quarta-feira, 27 de março de 2024

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos) = 4


BERIMBAU

Três anjos desceram do teto
da igreja e vieram indagar
o que se passou entre nós
dois.

E como eu os repreendesse
me jogaram pedras depois.

Em vão duas borboletas, tímidas,
no meu ombro pousaram, brancas,
movendo duas douradas vírgulas:
por que não nos contas o que houve,
esta manhã, entre vocês
dois?

Porém, nada lhes contei eu;
antes, me escondi nas palavras.
Tive medo do meu segredo;
pois

há certas coisas tão bonitas
que mesmo as borboletas brancas
não deverão saber depois.

Nem as gentis damas da noite.
Nem os lírios nascidos entre
bois.

Ciganas que me procurais,
maliciosas, cantarolando,
é inútil! Porque há certas graças,
tão puras, por serem secretas,
que perdem o encanto, depois.
E que dignas de saber não
sois.

Ah, nem Deus saberá, jamais,
o que se passou entre nós
dois.
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CANÇÃO PARA PODER VIVER

Dou-lhe tudo do que como,
e ela me exige o último gomo.

Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?

Se ela se fere num espinho,
O meu sangue é que é o seu vinho.

Se ela tem sede eu é que choro,
no deserto, para lhe dar água:

E ela mata a sua sede,
já no copo de minha mágoa

Dou-lhe o meu canto louco; faço
um pouco mais do que ser louco.

E ela me exige bis, "ao palco"!
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CANÇÃO PLUVIAL

O vento canta como um pião de brejaúva
(quando se desenrola no ar a fieira branca e lépida de chuva)

Surdas goteiras cá por dentro
que batem
que batem-batem
num fundo canoro de lata
os seus contínuos, dolorosos zé-pereiras,
estão tocando agora a música simbólica
de uma enfadonha serenata.

Meus soldadinhos de papel, vestidos de amarelo
estão marchando muito longe...coitadinhos!
(minha saudade, a ouvir o canto das goteiras
batendo batendo batendo no fundo de lata
parece que ouve ainda muito longe muito longe
um tamborzinho de prata).

As madrugadas coloridas
as tardes polichinelos
embrulharam-se bem nas nevoentas vapotas*
e foram se esconder lá no fundo das grotas...

O dia de cara suja
suja com a cinza dos poentes de brasa
parece uma enorme coruja
que está pousada há três dias
no teto da minha casa.
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* vapotas = vapores
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CANTILENA, EM AGUDO

No fim da estrada está quem quero,
Alguém que espera por mim.
Mas como pode chegar ao meu fim,
Quando um pássaro canta assim?

A única coisa que não cansa
já se cansou – a esperança.
Esperança, não de esperar,
mas de procurar algum fim.

É a hora em que ouço, lá longe,
o canto agudo do “sem-fim”,
feito de suor e de flautim.
O canto que é cantar por mim.

A voz do não sei de onde vim
Me pergunta, mais pontiaguda
do que a ponta de um florim,
para onde vou, qual o meu fim.

Ah, eu não sei de onde vim
— gota de esmeralda ou sal —
se dos olhos de uma medusa,
se de um chim*, de um espadachim.

Dizem que a maior dor de todas
é a de quando um bem começa
e já de nos ferir não cessa
a certeza do seu fim.

Para mim, a maior não é essa.
É o não Ter fim, quando se pede
que a manhã, olhar de clarim,
nos traga uma solução, enfim.
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* chim = chinês.
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CATEGIRÓ

1
Santo António do Categiró*
na igreja de Nossa Senhora do Ó
Faça com que os homens
se entendam
dentro de um mundo só.

E que gorjeiem, todos,
numa língua só.
E que cada palavra tenha
um sentido só,
para todos.
E que todos sejam um só.

Só assim, boca no pó,
céu comum, chão comum,
ninguém estará só.
Dentro de um mundo só.

2
Santo António do Categiró
na igreja de Nossa Senhora do O
(santo preto, e só
por ser preto)
faça da estrela dalva
um amor só.
Não pela cor do rosto
mas pela do sangue
(rubra)
nas mesmas feridas, 
rosas feridas.

Nem orgulho, nem dó, 
mas uma coisa só.
Nem Agá Kan*, nem Jó,
mas uma coisa só. 
Ó Santo António do Categiró,
na igreja do Ó

3
Canário e noitibó**
cantarão juntos, mas só
quando a manhã for uma
só.

Ninguém se achará só
dentro de um mundo só.

Santo António do Categiró.
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* Agá Kan (Agacão) = título hereditário tipo Comandante em chefe, na Pérsia.
* Noitibó = Pássaro caprimulgídeo de plumagem castanho-ruiva, que à noite caça insetos voando com o bico de todo aberto; curiango.
* Santo António do Categiró = António de Categiró foi um escravo que se tornou santo. Nasceu na Cirenáica, uma região do norte da África, no fim do século XV. Na terra natal praticou a religião chamada Islamismo, que foi fundada por Maomé. Depois, capturado como escravo, foi levado para a ilha da Sicília, sul da Itália. Aí foi vendido para um senhor cristão. Naquele tempo o escravo era comprado por um valor equivalente ao valor de dois cavalos. Muito bom e humilde, Antônio era chamado de Tio António. Foi instruído pelos patrões sobre a vida e a missão de Jesus Cristo. Tornou-se cristão. Não foi, porém um cristão comum, muito menos, um cristão relaxado. Praticava a lei de Deus com todo o fervor. Amava a Deus, procurando estar sempre com Ele por meio da oração. Procurava conhecer também a palavra de Deus na Bíblia. Orava muito, até durante a noite. Sempre se confessava. Como a vontade de Deus é amemos também nossos irmãos, ele amava realmente o próximo.

Era muito trabalhador, cumprindo sempre as ordens de seu patrão, que o encarregou de cuidar das ovelhas. Depois, tinha amor pelos pobres. Pedia ao povo da cidade onde morava, a cidade de Noto, esmolas, e distribuía pelos pobres, alimento e roupas. Ajudava aos pobres também distribuindo leite e queijo das ovelhas. Uma vez o patrão o proibiu de dar leite e queijo para os pobres. António obedeceu. Então a produção diminuiu bastante. O patrão viu que ia tomar prejuízo. Mandou então que António continuasse a atender os pobres. E as ovelhas continuaram a produzir como antes, para alegria do patrão. Deus deu a António o dom de fazer milagres, de modo especial de curar pessoas. Muitos o procuravam para alcançar a saúde. António humilde, dizia que ele não passava de um simples escravo, só Deus tem poder de curar. Impunha as mãos aos enfermos, rezava e Deus curava. Depois de sua morte continuou a fazer muitos milagres. Até hoje temos testemunhas de muitas pessoas que alcançaram grandes graças por intercessão de Santo António de Categeró.  (http://www.paulinas.org.br)
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Fonte> Cassiano Ricardo. Vida e Obra. Disponível em https://www.fccr.sp.gov.br/portalcassianoricardo/#

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