Não era uma Penélope; os vizinhos
Viam de vez em quando em casa dela
Entrar um moço de altos colarinhos,
Polainas e cartola. Não seria
Caso para estranhar, e aquela gente
À língua não daria,
Se não escolhesse o moço justamente,
Para as suas visitas,
As horas infinitas
Em que o dono da casa estava ausente.
Defronte, um cidadão austero e grave,
Marido e pai de umas senhoras feias,
Que, zeloso, ao sair, fechava à chave,
Sentia o sangue lhe ferver nas veias
Sempre que via aquele sujeitinho,
Desrespeitando a vizinhança honrada,
Em casa entrar do crédulo vizinho.
Por isso, resolveu — coisa impensada! —
Dizer tudo ao marido,
Que não era, aliás, seu conhecido,
E ter com ele foi, um belo dia,
Lá na secretaria
Onde o pobre diabo era empregado.
— Falo ao senhor Vilella? — A um seu criado. —
— Pois, meu caro senhor, fique ciente
De estar aqui presente
Joaquim Belmonte, funcionário honrado,
Há muito aposentado,
Pai de família honesta,
Respeitável, pacífica, modesta. —
Vilella respondeu: — Senhor Belmonte,
De vista já o conheço desde o dia
Em que um prédio aluguei mesmo defronte
De vossa senhoria.
Eu tenho a honra de ser seu vizinho. —
— Bem sei, e é justamente
O que me traz. — Parece que adivinho:
Comigo aqui ter veio,
Muito provavelmente,
Para comigo combinar o meio
De fazer com que a nossa
Municipalidade,
Que tão pouco se ocupa da cidade,
E que às reclamações faz vista grossa,
Mande limpar aquela imunda vala
Da nossa rua, que nos contraria
Pelo cheiro que exala
E há de ser causa de uma epidemia... —
— Não, não venho tratar da vala; eu venho
Tratar de coisa muito mais nociva,
E por cuja extinção muito me empenho,
E hei de empenhar-me creia, enquanto viva,
A coisa não depende
Da Municipalidade,
Mas do senhor, — entende?
— Para falar verdade,
Não entendo, — Meu caro, eu poderia
Escrever-lhe uma carta,
Que não assinaria;
Mas sou digno de haver nascido em Esparta:
Acho as cartas anônimas infames,
E uma infâmia jamais cometeria,
Embora me expusesse a mil vexames. —
Depois desse preâmbulo,
O Vilella ficou pasmado e mudo;
Parecia um sonâmbulo.
O outro continuou, grave e sisudo:
— O senhor é casado,
Ou, se o não é, parece, — pelo menos
Vive na sua casa acompanhado
De uma senhora e de mais dois pequenos. —
— Mulher e filhos meus, disse o Vilella. —
— Abra o olho com ela!
Quando o senhor não está, vai visitá-la
Um janota, e, reflita,
Não é de cerimônia essa visita,
Pois não lhe abrem a sala... —
Vilella deu um pulo
Da cadeira em que estava, e ficou fulo;
Mas o velho puxou-o pelo casaco
E obrigou-o a sentar-se,
Dizendo-lhe: — Vá lá! Não seja fraco!
Ouça o resto, e disfarce...
Naquele bairro inteiro
O escândalo comentam,
E o vendeiro, o açougueiro e o quitandeiro
Mil horrores inventam,
Dizendo que o senhor sabe de tudo,
Mas faz de conta que de nada sabe!
Eu não sou abelhudo,
E outro papel no caso não me cabe
A não ser a defesa do decoro
De minhas filhas, que esse desaforo
Profundamente ofende.
Não pode aquilo continuar, entende?
Disse o Vilella enfim: — Velho maldito,
Se tudo quanto para aí tens dito
Não for verdade, apanhas uma coça!
Livrar-te destas mãos não há quem possa! —
— Faça uma coisa, respondeu tranquilo
O velho: quer saber se é certo aquilo?
Pois amanhã, quando sair, não venha
Para a repartição: em minha casa
Entre, e lá se detenha.
Fique certo de que não perde a vaza.
Escondido por trás da veneziana,
Verá entrar o biltre que o engana,
Está dito? — Está dito! — Lá o espero,
Sou velho honrado. Convence-lo quero. —
Foi-se o Belmonte, e o mísero marido
Ficou estarrecido;
Mas de tal modo disfarçou o estado
Em que o deixara o velho estonteado,
Que, entrando em casa à costumada hora,
Não notou a senhora
Nenhuma alteração, — e, no outro dia,
Posto à janela do denunciante,
Que, fechada, discreta parecia,
Viu entrar o amante,
Que ele não conhecia.
Correu Vilella à casa num rompante,
Antes que o outro lhe embargasse os passos,
Ou lhe pusesse os braços,
E um barulho infernal se ouviu da rua
Subitamente alvoroçada, e cheia
Dessa canalha vil que tumultua
Quando vê novidade em casa alheia.
O corpo do janota pela escada
Rolou como uma bola,
E a luzente cartola
Na rua, encapelada,
Antes do dono apareceu. A vaia
Que ele apanhou foi tal, tão formidável,
Que, viva ele cem anos, é provável
Que da memória nunca mais lhe saia.
Mas, oh, astúcia de mulher, quem pode
Sondar os teus arcanos,
Medir os teus recursos?!
Um Hércules não há que não engode
O ardil dos teus enganos
Ou o mel dos teus discursos!
E o Vilella não era
Precisamente um Hércules, coitado!
A esposa, que ele amava, e por quem dera,
Feliz, entusiasmado,
A vida, se ela a vida lhe pedisse,
A esposa... que lhe disse?
Que o janota não era o seu amante,
Mas o seu mestre de francês; queria
Aprender essa língua, que humilhante
Era viver na roda em que vivia,
Sem saber o francês... Ele, o marido,
Já meio convencido,
Lhe perguntou por que razão queria
Aprender em segredo,
E ela, pondo-lhe um dedo
No lábio inferior, pôs-se a agitá-lo,
Como se fosse um berimbau, e disse:
— Eu queria fazer-te uma surpresa.
Passado o grande abalo,
O bom Vilella, sem que ninguém visse,
Pôs-se na esquina à caça do Belmonte,
E — oh, que não sei de nojo como o conte! —
Deu-lhe uma tunda mestra, e derreado
Dois meses o deixou. Foi coisa nova
Apanhar uma sova
Um grave funcionário aposentado.
Mas, passada tão longa penitência,
Quando se ergueu do leito,
O velho interrogou a consciência,
E a consciência respondeu: — Bem feito!
Fonte> Artur de Azevedo. Contos em verso (contos brasileiros). Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público . Convertido para o português atual por J. Feldman
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