sexta-feira, 8 de março de 2024

Estante de Livros (“Angústia”, de Graciliano Ramos)

Apesar de Vidas Secas (1938) ser considerada a obra emblemática do escritor alagoano Graciliano Ramos, o romance Angústia é uma de suas obras-primas, mesmo que ignorado pela crítica na época de sua publicação, em 1936. Segundo o professor Fabio Cesar Alves, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, da USP, Angústia é o terceiro romance do autor – os dois anteriores são Caetés (1933) e São Bernardo (1934) – e foi lançado quando Graciliano Ramos ainda se encontrava preso, sem processo nem acusação formal, pela polícia política de Getúlio Vargas.

“A contragosto do próprio Graciliano, o romance sai com ele ainda na prisão. Inclusive os companheiros de cela fazem uma festa para comemorar dentro do presídio a publicação de Angústia e ele autografa vários exemplares para seus companheiros, que eram pessoas como Eneida de Moraes, Olga Benário e Aparício Torelly”, conta o professor. “De certo modo é um livro que vem à tona num momento muito crítico da vida brasileira”, acrescenta.

Segundo Alves, “a questão fundamental é que nesse romance, em particular, Graciliano Ramos, que já é autor de uma obra bastante introspectiva, consegue unir essa introspecção à crítica social, que é própria da geração de 30”. Para o professor, Angústia é um romance que promove uma espécie de amálgama entre a tomada de consciência do País nos anos 30 e a introspecção e o subjetivismo próprios dos romances anteriores.

Penso que esse livro dá conta dessas contradições que estavam em jogo nos anos 30 e, ao mesmo tempo, mostra uma espécie de falta de horizonte do Brasil e desse personagem-narrador, que é o Luís da Silva, funcionário público de 35 anos, solitário, desgostoso da vida, num momento de modernização acelerada do País. ” E nesse sentido, segundo o professor, é bastante atual, porque procura mostrar também o que permanece de patriarcal, de escravista e de atrasado na nossa estrutura e na nossa vida social. “O saldo é extremamente amargo. É uma denúncia daquilo que permanece insuperável.

O professor explica que Luís traz lembranças de uma abolição recém-proclamada, do patriarcado – representado pelo seu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva – e do velho mundo da fazenda, que, de certo modo, esse narrador procura recuperar no seu presente, o Brasil moderno dos anos 30.

“Para Luís, Julião Tavares, com quem disputa o amor de Marina, representa a burguesia arrivista que ele tanto odeia. É o poder do dinheiro e não mais da posição social herdada. Portanto, há um confronto entre o velho País colonial e o novo País que começava a ser construído a partir da era Vargas”, relata. “O Luís é uma espécie de desambientado em Maceió, porque ele vem dessa oligarquia rural e decadente, que faz ressoar a biografia do próprio Graciliano, que também é um ramo empobrecido da oligarquia nordestina”, comenta o professor.

Além disso, o tom da narrativa é totalmente delirante. “É um livro contado em estado de delírio. O Luís da Silva abre delirando e fecha sua confissão delirando, porque a não separação entre o real e o irreal é uma das tônicas dessa personalidade do protagonista, a tal ponto que de fato não há consequências para a ação que ele comete no final do romance, que é o assassinato de Julião Tavares”, analisa Alves, lançando a hipótese de que talvez esse crime nem tenha acontecido de fato.

Para falar da exuberância da narrativa, o professor cita o crítico literário Antonio Cândido (1918-2017), que disse ser bastante incomum essa característica nas obras de Graciliano Ramos, autor conhecido por seu estilo seco, conciso e direto. “ Angústia é o contrário disso. É um livro bastante derramado, bastante gorduroso, mas tudo isso está a serviço dessa lógica delirante do Luís, dessa mentalidade perturbada de um sujeito que se vê acuado na Maceió moderna dos anos 30”, informa.

Segundo o professor, a perspectiva pela qual ele lê a realidade – as associações entre passado e presente – está colocada toda sob essa chave da deformação expressionista. “É curioso, porque Graciliano, um realista no sentido forte da palavra, se vale das técnicas de vanguarda para dar conta dessa situação delirante do Luís.

Outra curiosidade, diz o professor, são os dois títulos propostos para o livro que não foram adiante. O primeiro, Um Colchão de Paina se refere ao colchão da prisão em que Luís se imagina depois de cometer o crime contra Julião Tavares, e 16384 ao número do bilhete de loteria com o qual Luís sonhava para ganhar dinheiro e conquistar, efetivamente, o amor de Marina.

Como as outras narrativas de Graciliano, o que está em jogo, em Angústia, é o ataque à sociedade burguesa. 

Angústia lançado no período em que Graciliano Ramos estava preso – de março de 1936 a janeiro de 1937 –, é uma narrativa escrita em um momento de Estado de exceção no Brasil, diz Alves. “O Estado Novo começa em 1937, mas a perseguição à esquerda e a qualquer pessoa considerada subversiva começa em abril de 1935, com a Lei de Segurança Nacional”, lembra o professor. “Portanto, é uma narrativa que vem no fluxo dessa perseguição. Há nesse romance um mundo concentracionário muito marcado, com uma atmosfera densa e opaca da história brasileira naqueles anos, que aparece como atmosfera da narrativa. ”

O professor ainda comenta que, assim como as outras narrativas de Graciliano Ramos –  Caetés São Bernardo e, depois, Vidas Secas -, o que está em jogo em Angústia também é o ataque à sociedade burguesa e ao conservadorismo. “Enfim, a todas essas manchas que parecem superadas e que nos dizem respeito nos dias de hoje.

É por isso que a literatura e as humanidades incomodam tanto. Porque elas mostram um aspecto do País que não é o desejado”, acredita Alves, ressaltando que há uma dimensão de enfrentamento do real que aparece não só em Graciliano Ramos, mas em Machado de Assis, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, entre outros grandes autores. “A literatura brasileira é uma forma de pensar o País.
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ENREDO
O narrador-personagem e protagonista Luís da Silva, acaba de se recuperar de uma grande crise que o acometeu há 30 dias e o derrubou na cama, delirante e com febre. É a história desta crise que ele conta nas páginas seguintes.

A virada na vida de Luís, homem sem posses mas de algumas economias, acontece quando ele começa a se envolver com a vizinha, Marina. Ela é descrita como uma mulher forte e de personalidade, e mais tarde Luís começa a pintá-la no livro também com jeito de interesseira. A relação entre os dois começa a se desenrolar com alguns encontros no quintal, mas logo assumem um compromisso.

Quanto mais se envolvem, no entanto, mais Marina passa a exigir: para se casar, precisa de enxovais, roupas de cama, móveis, tecidos. Luís acaba com todas as economias na esperança de mantê-la por perto, e chega a se endividar para seguir presenteando a noiva. Até que o terceiro elemento do triângulo amoroso de “Angústia” aparece na história.

Julião Tavares é um homem, na visão do protagonista, degenerado. Descrito como inconveniente e repulsivo, ele conquista a atenção de Marina. Afinal, apesar de não vir de uma família tradicional, é herdeiro de uma loja de tecidos e rico. Para a vizinha de Luís isso bastava. Aos poucos, o protagonista e sua noiva vão se distanciando, até que ela começa a se encontrar com Julião. O novo pretendente a corteja com jantares, a leva no teatro e a presenteia com roupas.

Com o desenrolar do romance, a raiva de Luís só cresce. Além de endividado comprando tudo o que poderia oferecer à vizinha, acabou abandonado. Ele passa a perseguir Marina, vigiando seus passos, em uma obsessão. E nota quando ela é abandonada por Julião – que logo começa a namorar outra moça.

O narrador também relata ter escutado uma conversa de Marina com sua mãe em que ela confessa ter engravidado de Julião, e dias depois a segue quando ela vai ao encontro de uma parteira conhecida por fazer abortos. Luís confronta Marina e ela pede que a deixe em paz.

Tomado pela raiva, Luís decide seguir um ímpeto que já tinha em sonhos: matar Julião. Com uma corda que ganhou de um andarilho, ele espera o rival sair da casa da nova namorada e o ataca pelas costas, sufocando com a corda. Depois, pendura o corpo em uma árvore para simular um suicídio.

Esse final, foi o grande acontecimento que perturbou o protagonista e o deixou em estado de delírio.

Fonte: por Cláudia Costa, artigo “Angústia”, de Graciliano Ramos, une introspecção e crítica social, para o Jornal da USP em 14 nov 2023.

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