sábado, 9 de março de 2024

Laé de Souza (Um dia para ler manuais)

As coisas vão acontecendo lentamente. Primeiro a televisão da sala. Depois outra para o quarto do filho. Modelo diferente, claro. Mais moderna, com controle remoto, cores mais nítidas. O vídeo modelo G-XX, depois um outro com mais recursos para acoplar à televisão do guri. Uma máquina de lavar, tanquinho, secadora, microondas (igual ao da vizinha, para não ficar por baixo], freezer, telefone sem fio, celular, parabólica, aparelho de som a laser.

De alguns, principalmente os importados via Paraguai e os adquiridos no mercado interno, o vendedor deu umas explicações básicas, que foram suficientes para o uso imediato, e fez até umas anotações de sequências numa folha de papel entregando o manual em inglês. A mulher, toda importante, falou para o muambeiro que não tinha problema, porque o filho estava no quinto estágio no CCAA e faria a tradução com facilidade.

De outros, veio a assistência técnica, instalou, também deu umas instruções rápidas de uso. Na hora tudo muito fácil. Depois, parece aquela coisa de mágica feita na Rua Direita. Só funciona com o cara, mas tem o manual.

Boa parte dos produtos, ninguém ensina nada e o comprador tem que se virar com o manual. Você começa a ler. Aperta aqui, ali. Pelo menos a coisa já começa a funcionar, Não com a capacidade total. 

Naturalmente que como eu, você deve achar que muitos recursos são desnecessários, e deixa para um outro dia o término da leitura. Por enquanto, a mulher vai se virando com o que você já sabe. Em geral é o marido que se encarrega de ler os manuais e vai passando o funcionamento para a mulher. A minha sempre cobra. O micro da Joanita é igual ao nosso, doura que é uma beleza e até agora você não me ensinou como fazer. A programação...

Mas tem um domingo, muito tempo depois e raro, em que você levanta sem preguiça, não tem jogo, nem cooper no parque, porque chove, resolve ler todos os manuais e colocar as informações tecnológicas em dia. Empilha todos, por cima os prioritários (a mulher é quem escolhe a ordem), apanha os dicionários português/ inglês, português/português, de termos técnicos de engenharia, um copo de uísque para clarear as ideias e dá início a maratona. Lê, relê, volta página, faz de novo. 

Levanta, enche mais uma vez o copo. Liga para o primo, que tem um igual. Percebe que o inglês do filho naquele momento não ajuda muito e que ele se enrola em frases incompletas e desconexas que dão em nada. E a mulher grita da cozinha:

- Tem o rádio-relógio também!

No final do dia, alguns aparelhos você já sabe utilizar perfeitamente. Quer dar por encerrado, deixando uma parte para outro dia, mas o filho insiste que seja lido o manual do seu game, que ele manuseia com perfeição sem nunca ter lido.

No dia seguinte, recebe uma ligação no escritório. É a mulher querendo saber como faz para gravar no vídeo um capítulo da novela. Tenta lembrar, mas não adianta. Para não levar mais bronca, carrega numa pasta os manuais para consultas de emergência.

Fonte> Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor.

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