Se por estas páginas já passaram, cães, gatos, cavalos e até uma borboleta, quem diz que uma águia não pode entrar, sutilmente, no contexto de uma vida, viabilizada por uma página impressa? - Provo que sim, neste miniconto.
REDENÇÃO
A revista chegou-lhe às mãos por acaso, escolhida, entre muitas, numa sala de espera qualquer. O artigo era encimado por apenas uma palavra - Curiosidade. E o que poderá haver de mais oportuno para atrair as atenções do que essa palavra chave?!
Aquela página contava que a águia é uma ave longeva. A mais longeva de todas as aves - chegando a viver cerca de setenta anos! Os primeiros quarenta, representam o seu apogeu, seguido de um período bastante sério que põe à prova o poder de decisão dessa potente criatura.
Chegada ao período crítico, aquela águia sente que suas garras não são mais as mesmas, agora demasiado longas, maleáveis, sem mais lhe oferecerem forças necessárias para segurara presa indispensável à própria manutenção. O bico, agora mais longo, encurvado na ponta, cada vez mais se torna um verdadeiro estorvo, na hora de alimentar-se. E assim, também, as penas volumosas e pesadas – empecilhos evidentes para largos voos.
Da soma de tudo, agiganta-se o impasse revelador: - Deixar-se morrer, ou tentar reverter o problema?!
Bem curto, no entanto, o período de indecisão, antes que a águia se lance ao espaço e ganhe altura, a valer-se, dos parcos recursos que suas asas, já bastante pesadas, ainda lhe oferecem.
Chegada ao alto da montanha, resoluta, a águia bate o bico, forte e seguidamente, contra uma parede de pedra qualquer, até conseguir despedaça-lo. Sem jamais desistir e sem deixar-se abater pela dor lancinante!
- A partir de então, corajosa e dona de uma tenacidade inacreditável, aguarda por cerca de cento e cinquenta dias, até que novo bico torne a crescer, para com ele arrancar, uma a uma, as longas e tortas unhas, permitindo que novas e potentes garras voltem a nascer também, a garantir-lhe defesa e futura subsistência.
Como se isto não bastasse, também as penas velhas e pesadas, que a impediam de voar, são extraídas com estoicismo, complementando a reforma perfeita.
Revigorada, afinal, aquela águia, sem tardança, lança-se ao espaço num autêntico voo de redenção que lhe facultará mais trinta anos de vida intensa e produtiva!
Perplexa, a moça fechou a revista, desinteressada de tudo mais que a mesma pudesse lhe oferecer, além daquele fabuloso artigo.
Ninguém, naquela sala de espera. Ajeitou o corpo cansado na poltrona como em colo de mãe, deixando que as pálpebras descessem devagarinho. Chegava a duvidar daquilo que lera! Seria mesmo possível? Ou... mera ficção?!
Sofrida, por instantes, permitiu que sua vida inteira perpassasse por detrás das pálpebras fechadas, tal como retrocesso de filme de curta mensagem, mostrando-lhe, sem pausas, o quanto vivera e o quanto mais poderia viver se... liberta do peso das asas e das limitações impostas aos próprios voos.
Logo, como num milagre, a nova criatura, meio águia, meio mulher, ergueu-se decidida, atirando-se, de peito aberto, contra as paredes de pedra do seu frágil ego, agora valorizado ante si mesmo.
Arrebentou-se toda! Sofreu o que pensou não suportar!
Mas, estóica, a partir daquele instante, libertou corajosamente aquela ave cativa e triste, há tanto tempo engaiolada dentro dela mesma.
Sem mais sentir nos ombros o peso daquelas tão pesadas "penas", lançou-se no espaço, ao encontro de horizontes promissores, mais amplos, mais ciaros... E muito mais sadios do que aquele que nublava o seu olhar sofrido e que, de-fi-ni-ti-va-men-te, ousava ultrapassar.
Fonte> Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.
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