domingo, 3 de março de 2024

Carolina Ramos (Ming)

Devagarinho… chego ao último cãozinho que encantou a existência de quem muitas vezes o abraçava, a enxugar naquele pelo macio algumas lágrimas, em fuga aos inevitáveis desacertos da vida, calados por conveniência.

Testemunhos espontâneos, como este, comprovam que, os animaizinhos que acompanham nossos passos, vida afora, fazem parte do maravilhoso acervo que não apenas consola, mas também enfeita o dia a dia de quantos, por saberem amá-los, conseguem o privilégio de por eles também muito serem amados.

O último "bichinho" de estimação desta narrativa, é um cãozinho pequinês. Chamava-se Ming, graças ao nariz arrebitado, que nada tinha a ver com a personagem de Lobato, mas fazia lembrar distantes terras chinesas e suas dinastias milenares, de acordo com a origem da sua raça.

Ming foi comprado em Riacho Grande, cidadezinha à beira da represa Billings, entre São Paulo e Santos. Era o menor cãozinho da ninhada. Por isso mesmo, o escolhido, passando a ser meu companheiro inseparável, a partir daquela data!

Em 1965, a ciática apanhou-me de jeito agudíssimo. Engessada de meio corpo, fiquei presa ao leito por três dias, entre ais e uis de intensidade alarmante. Foi então que o meu querido Ming perdeu a noção de tudo, inclusive do próprio tamanho!

Ao ouvir-me gemer, postava-se de guarda no corredor, à entrada do meu quarto, latindo desesperadamente para impedir que alguém se aproximasse de mim.

Sua veemência sempre foi maior que o porte! Mais tarde, o mesmo aconteceria, quando trocada a casa pelo apartamento fronteiro ao mar.

Eu descia com ele para passear a fim de que não sentisse falta do amplo quintal a que estava acostumado. E então as coisas mais se complicavam!

Era só ver pelas imediações um cão qualquer, geralmente três ou quatro vezes maior do que ele, meu minúsculo defensor, o Ming, agigantava-se, atirando-se ao pretenso adversário com ímpeto de alarmar!

Naqueles instantes, que me apavoravam, eu procurava salvar aquela desvairada "formiguinha" da sanha das feras que encontrava pelo caminho e contra as quais se atirava desafiante, como se nunca tivesse visto a própria imagem num espelho!

Temendo vê-lo estraçalhado por algum "pitbul" adversário, eu o erguia, pelo peitoral, até onde meu braço podia alcançar, enquanto aquela "coisinha" minúscula e esperneante, lembrava pequena aranha pendente de um fio, a esbravejar e a desafiar canzarrões que simplesmente o ignoravam, quando poderiam calar aquele valente escarcéu com uma só dentada.

Ming... Que saudade desse cãozinho querido - único modelo que posou ao vivo para uma de minhas telas. E como era difícil conseguir que aquele irrequieto cachorrinho permanecesse imóvel, por instantes, em cima de uma cadeira, para que meus pincéis, pouco destros, pudessem captar o brilho dos seus olhos, o tom da sua pelagem cor de mel e a rebeldia daquele narizinho arrebitado que o destacava dentre os demais cãezinhos já citados.

Apesar dos percalços, o retrato conseguiu ficar bastante fiel, merecedor de elogios da consagrada pintora Guiomar Fagundes, que, ao ver a tela, enviou-me um recado, muito especial, afirmando que me queria para sua aluna.

Embora, naquela ocasião, isto fosse absolutamente impossível, segui à risca o sábio conselho que ela graciosamente acrescentou: - "dê uma leve pincelada branca na ponto do nariz do seu cãozinho" - o que, fielmente executado, acrescentou um brilho úmido e muito especial àquele narizinho petulante.

E aquela pincelada especial, que acrescentou vida ao retrato do meu Ming, sempre me reportará à grande Guiomar Fagundes e, também, à preciosa oportunidade por mim perdida, de não poder aceitar, momentaneamente, aquele seu espontâneo convite, bastante significativo quanto honroso e que, lamentavelmente, não teve ocasião de ser repetido, já que a mestra partiu, em definitivo, não muito depois.

A foto da tela que retrata o Ming enfeita a capa deste livro. E a pincelada sugerida pela grande Guiomar Fagundes, lá está, valorizando-a.

Sigo a discorrer sobre o meu pequenino-grande amigo, lembrando o enorme susto que um dia ele meu deu! Morávamos ainda na Ponta da Praia, quando, num fim de tarde, eu abrira o portão com cuidado, com o Ming trançando meus pés, como sempre. E foi quando, de repente, aquele cãozinho indisciplinado viu um gato qualquer saltar no passeio oposto. Sem perda de minuto, Ming agilizou suas perninhas curtas saindo-lhe ao encalço e atravessando intempestivamente a rua.

Tudo aconteceu rápido demais! Gritei... e, desesperadamente, cobri os olhos com as mãos, ao vê-lo sumir sob as rodas de um caminhão, que sequer tivera ocasião de ter o freio acionado.

Desalentado, o motorista deteve o veículo um pouco adiante, vindo ao meu encontro gaguejante, a desfazer-se em desculpas. - "Me perdoe… pelo amor de Deus! Eu nem cheguei a ver o seu cachorrinho... não sei como isto foi acontecer! Me perdoe... Me perdoe, por favor!" - o pobre homem estava arrasado!

A esse tempo, entretanto, eu já sorria... apontando-lhe o Ming, que atravessara a rua entre as rodas do caminhão e, apesar do susto, lá estava, no passeio oposto, a desacatar o gato que sumira ressabiado por detrás de um muro! Ming fazia o seu escarcéu costumeiro, sem a mínima noção do susto que nos pregara. E nem, tampouco, do tremendo risco que enfrentara! São Francisco, naquele instante, estaria tão feliz, quanto eu, com certeza! E quanto o pobre caminhoneiro, também!

E uma reflexão impõe-se, fazendo saltar a pergunta, ainda que tardia:

- Será que em tempos atuais, tão diversos quanto adversos, aquela cena seria a mesma? Será que alguém, certo de ter atropelado um animalzinho de estimação em frente à sua dona, e, tendo possibilidade de escapar, acelerando o carro e fugindo à responsabilidade, teria, em vez disso, sensibilidade e coragem suficientes para estacionar seu caminhão e enfrentar, cara a cara, o desespero de quem, com os próprios olhos, vira o seu querido cãozinho desaparecer sob as rodas do veículo por ele dirigido?!

Não seria bem mais fácil calcar o acelerador, deixando tudo para trás, sem mais problemas?!

Pois é... admiravelmente, não foi isso o que aquele homem simples fez! E, se, displicentemente, agora o chamei de simples, que se leia nobre, sem favor algum. Que Deus tenha recompensado a sensibilidade daquele motorista - é o que pede minha tardia admiração.

E  o tempo passou... Como sempre, depressa demais!

Os filhos cresceram. O Ming, não... Mas, isto não quer dizer que tenha sido poupado pelo implacável peso da idade. Mudamos para o bairro do Boqueirão, Tínhamos, agora, à frente, aquele mar de Vicente de Carvalho, nem sempre verde como cantado pelo poeta, mas sempre encantadoramente lindo!

Mas... O que não é lindo vem agora... a constatar que a vida por vezes é carrasca. E até mesmo bastante cruel.

Apesar de querer muitíssimo bem àquele cãozinho, que tanta ternura trouxe a minha vida, coube, justamente a mim, ter de aceitar, tão só por piedade e sem outra qualquer alternativa, os argumentos do veterinário que garantiu, compungido, que nada mais seria possível fazer para aliviar o sofrimento daquele cãozinho que ganira de dor, por uma noite inteira, sob os olhos atônitos da família que o tentava confortar.

Já bastante velhinho e quase que totalmente cego, nosso tão querido Ming fraturara o maxilar inferior, o que, dolorosamente, o impedia de se alimentar. E sofria demasiado! - Suplício que aquele valente e querido cãozinho estava longe de merecer.

Nada mais poderia ser feito! - A sentença, implacável: - Ming, aquele heroico e fiel companheiro de longa data, precisava ser sacrificado.

Sem mais me alongar na descrição que ainda hoje me faz sofrer, digo que, embora de coração sangrando, eu mesma tive que dar o sim para que tudo fosse consumado.

Drama acontecido no tristíssimo janeiro de 1977 – podendo ser somado ainda como angústia menor, às demais acumuladas nas proximidades daquela mesma data. Mas... esta é uma outra história que não cabe aqui.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Nenhum comentário: