sexta-feira, 29 de março de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Como cicatrizes silenciosas)

O Beija flor é ave símbolo do Espírito Santo
O TEMPO, esse tempo que não nos dá tempo, que nos tira o tempo, nada mais é que um urdidor invisível e inveterado. Entrelaça as nossas vidas com fios e cordas de lembranças. Hoje, sentado na cadeira que pertenceu a papai, acomodado na varanda, de frente para a rua, tomando café e comendo pão de queijo, observo o mundo à minha frente e me perco nas tramas do que já foi, ou, talvez, que um dia fui. 

Me lembro como se fosse um domingo de sol dessa rua (naquele tempo) estreita, aberta em chão batido, de terra meio que avermelhada, onde as pedras misturadas ao pó pareciam sussurrar segredos de velhos janeiros devorados pelo esquecimento. As casas antigas (desse meu e do outro lado), com suas janelas de madeira e flores coloridas nos parapeitos, guardavam histórias de amores e desencontros. 

As crianças corriam descalças, rindo alto, enquanto os adultos trocavam olhares cúmplices. Um tempo pastoril e bucólico em que as manhãs se desmanchavam bisonhas, as tardes se quedavam longas e o sol, como um menino grandioso (por precisar se esconder) se acanhava devagar, tímido e assustadiço por sinalizar que “estava indo dormir e somente num porvir, horas depois, se faria de novo majestoso e magnífico’. 

E, de fato, assim acontecia. Num repente, ele tingia todo o firmamento de tons alaranjados. As conversas com os domiciliados aconteciam sem pressa. Os abraços se formavam apertados, como se quisessem conter o tempo. Entretanto, o tempo, esse implacável viajante, não nunca se deteve por aqui. Aliás, sequer alguma vez procrastinou. 

Como nos velhos janeiros, seguiu avançando, deixando para trás as risadas, os sonhos, as tardes alegres, as cadeiras postas ao longo das calçadas em frente aos portões. Mesma pancada, as efusividades dos abraços e também, em igual norte, as mãos dadas, os namoros românticos, as barrigas de nove meses, os olhares atentos de pais e mães preocupados com as novas vidas que logo se fariam estupendas. 

As moradias deixaram de ser simples casas. São agora vivendas "dinastiadas" por ocupantes esquisitos e pomposos. Gente fina, de dinheiro nos bolsos e nos bancos. Essas mansões ostentam janelas envidraçadas e portas soberbas cheias de “não me toquem.” As pedras, o pó e o barro avermelhado deram lugar ao asfalto. As crianças que brincavam (com as minhas), cresceram e se espalharam pelo mundo. 

Hoje, a minha antiga rua estreita é apenas um mimo para quem ainda conserva lembranças. Tudo por aqui e não só aqui, em toda a redondeza, as vielas e becos viraram criaturas de peles negras. A maioria ganhou calçadas, árvores e lixeiras espalhadas. A prefeitura plantou em toda a sua extensão, postes, com transformadores e um emaranhado de fios esticados. 

Os rostos (que bem me lembro), se abriam em confraternizações, são apenas sombras difusas bailando no carrossel da minha memória. O passado se dissolveu como as tintas de uma porção de quadros esquecidos num canto ermo de um museu sem registro. Mesmo tapa no rosto, do bonito chamativo e da luminosidade de seus pintores, restaram apenas os contornos borrados em paredes senilizadas. 

Apesar desses entraves, ainda vejo, juro por Deus, ainda enxergo com meus olhos esbugalhados cansados, existir algo de mágico do antigo passado. Verdade. Falo sério! Ele nos envolve como um cobertor quente nas noites frias. Nos mata a sede como a água geladinha guardadas em moringas. As lembranças nos acariciam trazendo em suas bagagens cheiros, sabores, falas e choros, gritos e sensações. 

Por um instante, saio do meu chão e sou transportado de volta à àquela longínqua rua de concepção estreita. Como num passe de mágica, me vejo envolvido nas risadas e nos abraços. Talvez o passado não seja apenas o que ficou no ontem, ou se degringolou no para “não sei onde.” Quem sabe, ele seja um lugar longe da terra, onde eu possa (como agora) regredir, recuar, retroceder sempre que quiser. 

Uma espécie de “refúgio-amparo,” um “abrigo-proteção,” uma “hospedaria-quartel,’ onde, quiçá, as minhas histórias ganhem vida e os semblantes enrugados e decrepitados de uma  existência inteira  (tanto os que se foram, como os que ainda agradecem pelo ar que respiram) se rejuvenesçam e se iluminam novamente. 

Assim, sentado na varanda, em minha cadeira de balanço (presente de papai), tomando meu café e comendo meu pão de queijo, deixo o tempo fluir. Sei que ele leva consigo o que não posso segurar. Todavia, apesar dos contratempos, me homenageia com o deslumbramento da saudade –, essa doce companheira que não me larga nem vai embora. Afinal, o passado não está apenas nas pedras, no pó, ou no barro dessa rua de terra, ou pior, no oco dos pisos sujos das casas “outrorais.” 

Na verdade, ele se faz pulsante em mim. Se condensa, se espalha, se agarra de unhas e dentes, fundido, britado, entupigaitado (confuso) em cada gota das “dádivas-brindes,” e dos “assentamentos-regalados” que fazem parte do meu todo como ser humano. Esse passado. Ah, esse passado!... por tudo quanto é sagrado. Ele vai um pouco aquém: se materializa a cada minuto num turbilhão de “cédulas-presentes,” 

Jorra do profundo mais divorciado do meu âmago e, “em contínuo.” Alimenta com esperanças fartas e abundantes, os elanguescidos fios de Ariadne espalhados por todos os desvãos e reentrâncias dos meus olhos. É o “segredo-pecúlio,” a fórmula que me mantem vivo, como uma reserva benfazeja que tenho avivada dento de mim. Sem falar na plena convicção, que perdurará enquanto o Criador me deixar vivo e em sintonia meridiana com as complacências que transbordam de suas poderosas mãos divinas.

Fonte>Texto enviado pelo autor 

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