Viu as florestas frondosas, em cujas franças rendilhadas esgarçava-se o nevoeiro da manhã; viu as campinas alegres pelas quais numerosos rebanhos se apraziam; viu os montes de encostas de veludo; viu os rios claros, largos, retorcidos em meandros, discorrendo por entre margens de ervaçais floridos e acenoso arvoredo; viu as fontes borbulhando em bosques acolhedores.
Animais de várias espécies cruzavam-se pelos caminhos — leões de juba altiva, elefantes monstruosos, antílopes e corças, leopardos e gazelas e aves de plumagem branca onde penas variegadas junto a ribeiras tranquilas, vogando em insulas de flores, pousadas em ramos ou atravessando os ares, alegrando com o seu concerto o silêncio grandioso.
Os frutos ofertavam-se nos galhos, as flores desfaziam-se das pétalas recamando a alfombra e esparzindo o aroma pelos ares.
O homem, ainda incerto, ia e vinha, ora parando à beira das águas que o refletira, ora chegando à ourela dos bosques, saindo às várzeas, mudo, em êxtase contemplativo.
Deus, que de longe o assistia com o seu olhar, achava-o perfeito, airoso e forte, digno de ser o senhor do mundo e de todas as criaturas.
O sol ardia estivo e, de toda a terra exuberante, exalava-se um hausto cálido, respiração abrasada que amolecia e adormentava.
As folhagens encolhiam-se, murchando; as flores pendiam lânguidas nos caules; os animais refugiavam-se nos bosques ou penetravam as furnas tenebrosas; as próprias águas desciam lentas, com preguiça, sob a irradiação cáustica da luz que refulgia tremulamente no azul diáfano.
Deus errou em passos lentos pelas silenciosas veredas e toda a pedra que os seus pés tocavam fazia-se luminosa, com rebrilhos faiscantes e cores admiráveis. Era aqui um seixo que se ensanguentava em rubi, ali um calhão esverdeando-se em esmeralda, outro tomava colorido flavo ou roxo e, mirificamente, iam-se todos transformando e adquirindo cor, desde o tom lácteo da opala até o esplendor cerúleo da ametista; desde o límpido fulgir do diamante ao lampejo solar dos prazos amarelos.
As areias faziam-se de ouro, rutilando, como haviam ficado no leito do córrego em que o Senhor, depois de haver plasmado o homem com o barro sanguíneo, lavou e refrescou as mãos benéficas.
Foi-se o Criador encaminhando a um campo que ondulava e sussurrava à aragem e que era um trigal. Nele entrando, sem que as pombas e as calhandras se assustassem, a frescura convidou-o ao repouso.
Deitou-se e os trigos fecharam-se suavemente formando ninho aromal e sombrio onde o sono foi agradável.
Já as roxas nuvens anunciavam o crepúsculo quando, ao suave prelúdio dos rouxinóis, abriram-se os olhos divinos. Deus, que gozara a delícia do sono, ergueu-se. Então, mansamente, uma voz meiga elevou-se no campo louro:
— Senhor, que vos não pareça de vaidoso a minha requesta, não é por orgulho que vos falo, senão porque me sinto por demais miserando na grandeza da vossa criação. Fizestes a árvore sobranceira dando-lhe o tronco, dando-lhe os ramos, vestindo-a de folhas, cobrindo-a de flores e ainda a carregais de frutos; as suas frondes altas topetam com as nuvens. Aos que não destes grandeza e força ornastes com a graça mimosa da flor; só eu, pobre de mim! fui esquecido por vós. Quando vos vi chegar para mim tive vexame de receber-vos, tão pobre sou! trigo mísero.
Era o trigo que assim falava.
Parou o Senhor a escutá-lo e, compadecido das suas palavras, estendeu a mão abençoando-o:
— Agasalhas-te o meu sono com a pobreza, trigo tenro e frágil, deste-me generoso abrigo e resguardaste-me do sol. Não fique memória na terra de uma ingratidão d'Aquele que mais a detesta e, para que o exemplo sirva e aproveite, abençoo-te e abençoo-te com a força e com a Graça. Fraco, darás o alimento essencial; mísero, encerrarás em ti o mistério divino. Serás o pão e serás a hóstia e assim, com a tua fraqueza, suplantarás a árvore mais vigorosa e com a tua humildade serás maior que o sol. No teu seio desabrocharão as papoulas e, dentro em pouco, a flor virá anunciar-te a espiga e a espiga dará a farinha branca, que será força nos homens e sacrário da minha essência.
Assim Deus, engrandecendo-os, responde à esmola dos pequeninos.
Disse e, contente, mais com o que fizera ao trigo do que com a criação de todo o universo maravilhoso, ao clarear da lua, quando os rouxinóis cantavam, remontou ao céu entre anjos que foram, em coros, pelos ares claros, apregoando a sua onipotência e a sua misericórdia.
Fonte> Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.
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