soapy chegavam os sons de uma doce melodia, que o encantaram e o deixaram interdito junto aos arabescos da grade de ferro.

Lá em cima ia a lua, brilhante e serena; os veículos e os pedestres eram poucos; os pardais pipilavam sonolentamente nos beirais — por um instante, a cena pareceu reproduzir um cemitério campestre. E o hino executado pelo organista algemava Soapy à grade de ferro: ouvira-o muitas vezes nos dias em que sua vida incluía coisas como mães e rosas e ambições e amigos e pensamentos e colarinhos imaculados.

A conjunção do estado de espírito receptivo de Soapy e das influências à volta da velha igreja operaram uma súbita e maravilhosa mudança na sua alma. Percebeu, com acerbo horror, o abismo em que despencara, os dias degradantes, os desejos indignos, as esperanças mortas, as faculdades arruinadas e os sórdidos motivos que lhe constituíam a vida. E num instante o seu coração respondeu, emocionado, a esse novo estado de espírito. Um impulso instantâneo e poderoso incitou-o a lutar contra a sua sorte desesperada. Arrancar-se-ia ao atoleiro; faria de si mesmo um homem, novamente; venceria o mal que dele se apoderara. Ainda estava em tempo: era comparativamente moço; ressuscitaria suas antigas e imperativas ambições e procuraria satisfazê-las sem vacilai'. Aquelas solenes, mas suaves, notas de órgão haviam desencadeado uma revolução dentro dele. Amanhã, iria para o turbulento distrito comercial da cidade à cata de emprego. Certa vez, um importador de peles lhe oferecera um lugar de motorista. Iria procurá-lo no dia seguinte para pedir-lhe o emprego. Seria alguém na vida. Seria...

Soapy sentiu uma mão sobre o seu braço. Voltou-se rapidamente e deu com o rosto largo de um policial.

— Que está fazendo aqui? — perguntou-lhe o guarda.

— Nada — respondeu Soapy.

— Então venha comigo — intimou o policial.

— Três meses na Ilha — sentenciou o Juiz, no Tribunal de Polícia na manhã seguinte.

Fonte> O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. 
Disponível em Domínio Público.

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