sexta-feira, 8 de março de 2024

Newton Sampaio (Damião)

Naquele passo, a estrada se pôs mais estreita. Sinal de que a mata ia aparecer na primeira curva. Damião espiou pra cima. Era uma só faiscação, o sol. Chegava a doer, de tão claro, de tão quente. Pisou o chão, odiando quase. Mas o chão sabia se vingar. A vingança era a poeira. E era também aquele bafo que sufocava — o bafo da terra ressequida.

Deu mil graças a Deus quando alcançou a mata. Entrou nela, com vontade.

Reconheceu o guaretá (espécie de árvore) raquítico na exibição diuturna do tranco enfezado. E a canelinha, pletorada de folhas. A canelinha era bem um archote verde à beira da estrada. E aquela pindaíba, então? Parecia um urso. No entanto, os cipós se lhe espiralavam avidamente no tronco, como serpentes enfurecidas. A pindaíba, mais os cipós, tinham a expressão fugace de dois seres hostis em empenhado conflito.

Respirou profundamente. Sentiu-se dono de tudo aquilo. Dono dos caules que tomavam em cima aquela disposição confusa e resolviam-se abaixo da superfície naquele emaranhado de raízes possantes. Dono da folharia que silhuetava sobre o caminho, só pra formar abóbada rendada e não deixar o sol entrar do jeito que quisesse.

Dono do riacho humilde, esgueirando-se por aqui, por ali. Abaixou-se, a lavar o suor. E, com a mão em concha, bebeu até não poder mais.

Depois foi andando, com passo lerdo. De tão distraído, uma vareta de lambe-papo lhe queimou a epiderme. Reagiu incontinenti. E tomou tento de sua obrigação. 

Baitacas em bando traçavam um rastilho verde no céu do sertão. Teve, de supetão, uma bruta vontade ser baitaca...

Chegou no paiol do Malaquias. Foi só o tempo de entregar o bilhete, trepar na carroça, e fazer estalar o chicote. A arrancada dos animais aumentou o alarido dos guapecas. O cuidado na direção não lhe facultava espiar a simetria caprichosa do cafezal — o cafezal que se perdia de vista nas requebras do monte.

Nem ligou. Estava enjoado daquilo...

O menino o que queria era chegar em tempo na casa do coronel. Por isso nem percebeu que em pouco apareceu certo ventinho. O vento foi ficando mais forte, mais forte, movendo com energia as copas das árvores. E erguendo muito o pó da estrada. E revoluteando-o em espirais ralas. Já, em redemoinhos mais espessos.

Lá em cima, inumeráveis nuvenzinhas apareceram, avolumando-se logo. Deslocaram-se. Uniram-se. Compuseram outras maiores, que subiam no céu, escurecendo-o. Quando Damião deu em si, a tempestade estava desencadeada. 

Caiu um raio no lado sul. E o trovão, largo tempo, ficou reboando. Tinham dificuldade em vencer o caminho os animais, mas Damião não queria saber disso. Fustigava-os, sem piedade. Até com o cabo do chicote. Assim ele se vingava das chicotadas que lhe dava a chuva. A chuva batia no rosto, emplastrava os cabelos, atravessava a roupa. No Fundão do Santo, viu o negro Ezequiel, na porta da tapera, de mãos supinas, carapinha à mostra, orando, orando.

Passou de largo, afrouxando as rédeas. Ezequiel pisou o terreiro e abriu os braços, feito uma cruz. Damião sofreu um medo louco do feiticeiro.

Doíam perdidamente os braços. E a carroça pesava cada vez mais. Pensou em descansar no primeiro rancho. No primeiro? Virgem Maria! Era o rancho dos leprosos. Fez o sinal da cruz com a mão canhota.

Na volta do Faria a chuva se pôs mais branda. E como estava ansioso por demonstrar ao patrão a presteza com que agira, a intervenção heroica feita no negócio do doutor Henrique, dispensou qualquer descanso.

Atravessou o terreiro da casa grande com o coração batendo forte. Aquele baticum era mais de orgulho pela sua proeza. Desceu, lépido. E viu um cavalo arriado no toco. Entrou. Vinha encharcado, ofegante. Apenas o viu, gritou o coronel. 

— Nhengo do inferno! Só agora?

E meteu um tabefe medonho no menino.

Damião, sem compreender coisíssima, rolou no chão. Parecia um possesso o coronel. Sapecou-lhe um pontapé de classe.

— Toma, vagabundo. Toma, pra criar vergonha.

Ninguém tentou a defesa. Sabiam todos como era o coronel Florêncio.

O caboclinho fugiu pra cozinha, manquitolando, em soluços. Sentiu crescer, dentro do peito, um ódio de morte. Então ele fizera o impossível para salvar o negócio, e era assim que o recompensavam?

Chorou, baixinho. Nem as lágrimas se viam. Elas faziam corpo com a água escorrendo do cabelo, escorrendo...

Frederiquinho, vestido de marinheiro, muito janota, ficou na porta, espiando. Enquanto isso, o coronel Florêncio dizia impropérios.

A chuva o livrara do incêndio do paiol. Mas não o livrara de outro fogo — que tal era a má-fé do doutor Henrique.

Repetiu uma porção de vezes:

— Doze contos! Canalha... Doze contos! Vai me pagar. Ah, se vai.

Pra que serve a garrucha do Benedito? Pra quê?

Naquela noite, Damião jurou que havia de fugir da fazenda.

(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 06/11/1936)

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

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