domingo, 3 de março de 2024

Contos das Mil e Uma Noites (Joias de Goha)

Conta-se, ó afortunado rei, nos antigos anais dos sábios, que vivia certa vez na cidade do Cairo um camarada de aparência idiótica que ocultava, sob uma bufonaria extravagante, uma fonte inesgotável de sagacidade e saber. Era o mais divertido, o mais instruído e o mais irônico homem de seu tempo. Seu nome era Goha. Não exercia profissão alguma, embora substituísse vez ou outra o pregador nas mesquitas. 

Certa vez, perguntou a um grupo de homens: “Ó muçulmanos, sabeis por que Alá não deu asas ao camelo e ao elefante?” 

Responderam: “Nós não sabemos. Mas tu, para quem nenhuma ciência tem segredos, podes com certeza esclarecer-nos.” 

Explicou Goha: “Se o camelo e o elefante tivessem asas pousariam nas flores em vossos jardins e, sendo muito pesados, esmagariam as flores.” 

Outra vez, um amigo bateu na porta de Goha, dizendo: “Em nome da amizade, ó Goha, empresta-me teu burro, pois preciso fazer uma viagem urgente.” 

Goha, que não confiava no homem, respondeu: “Atenderia com prazer a teu pedido. Infelizmente, já vendi meu asno.” 

Neste momento, o asno pôs-se a zurrar e zurrar. 

O amigo gritou: “Mas teu asno está aqui!” 

Numa voz que simulava profunda ofensa, Goha replicou: “Se confias na palavra de um asno mais do que na de um sábio, és um tolo e não quero mais ver tua cara.” 

Outra vez, Goha estava viajando com uma caravana que dispunha de poucos mantimentos. Na hora da refeição, sentaram-se para comer e dividiram igualmente o que havia. Todos sabiam que Goha tinha um apetite de camelo. Naquele dia, porém, retraiu-se discretamente. Seus companheiros insistiram para que apanhasse o rolo de pão e o ovo cozido que eram seu quinhão. 

Respondeu: “Não! Não! Pelo nome de Alá, comei e ficai felizes! Mas se fizerdes mesmo questão de que coma algo, que cada um de vós me dê a metade de seu rolo de pão e a metade de seu ovo, pois meu estômago não pode engoli-los inteiros.”

Goha foi certa vez ao açougue e disse ao dono: “Estou oferecendo uma festa hoje em casa. Dá-me o melhor pedaço de um cordeiro gordo!” 

O açougueiro deu-lhe um lombo de carneiro de peso considerável. Goha levou-o para casa e pediu à mulher que preparasse quebabs (espeto de carne) temperados com cebola. E foi dar uma volta no mercado. Assim que saiu, a mulher preparou a carne às pressas e comeu-a toda com o irmão. Quando Goha voltou, esfomeado, com o apetite aguçado pela expectativa, a mulher serviu-lhe um pão mofado e um pedaço de queijo grego. 

– Onde estão os quebabs? perguntou. 

- O gato comeu-os todos quando saí por um momento. 

Goha levantou-se sem dizer uma palavra, apanhou o gato e pesou-o na balança da família. Não pesava nem a metade da carne comprada. Goha virou-se para a mulher com raiva: “Sórdida filha de mil cachorros, se este peso é da carne, cadê o gato? E se é do gato, cadê a carne?” 

Certa noite, os amigos de Goha disseram-lhe: “Ó Goha, como sabes tudo sobre a astronomia, dize-nos o que acontece à lua após o último quarto.” 

- Não vos ensinaram nada na escola? ironizou Goha. Após o último quarto, Alá tritura a lua para fazer estrelas. 

Um dia, o terrível conquistador Timur Lenk, que não era somente zarolho e coxo, mas também extremamente feio, estava conversando com Goha enquanto o barbeiro real cortava-lhe o cabelo. Quando o homem passou-lhe o espelho, olhou-se a si mesmo e pôs-se a chorar. Goha pôs-se a chorar também. Quando ambos haviam chorado e suspirado durante três horas, Timur-Lenk se acalmou, mas Goha prosseguiu nas suas lamentações. 

- Qual é o problema? perguntou o conquistador, surpreso. Chorei porque vi minha feiura no espelho, enquanto tu, que não tens motivos para sentir-te infeliz, continuas a verter lágrimas. 

- Só posso responder com franqueza e respeito, ó soberano do mundo. Se choraste três horas por uma simples olhada à tua feiura no espelho, será surpreendente que teu escravo chore horas ilimitadas por ter que olhar para essa mesma feiura ao longo dos dias. 

Em vez de ficar enraivecido, Timur-Lenk riu até que as lágrimas lhe vieram aos olhos. 

Um dia, o califa perguntou a Goha:

“Ó Goha, sabes quantos doidos há em Bagdá?” 

– A relação seria um pouco longa, meu senhor, respondeu. 

- Assim mesmo, peço-te prepará-la, e vê que seja completa. 

Goha deu uma risada e disse: “Como detesto qualquer trabalho pesado, farei uma lista das pessoas de bom senso que vivem em Bagdá. Os que não figurarem nela são os doidos.” 

O mestre dos provérbios disse: “Quando alguém é um cão, filho de um cão, neto de um cão, e toda a sua linhagem é formada de cães, como poderá deixar de ser um cão e de agir como cão?” Disse também: “Felizes os cegos e os surdos porque não se expõem às calamidades que resultam para nós do que entra pelos olhos e os ouvidos.” 

Dizem a Goha: “O tempo passa.” E ele não compreende, pois nada vê passar. 

Dizem a Goha: “Nossa hora chegará.” E ele, examinando o céu azul, o acha vazio e nada vê chegar. 

Os homens com quem dialoga mostram-lhe um relógio: “Vê. Cada vez que esta pequena agulha faz a volta do quadrante, um dia se vai.” 

Goha pergunta: “Será este o tempo? E em que m interessa? A agulha gira sem tocar em mim.” 

Dizem-lhe: “A cada volta da agulha, a cada palavra que pronuncias, o tempo passa.” 

– E se eu ficar calado? 

- O tempo passa da mesma forma. 

- Para os outros, não para mim. 

- Para ti como para os outros. 

- E se eu for dormir no deserto? 

- O tempo passará assim mesmo, pois em teu peito teu coração continuará a bater. 

- E se fizer parar meu coração? 

- Farás parar o tempo. 

Uma turma de jovens maliciosos, querendo brincar, convidam Goha a uma festa. Ele aceita e fica surpreendido com a magnífica recepção que lhe reservam. Mas sua surpresa dura pouco. Incapaz de discernir a ironia nos discursos enfáticos que lhe dirigem, breve sente-se igual a eles. Uaddah As-Salem, Makram Kendi e Abu-Zeid apressam-se em volta dele e enchem-no de guloseimas e de adulações. Goha sente um bem estar celestial. Responde espontaneamente a todas as perguntas e ri com os outros, sem perceber que se riem dele. 

- Suponhamos, diz Uaddah, que uma beduína, montada num camelo, seja detida no seu caminho por uma ponte, pois a sua cabeça ultrapassa a altura da ponte. Que deve ela fazer? 

- Demolir a ponte, responde gravemente Makram Kendi. 

- Cortar as pernas do camelo, retruca AbuZeid no mesmo tom sério. 

- Por quê? reclama Goha. Basta-lhe abaixar a cabeça.

Ao ouvir essas palavras, os moços apoderam-se de Goha, beijam-lhe as faces, abraçam-no com força e gritam: “Ó flor da inteligência! Tu, o mais formoso entre nós!” 

Goha aperta as mãos que se lhe estendem e, a garganta sufocada pela emoção, repete:

- Basta-lhe abaixar a cabeça.

- Vem cá, Mohamed, grita Uaddah a um servente. O filho de Hajji Mahmud falou! Está morrendo de sede. Traze bebidas! 

Um dia, Goha recebeu a visita de um de seus amigos, que o encontrou estendido num divã, com os pés cruzados sob o corpo, à maneira oriental, o narguilé na boca e, sobre uma grande mesa, sua bebida e seus aperitivos.

- Dize-me como te arranjas para viver tão bem quando não fazes nada o dia todo, disse o amigo.

- É muito simples, replicou Goha. Com minhas economias, comprei o único poço da aldeia, e meu asno gira a roda doze horas por dia, fornecendo-me jarras e jarras de água, que vendo a toda a população. 

- Mas quem te diz que teu asno não para de trabalhar? Do interior de tua casa, não podes vigiá-lo. 

- Quando a sineta que amarrei a seu pescoço deixa de tocar, sei que ele não está mais trabalhando. 

– Mas supõe que teu asno se senta e agita a cabeça da direita para a esquerda: pensarás que está trabalhando quando está repousando. 

- Quando meu asno se tornar tão inteligente assim, concluiu Goha, então tomará meu lugar e eu girarei a roda do poço.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

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