domingo, 17 de março de 2024

Luís da Câmara Cascudo (O Veado de Plumas)

Era uma vez uma rainha que seria completamente feliz se tivesse filhos. Estava, numa ocasião, tão excitada que, não reparando que era justamente o pino do meio-dia, hora em que os anjos do Céu estão cantando, gritou:

– Meu Deus! Pelas horas que são! Dai-me um filho nem que seja com cara de bicho...

Nasceu-lhe um filho forte, bem feito, rosado, mas tendo em vez de rosto um focinho de veado.

Cresceu depressa, muito inteligente e agradável, possuindo uma sabedoria fora do comum e virtudes mágicas. O Rei e a Rainha traziam-no escondido para que ninguém soubesse que o herdeiro do trono tinha cara de veado.

Ao pôr-se rapaz, o príncipe pediu que o deixassem sair pelo mundo, procurando aventuras para esquecer seu físico. Os pais deram permissão e o príncipe viajou numa noite escura, para que não o vissem os súditos de seu pai.

Andou, andou, andou dias e dias, até que finalmente chegou a um reinado muito grande e bonito. Logo na entrada da cidade estava um letreiro convidando qualquer homem a construir uma ponte ligando as duas partes do reinado que eram divididas por um abismo sem fundo, obrigando aos moradores a uma volta de mais de cem léguas. Quem construísse a ponte seria pago com o seu peso em ouro e casaria com uma das três filhas do rei. Caso contrário sofreria a pena de morte.

Muita gente morrera tentando levantar a ponte. Quando o trabalho estava prestes a findar-se, erguia-se um pé de vento e desmanchava tudo.

O príncipe de cara de veado ofereceu-se e foi aceito. Ficou na beira do precipício, deitou-se e dormiu como se estivesse em casa. Passou quase todo o dia seguinte passeando e olhando para todos os lados como se não tivesse o que fazer. Da janela mais alta do palácio a princesa acompanhava os passos do Cara de Veado.

Ao anoitecer, o príncipe andou para lá e para cá, como se estivesse rezando. Parou, abriu os braços e apareceu uma nuvem de trabalhadores, em ambos os lados da barranca, iniciando imediatamente o serviço. Toda a noite houve o rumor de um formigueiro e ao romper do dia uma ponte de pedra ligava as duas margens do abismo, ponte larga, sólida, assombrando a todos.

O Rei ficou satisfeitíssimo. Cara de Veado recusou o ouro e esperou a noiva. As duas filhas do Rei nem admitiam a ideia de alguém sonhar em casá-las com uma criatura feia como o Cara de Veado. A mais moça declarou-se pronta a ser mulher do príncipe misterioso.

Foi um casamento feito depressa porque não tinha graça ver-se uma moça bonita casada com um camarada meio homem, meio bicho. Depois da cerimônia, o Rei perguntou ao genro onde ele queria morar.

– Na minha casa, real senhor!

E mostrou um palácio que era uma Babilônia, aparecido por encanto perto da mansão do rei.

A princesa casada vivia feliz, mas Cara de Veado não queria acompanhar a mulher para parte alguma, temendo envergonhá-la. As duas outras princesas casaram com dois príncipes elegantes e estavam orgulhosas dos maridos, fazendo inveja à irmã mais moça.

Sucedeu que, de tantos em tantos anos, o Rei mandava realizar umas cavalhadas muito concorridas. Vinha gente até do fim do mundo assistir. Todos os fidalgos corriam às justas, com lanças, tirando as argolinhas de ouro que eram dadas às damas, com muitos aplausos da multidão. Depois seguia-se um baile que durava a noite toda.

As duas princesas passavam os dias examinando vestidos e sonhando com as festas. A irmã caçula aparentava alegria, mas estava triste porque o marido não havia de correr às argolinhas com aquela cara.

Na manhã do dia das cavalhadas, Cara de Veado chamou a mulher e lhe disse:

– Aqui está o vestido que você deve ir à festa. Dê-me um banho, cate meus piolhos, perfume meu corpo e ficarei fechado num quarto até sua volta. Não quero que notem sua falta.

A princesa fez tudo quanto o marido pedira e, muito a contragosto, trancou-o num quarto, vestiu-se, tomou a carruagem e seguiu. Quando ela apareceu no tablado, todo mundo bateu palmas porque era a mais bonita de todas.

Começou a corrida. No meio dos cavaleiros apareceu um homem desconhecido, bonito, forte, bem armado e num cavalo que era um corisco. Correu todos os torneios e tirou todas as argolinhas. Ninguém o conhecia e quando os cavaleiros desfilaram junto do Rei para saudá-lo, o desconhecido baixou a lança de prata e deixou todas as argolinhas de ouro no colo da mulher do Cara de Veado.

O povo bateu tanta palma que a cidade estrondava.

A mulher do Cara de Veado quis sacudir fora as argolinhas e não fez para não afrontar a fidalguia, mas tomou a carruagem e voltou para casa. Encontrou o marido onde o deixara, perguntando se gostara das corridas. Ela respondeu contando o que sucedera.

– Você não gostaria mais de se ter casado com um cavaleiro como esse que lhe deu as argolinhas, do que comigo?

– Eu não troco meu marido por todos os cavaleiros desse mundo – respondeu a princesinha.

– Menos dois – disse o Cara de Veado.

A mulher não entendeu e o marido não lhe explicou.

No dia seguinte houve o mesmo caso. O cavaleiro desconhecido reapareceu, melhor vestido, montado e armado, e ganhou as argolinhas. Foi saudar o Rei e deitou-as todas no regaço da mulher do Cara de Veado. Depois, picou o cavalo nas esporas e sumiu-se.

A mulher voltou e contou o acontecido. Cara de Veado perguntou se ela não seria mais feliz com o desconhecido do que com ele.

– Eu não troco meu marido por todos os cavaleiros do mundo – foi a resposta.

– Menos dois – resmungou o Cara de Veado.

No terceiro, a mesma façanha. Cara de Veado ouviu a história e a resposta da esposa e disse:

– Menos dois...

E mandou que a mulher se vestisse para o baile. A mulher não queria ir, mas ele obrigou-a. A princesinha foi resolvida a não dançar porque só desejava dançar com o marido. No meio da festa apareceu o cavaleiro misterioso tão bem-vestido que causou espanto. Todas as damas e donzelas queriam dançar com ele, mas o cavaleiro foi até onde estava a mulher do Cara de Veado e pediu-lhe a honra de uma dança. Para não fazer desfeita, a moça aceitou e dançaram com muita graça várias vezes.

À meia-noite a princesinha saiu do baile e voltou para a casa. Encontrou Cara de Veado na mesma posição e houve a mesma troca de perguntas e respostas.

– Menos dois – repetiu.

Pela manhã a mulher deu a comida ao marido e foi administrar sua casa. Num quarto velho que havia no fim do palácio, viu um armário grande, empoeirado. Espanou-o e abriu-o. Qual não foi sua surpresa quando deparou todas as roupas que o cavaleiro misterioso usara nos três dias do torneio e no baile da véspera. Estava de boca aberta mirando aquelas maravilhas, quando ouviu um gemido. Voltou-se e viu o Cara de Veado.

– Você não ouviu eu dizer, por quatro vezes, “menos dois”? Pois cada vez que tinha uma prova de sua fidelidade, descontava dois anos no tempo do meu encanto. Esse quarto fechado não podia ser aberto porque fica fora do governo da casa. Sua curiosidade mudou meu destino e não posso mais ficar aqui.

A princesinha começou a chorar. Cara de Veado abriu uma janela enorme que havia e pediu que a mulher olhasse para o nascente e fosse dizendo o que avistasse. A mulher obedeceu.

– Estou vendo uma nuvem escura!

– Não é essa...

– Estou vendo uma nuvem cinzenta!

– Não é essa...

– Estou vendo uma nuvem branca!

– É esta! Adeus!

A nuvem branca foi crescendo, crescendo, encheu o quarto e no meio dela Cara de Veado pulou. A nuvem subiu, subiu, e a mulher avistou um grande Veado coberto de plumas, olhando-a do alto. E desapareceu.

Imediatamente o palácio desmanchou-se como se fosse feito de fumaça. A princesinha voltou para o palácio do rei seu Pai, chorando como uma órfã. O Rei recebeu-a muito bem, mas as duas irmãs riram muito da situação dela.

– Quem lhe obrigou a casar com bicho em vez de casar com gente? Vá procurar seu marido nos matos!...

A princesa deliberou procurar o marido pelo mundo. Muniu-se de um bordão e caminhou, caminhou, caminhou...

Num cair da noite chegou a uma casinha muito limpa e agradável, onde viu uma velha asseada e risonha que a recebeu com caridade. Deu-lhe de comer, de beber. A princesinha contou sua vida. A velha lhe disse:

– Minha filha, isto aqui é perigoso, mas, como você é protegida de Deus, eu vou tentar. Esconda-se por trás desse fogão porque a minha Filha quando chega, tudo fica gelado.

– Quem é sua filha?

– A Lua!

Quando a Lua chegou, a casinha ficou banhada por uma luz que parecia leite. A Lua estava de mau humor, farejando alto:

– Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

– Não é nada, minha filha. Jante e vamos conversar.

A Lua jantou e sossegou. A mãe perguntou:

– Minha filha, se por aqui chegasse uma peregrina, cansada e triste, que faria você?

– Eu, minha mãe? Tratá-la-ia bem...

A moça saiu de trás do fogão e a Lua recebeu-a bem, ouvindo-a contar sua história. Depois disse:

– Queria ajudar mas não sei onde fica o reinado do Veado de Plumas. Quem deve saber é minha madrinha, a Noite.

Sucedeu na casa da Noite o mesmo que houvera na casa da Lua. A Noite ignorava o reinado do Veado de Plumas e indicou a casa do Sol.

A princesinha seguiu seu caminho. O Sol, aquietado por sua mãe, conversou com a moça, mas desenganou-a quanto ao itinerário.

– Não sei. Quem deve saber são os Ventos.

Lá se foi a princesinha para a casa dos Ventos. A mãe dos Ventos alimentou-a, escondeu-a e aplacou a fúria dos filhos que chegaram uivando como uns desesperados. Depois do jantar, puseram-se às boas e entraram na conversa. O Vento Norte não sabia, nem o Vento Sul. O Vento Oeste já ouvira falar. O Vento Leste ficou importante:

– Sei onde é. Fica longe. É um reinado bonito, governado por um veado vestido de plumas muito alvas e brilhantes. Eu a levo amanhã.

Pela madrugada a mãe dos Ventos acordou a princesinha e lhe disse:

– Minha filha, quando você chegar lá, esconda-se na mata da lagoa do meio. Tem duas pedras de prata numa margem e aí todos os bichos encantados vêm beber água, diariamente. Fique de jeito que, assim que o Veado de Plumas baixar a cabeça na água, pule em cima, agarre-se nele e não se solte, haja o que houver. Deus a leve...

O Vento do Nascente arrebatou a moça e voou quase todo o dia. Ao tombar da noite deixou-a num caminho, perto da floresta. A moça viu a lagoa. Correu para lá e escondeu-se junto das duas pedras de prata.

Todos os animais vinham beber, aos grupos. Ao crepúsculo, ouviu-se um barulho de paus quebrados e galhos partidos e os bichos todos correram com medo. Apareceu então um Veado de Plumas enorme, majestoso como um monarca, e veio vindo, veio vindo, devagar, o focinho para o ar, desconfiado. Ia chegando para perto e, de repente, dava um trote e ficava longe. Depois voltava, aspirando forte, inquieto. Tanto se chegou, tanto se chegou que deu as costas para o lado da moça e pôs o focinho na água da lagoa. A moça, mais que depressa, saltou-lhe em cima, grudando-se no seu pescoço como se fosse um cadeado.

O Veado de Plumas deu mais de mil saltos, pulos, reviravoltas, bramando, atirando coices que escureciam, esfregando-se pelas árvores, correndo, mas a princesinha não o largou e mais e mais se segurava naquele turbilhão de pinotes e piruetas. Tanto o Veado saltou e se encostou nos espinhos que as plumas foram voando, uma a uma, e o couro se transformando em pele humana. Quando o veado cansou extenuado, e parou, estava mudado num príncipe bonito e forte, com a princesinha pendurada ao pescoço.

Foram juntos para o palácio que se erguia no centro da floresta. Entraram e foram recebidos pelos fidalgos que eram os animais desencantados. Um jantar magnífico apareceu e festejaram toda a noite o fim da penitência.

Pela manhã o Rei, sogro do Cara de Veado, foi olhar pela janela do seu palácio e viu um castelo muito mais imponente que o seu, ao lado. Mandou perguntar quem morava nele e, ao saber que voltara sua filha e o marido, correu para abraçá-los, chorando de alegria.

Houve festejos públicos três dias.

As duas princesas ficaram tão furiosas com a vitória da irmã que se precipitaram da torre, espatifando-se nos lajedos da calçada.

A rainha-mãe de Cara de Veado, que estivera todo esse tempo muda, recobrou a fala, sinal de que Deus lhe perdoara.
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OBSERVAÇÕES SOBRE O CONTO

Dividindo-o, é possível reconhecer as procedências, nos fabulários europeus, especialmente da península ibérica. Poder-se-ia chamar a história Cara de Veado, mas as narradoras teimavam em dizê-la Veado de Plumas. Os príncipes encantados que nasceram com focinho de cão, de macaco, de burro foram muitos. A atuação do Cara de Veado nas corridas de argolinhas já o filia a outro ciclo, assim como a presença no baile, tentando seduzir a própria esposa. No conto Bicão, que Silva Campos recolheu na Bahia (nº LXVIII), há o mesmo diálogo entre a moça e o príncipe encantado, mandando este que ela diga se vê as nuvens. A moça anuncia as nuvens escura, cinzenta e branca, que o leva. A viagem da esposa, peregrinando pela casa da Lua, da Noite, do Sol e dos Ventos, procurando saber onde ficava o reinado do Veado de Plumas, é um dos pormenores mais tradicionais na Europa. Ocorre, entre alguns contos, no Le Pays des Margriettes (Jean Fleurys, Littérature Orale de la Basse-Normandie, Paris, 1883), no A Paraboinha de Ouro (Teófilo Braga, nº 31), El Castillo de Oropé (Aurélio M. Espinosa, nº 128, Soria, Espanha), etc. O final exótico, da luta com o Veado de Plumas, não recordo haver encontrado símile.

A viagem da esposa é um dos motivos mais conhecidos dos contos europeus, ao redor do tema da “Terra a leste do Sol e a oeste da Lua”, os ventos (o vento Sul ou o Norte) levam a moça para o esposo, seguindo-se pormenores sempre diversos. Os contos dos irmãos Grimm, de George Webbe Dasent, a coleção escocesa de Campbell registram variantes.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.

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