sábado, 1 de julho de 2023

Adega de Versos 108: Decio Romano

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 87

Andanças, caminhadas, vilegiaturas? E por que estas saídas corriqueiras para o mato, para a cidade ou as campinas? Primeiro, que não sou caseiro contumaz. Segundo, é na rua, nos espaços livres mas cheios de vida, de cores , de sabores, que cuido do físico, do psíquico e da espiritualidade.    

Andando pelas quebradas, entre os verdes e as pradarias, águas e ciliares, me divirto e e embeveço com a natureza.  Junto à mágica mãe natura chegamos mais perto da divindade, dos deuses, das alturas.     

Em vagares pela cidade incorporo o amigo querido Érico Veríssimo, que na sua missão de romancista adorava observar a espécie humana, seus variados tipos e personagens. Fascinado pelo homem o "criador de sestro e aventuras" dizia que os seus personagens viviam no palco da vida.

Delicia-me observar, pesquisar, indagar as pessoas, satisfazendo curiosidade e acrescentando conhecimentos, na faina de registrar a saga humana nos mais intrincados e insondáveis caminhos.

E bem recordo daqueles deliciosos papos numa certa rua Felipe de Oliveira na "cidade das colinas veludosas", em que o contador de histórias ia noite a dentro dando vida às conversas, dizendo sempre: "A vida - a mais estranha de todas as sagas".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Carolina Ramos (Valente e Sultão...)

 Já àquele tempo, a fauna doméstica crescia, a exigir balanceamento.

 Malhado, vira-latas simpático, de pelo alvinegro e crespo, foi doado à "abuelita", mãe de meu pai, assim que chegou a nossa Valente.


Valente era uma cadela ruiva, alta, esguia... Fidalga!! Perfeita ladie a projetara imagem da futura Lassie, embora sem as largas manchas cor de ferrugem que consagrariam a atriz canina nas telas dos cinemas.

Em meus tenros anos, cheguei a questionar minha mãe, que lhe dera o nome de Valente, em memória de um cão terra-nova que lhe enternurara a infância. Alertei-a, com ares de futura professora:

- Ela é menina, mamãe! Em vez de Valente, não é melhor chamá-la de Valenta?!

Em tempos atuais, quem ressuscite alguma lembrança política, lembre-se, por favor, que a imaturidade dos tenros anos daquela garotinha impertinente, validava o tal questionamento.

Naquela ocasião, entretanto, algo imprevisto aconteceria:

- Um cãozinho obstinado, que em seus passeios vespertinos descobrira os encantos da Valente, deu de fazer serenatas apaixonadas lá no portão da garagem da nossa casa. Não, uma, duas... ou três vezes... mas sempre! Ou seja, desde que algum Cupido canino disparou sua flecha certeira no coração impulsivo do tal cãozinho, ele caíra de joelhos, por detrás daquele portão, tenazmente disposto a descobrir onde se escondia sua amada.

A princípio, não entendíamos o porquê daquela assídua pontualidade canina. Dúvida esclarecida no momento em que um garotão adolescente, morador nas redondezas - que regularmente buscava o cãozinho apaixonado várias vezes ao dia, levando-o, às turras, de volta para casa - expressou, em definitivo, a decisão de abandonar a luta.

Tudo cansa nesta vida... e o garoto, afinal, cansou-se de forçar a barra. Jogou a toalha... ou melhor, atirou a coleira ao chão, desabafando;

- Ele quer ficar aqui? - Pois que fique!!! O nome dele é Sultão. Não venho mais buscá-lo! - Bateu o pé... e não veio mesmo!

E, assim, por lá ficou o teimoso Sultão, por um dia e uma noite inteira, a atravancar a entrada da nossa garagem, testando a paciência de meu pai, cada vez que pretendia  guardar o carro.

Foi curto o impasse!

Logo, os olhos pidões do cãozinho teimoso acabaram por sensibilizar o dono daquele portão, aberto, afinal, com um acolhedor - Bem-vindo!

Tínhamos, a partir de então, um casal de cães, em realidade bastante contrastante.

Ela - alta, esguia, fidalga, como já descrita. Ele - um cara simpático, pelagem de cor mista, bege, marrom e preto - raça indefinida, pernas curtas, baixinho... e olhos incisivos... por demais sedutores! - que enfeitam a capa deste livro.

O tempo seguia a marchar em paz. Até que, num certo dia, aquela garota, que era eu, correu alarmada, clamando pela mãe, em busca de socorro:

- Mamãe!... A Valente vai morrer... ela está com uma bola de tripas se mexendo... do lado dela!!!

Minha mãe acudiu assustada... logo a acalmar a ingenuidade da filha:

- Não é nada, não... ela vai ficar bem. - E a garotinha enxerida foi afastada, para que não se aprofundasse em assuntos não aconselháveis á sua idade.

Até hoje, não sei o que realmente terá acontecido após aquele parto... e nem, também, que fim teria sido dado àquele conteúdo empelicado que viera à luz. Nego-me a pensar!

Sei, apenas, que o Sultão, sem questionamentos, foi despachado para a casa do "vô" Joaquim, pai de minha mãe, que residia bastante longe... lá na rua São Leopoldo, à entrada de Santos.

Contudo, não demorou muito para que a notícia preocupante viesse de volta: - Logo no segundo dia depois da chegada, aquele Sultão imprevisível, desaparecera da nova residência.

Deveria andar perdido por aí... Ou, quem sabe, caíra no laço da abominável "carrocinha", temível algoz dos cães vadios e alvo do ódio de toda criançada, em qualquer tempo.

Essa mesma carrocinha, da qual, certa vez, num rasgo de ousadia, tive a felicidade de abrir-lhe a porta, soltando, não sei como, todos aqueles infelizes passageiros de quatro patinhas, condenados a um passeio sem volta.

O que acontecera depois? Sei lá!

Tímida garota, mas sem deixar de ser esperta, sei que simplesmente sumi... Graças à balbúrdia provocada e na certeza de que acabara de fazer algo nadinha recomendável! - Por vezes, chego a duvidar da veracidade desse feito. Será que aquilo aconteceu mesmo? Ou, o desejo de que aquilo acontecesse era tão grande, que se configurou em minha mente infantil como realidade?! - Sei lá!

Quanto ao sumiço do cãozinho teimoso, o desfecho surpreendente não tardaria a acontecer. Três dias depois do desaparecimento, quem iria surgir, novamente, à frente daquele mesmo questionado portão da rua Alexandre Herculano?!

Palmas a quem, acreditou no estoicismo daquelas perninhas curtas e na tenacidade de um apaixonado Sultão decidido a ter reingresso no antigo lar.

Sim, lá estava ele, dias após ao instigante sumiço, com um palmo de língua de fora, de volta ao emblemático portão - pequenino herói, ofegante e faminto, com inconfundível brilho de vitória no olhar! Seus olhos pidões e a cauda freneticamente festiva orquestravam a certeza de ótima acolhida, em resposta ao retorno verdadeiramente sensacional!

Aquele cãozinho teimoso atravessara, heroicamente, o labirinto das ruas santistas, em busca de sua parceira! Sem bússola?! - Não... Levava consigo a mais precisa e preciosa delas todas - um coração apaixonado!

Cãozinho valente! Ele, sim, merecia esse nome. E com absoluta justiça!

Daquela vez. Sultão não se enganara.

Abertos, com alegre espontaneidade, aqueles portões deram entrada ao cãozinho raçudo que, sem "lenço nem documento", ou melhor, sem qualquer pedigree que lhe reabrisse portas, provava querer ser nosso a qualquer preço é o que aquele heroico retorno confirmava de sobejo, podendo ser configurado como verdadeira façanha!

E aquele heroico retorno, por sua vez, foi condignamente festejado com muita alegria, pelos moradores daquele lar, onde Sultão conquistou lugar definitivo.

Mas...

Fim da história? - Não!

Sempre que um mas, reticente e amargo, aparece, sabe-se que pode trazer com ele coisas jamais aceitas, principalmente, pela ingenuidade de qualquer criança, como neste caso.

Foi bem isto o que aconteceu. A volta do Sultão foi saudada com alegria, mas... Por conta desse retorno, um novo descarte aconteceu. Desta vez, foi a nossa querida Valente que se despediu, ou melhor, foi oportunamente despedida, sendo presenteada a uma família amiga.

A evitar choramingas, nunca me foi revelado o nome dessa tal "família amiga", e, muito menos, o endereço que acolheu aquela cadelinha Valente, nunca mais vista por mim.

Terminou, assim, melancolicamente, o singelo romance canino que, apesar da sua intensidade, teve curta duração. Sultão ficou muito tempo conosco. Morreu de velhice. Exatamente como deve morrer um velho sultão – cercado de desvelos e carinhos.

Embora morresse solitário, sem o seu "harém", ou tão somente sem o seu grande amor, que lhe foi sumariamente negado pelo que, ao menos para ele, poderia ser classificado como fruto da insensibilidade humana - demasiado ágil ao decidir situações de modo egoísta - de acordo com as próprias conveniências.
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Quem salta em pauta, agora, é um coelhinho branco bola de arminho, alva e fofa - a passear, livre, pela casa,

Como se dono dela fosse, e, a trançar pés que o evitavam pisar.

Uma família inteira, encantada com aqueles olhos cor de rubi e com aquelas longas e aveludadas orelhas, observava o passeio saltitante e atrevido, daquele animalzinho fofo, que, a ignorar limites, transitava livre por sobre os tapetes das salas, como se todos eles tivessem sido estendidos, reverentemente, para seu próprio e exclusivo deleite.

Logo, porém, aquele novo e irrequieto invasor teve os passos limitados, penalizado que foi por desrespeito às leis de segurança doméstica e, principalmente, por conta de seus hábitos nada higiênicos.

E foi assim que aquele coelhão branco, (a exemplo do outro literariamente famoso), a mando da "Rainha" daquele lar, acabou por perder as regalias do seu "País das Maravilhas", muito embora ganhasse casa própria... porém, fora da nossa.

Fonte:
Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 16


Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.

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A folha da hera verde
é verde da cor do mar,
o verde é cor da esperança,
da esperança de teu olhar.
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Alecrim da beira d’água
bate o vento, logo torce.
Os olhos deste ladrão
já de mim tomaram posse.
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Andorinha do coqueiro
dá-me novas do meu bem...
Os meus olhos estão cansados
de esperar por quem não vem.
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As penas do meu martírio
mais cruéis não podem ser:
Ter olhos para chorar,
não ter olhos pra te ver.
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Bela morena orgulhosa,
Dá-me água pra beber!
Mas olha que não é sede;
é vontade de te ver!
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Benzinho, quando te fores
vem cá me dizer adeus,
quero mandar os meus olhos
na companhia dos teus.
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Caí no mar e salvei-me
nele não pude afogar,
mas afoguei-me em teus olhos
mais pequenos de que o mar.
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Deus fez os teus belos olhos
para ver e pra encantar...
Mas a mim só fez os meus
pra te ver e pra chorar...
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Encantos que    não gozo
mas que não posso esquecer,
fazem de meus olhos tristes
meu triste pranto correr.
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Está chovendo, quer chover,
onde nos abrigaremos?
Na sombra desses teus olhos
seguro abrigo teremos.
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Eu amei, fui infeliz
e jurei não mais amar...
Os teus olhos me obrigaram
meu juramento a quebrar.
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Há quem seja réu de morte
sem consciência de o ser...
Digam, se podem, teus olhos
se não nos fazem morrer.
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Hei de pegar nos meus olhos,
hei de os furar com um pauzinho:
– Os meus olhos são a causa
de eu andar por mau caminho.
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Manjericão verde-escuro
tem a folha miudinha.
Só em te ver eu te amo,
que “fará” se fosses minha!...
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Menina dos olhos grandes,
olhos grandes como o mar,
não me olhes com tais olhos,
posso neles me afogar...
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Morena, minha morena,
cravo de minha almofada...
No dia que eu não te vejo
não como, não faço nada...
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Olhos que não veem seus olhos
senão de meses a meses,
esses são os mais amantes
porque logram poucas vezes...
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Ó meu junquilho amarelo,
teus cheiros estão perdidos...
Trata de ver outros olhos
que estes estão decididos.
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Para te amar não preciso
ver todo o dia teu rosto,
basta que tenha na ideia
lembranças que me dão gosto.
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Quando a raiz topa a pedra
a planta logo emurchece...
Coração que é desprezado
pelos olhos se conhece.
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Quando for para eu morrer
quero teus braços por leito,
por vela teus lindos olhos,
por sepultura teu peito.
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Quem quiser ver olhos tristes
olhe pra os meus, desgraçados,
já foram olhos queridos
e são hoje desprezados.
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Se o olhar fosse alfinete
e que desse alfinetada,
estavas toda furadinha
como renda de almofada.
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Sobrancelhas de retrós,
olhos de vera alegria,
vê o pago que me destes
a quem tanto te queria.
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Um craveiro na janela
certamente é pra vender.
Quem tem seu amor defronte
nunca se farta de o ver.
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Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.
Disponível em Domínio Público

Aparecido Raimundo de Souza (Em consignação)

MATILDE ENTROU na lojinha do Ernesto, que comercializava de tudo: discos antigos, peças de antiquário, livros, CDS, quadros, brinquedos, os cambaus:

— Pois não?

— Eu queria vender uns objetos... são de uso pessoal... não sei se lhe interessa...

— Teria que estar vendo para lhe dar uma resposta.

Matilde abriu uma bolsa de viagem e de dentro retirou o que havia: calcinhas, sutiãs, calças, blusas, sapatos, meias, um relógio de pulso que ganhara da mãe e várias joias, além de cordões de ouro, no qual, de um deles, pendia uma imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro:

— Quanto o senhor me oferece?

Ernesto primeiro olhou longamente para a garota que se descortinava diante dele, separada apenas por um imenso balcão envidraçado. Jovem, bonita, corpo violão, atraente e pecaminosa, talvez uns vinte anos. Os cabelos compridos, da cor do mel, caiam, lisos até a altura da cintura. Vestia simplicidade e elegância. Nada sofisticado que sobressaísse. Mesmo sem um pingo de maquiagem, seu rosto se destacava pela nobreza da formosura que transmitia, bem como pela humildade que fluía diretamente do seu interior:

— Então, quanto o senhor me daria por toda essa bagunça?

Só então Ernesto desviou os olhos e passou, efetivamente a analisar o que ela trouxera para ser vendido:

— Quinhentos reais.

Matilde baixou o rosto e por breves momentos permaneceu em silêncio:

— Só?

— Só!

— É muito pouco...

— Diga quanto realmente pretendia...

— Achava que o senhor chegaria aos degraus de uns mil reais.

— Nem pensar. Tirando os cordões e as joias, o restante são coisas usadas... nem que você deixasse em consignação.

— Desculpe. O que é deixar em consignação?

— Não lhe daria absolutamente nada pelo que tem aí. A medida que fosse vendendo, prestaria contas e tiraria, claro, o meu lucro.

— É que... bem...    

— ...Continue.

— Precisaria do dinheiro para comprar uma passagem e o que sobrasse reverteria para cuidar da minha mãe doente.

— Para onde está pensando em viajar?

— Minas Gerais. São João Del Rei.

— Mora lá?

— Não.

— Então?

— Minha mãe está acamada...

— Setecentos reais.

Em resposta a moça começou a juntar os objetos colocando os de volta, de qualquer jeito, na bolsa:

— Tá legal. Setecentos e cinquenta reais. Nem mais um centavo.

— De qualquer forma agradeço a sua atenção. Vou tentar um preço melhor em outra loja.

Virou as costas e caminhou, resoluta, para a porta:

— Espere.  

— Sim?

— Além dos setecentos e cinquenta, pago a sua passagem. Mas, em troca, quero um favor:

— Que favor?

— Não desconfia?

Matilde balançou a cabeça negativamente:

— Vou ser direto e reto: sou um homem sozinho. Não tenho mulher. Fica comigo essa noite. Dorme aqui. Em troca, compro a passagem e lhe dou o prometido. Topa?

Matilde, sem outra alternativa, aquiesceu:

— Faz o seguinte. Dê uma volta por aí e retorne às sete horas.

No final do expediente, Ernesto deu por terminado mais um dia. Fechou a loja. Alegre e auspicioso, esperou o regresso da deidade. Assim que ela se fez presente, mais que depressa, tratou de levá-la para os fundos do sobrado. Ali ele mantinha uma espécie de quarto, com um colchão velho e surrado, um sofá capenga e um fogão cheio de panelas e pratos sujos numa pia de canto. Matilde honrou a palavra empenhada: entregou o corpo em troca do prometido: a passagem para São João Del Rei.

Depois de ter se aproveitado o quanto queria da infeliz, fazendo dela gato e sapato, por volta das cinco da manhã, Ernesto se levantou, entrou numa espécie de banheiro sem porta, tomou banho debaixo de num cano de água que saia da parede, vestiu as roupas e, ao se voltar, encarou friamente Matilde nos olhos:

— Vamos. Vista seus trapos e caia fora.

— O senhor vai me dar a passagem?

Ernesto sentou em cima de umas caixas de madeira e começou a rir:

— Pensa que sou trouxa? Por acaso, está escrita, na minha testa, a palavra “OTÁRIO”, em letras garrafais? Pegue seus molambos e rua. Suma!

— O senhor prometeu...

— Fora, o que prometi. Desinfeta... vamos, não tenho tempo a perder...

Chorando copiosamente Matilde se recompôs o mais rápido que pode. Na hora de deixar a loja, Ernesto puxou, com violência, a bolsa de suas mãos:

— O que foi agora? Eu cumpri com a minha parte...

Risos de deboche:

— Eu sei. Confesso, estou satisfeito. Todavia, fico com esses cacarecos pelo tempo que você me tomou. Vai, sua vadia. Vai e nem ouse olhar para trás. Tchau!

Sem onde esconder a humilhação e a vergonha, e pior, agora despojada e sem nada para comercializar em permuta de alguns trocados, Matilde sumiu no resto da noite que logo se faria manhã. Ernesto trancou a porta, e, em seguida, se abriu num sorriso diabólico. Pegou a bolsa e jogou tudo no chão. “Daqui a pouco boto essas porcarias às vistas desse bando de idiotas que aparece por aqui. Devo conseguir, em tudo, por alto, uns bons três mil reais, ou mais. Que joias lindas. Legal! Agora vou fazer um café e me preparar para abrir o meu honesto ganha pão”.

Guardou tudo de volta e retornou ao cano de água e tomou outro banho. Enquanto o jato caia, pensou com seus devaneios: “Estou exausto. Depois desse samba. Para uma vadia reles, aquela piranha com ares de Cinderela, era até boa... valeu...”.

Refeito do banho, pôs água para o café´. Enquanto fervia, resolveu dar mais uma olhada no que “roubara” da pobre infeliz. Entrementes seu pé chutou uma carteirinha de couro que deveria estar oculto num outro compartimento: “Droga! A vagabunda esqueceu os documentos. Só me restava essa...”.  Afoito, vasculhou o conteúdo. Nada havia, de interessante. Uma cédula de identidade, dois reais em moedas de cinquenta centavos, uma certidão de nascimento em pedaços e o resultado de um exame de HIV recente, com data de uma semana atrás. Matilde fazia parte de uma estatística fatal. Uma a mais, infelizmente, que contribuía para aumentar o número de soropositivas vitimadas pela AIDS.

Ernesto escancarou a boca em gritos lancinantes de terror, ao tempo em que se precipitou, de cabeça, por vezes incontidas, como um desmiolado para cima da chaleira de água efervescendo em tresloucada ebulição.       
Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 10)

 

Júlia Lopes de Almeida (Quiromancia)

Uma bela tarde, a minha amiga Rafaela entrou arrebatadamente na minha saleta de trabalho e deixou-se cair num tamborete, a meus pés.

— Que tens? Perguntei-lhe assustada, percebendo-lhe o terror no rosto, ordinariamente repousado.

Por única resposta ela estendeu-me a mão espaldada e nua, e arregalou para mim os seus olhos claros, cor de violeta.

— Não percebo o teu gesto... Roubaram-te o anel que ele te deu?... Não abranges a oitava no piano e desistes de o estudar? Terás reumatismo nos dedos ? Bem; se não queres responder, vai-te embora, mas arranja primeiro o chapéu, que está torto, e modifica esse ar de quem foge de alguém que o persegue na rua...

— Ninguém me seguiu na rua... O anel que ele me deu está na outra mão...

E, como orvalho em violetas, borbulharam lágrimas nos olhos da pobre Rafaela.

— Se pudesses explicar-te...

— Escuta venho da casa da Noêmia Saldanha; havia lá gente de fora, uns homens de quem já não me lembro do nome e um certo rapaz que lia nas mãos das senhoras a buena dicha, ou que melhor nome tenha. Quando eu entrei, a Saldanha disse alto, com o seus guinchinhos de macaca: "Olhem quem vem aí!" e puxou-me com violência para a roda, que se abriu muito amável para me receber. O tal rapaz continuou nos seus prognósticos, que faziam rir a todos. Lia na mão da Sinhá Mendes coisas muito bonitas: que ela se haveria de casar com um moço que a adora... Que há de ir à Europa, que há de ter três filhos gordos mansos, fortes e bonitos; que herdará uma grande fortuna de um parente afastado de quem não terá saudades; que terá lindos vestidos, bons carros, assinaturas no lírico e que morrerá de velha, sem sentir, de uma síncope... Todos riam; a Sinhá estava radiante! Com aquele exemplo, eu fui insensivelmente desabotoando a luva e estendendo também a minha mão. O rapaz tornou-se sombrio, à proporção que a observava. Como eu instasse para que dissesse a verdade, fosse ela qual fosse, ele, muito constrangido, declarou tudo. Disse que não me casarei, que terei bexigas, apesar vacinada duas vezes, e que ficarei marcada como um crivo; disse que a minha família me abandonará e que morrerei ainda moça, de um ataque, na rua! Vida tão feia não merece melhor desfecho!

— Um ataque na rua! Que ignomínia! Vê tu!

— E depois?

— Depois... Que sou muito nervosa — e isto é verdade! — que tenho uma grande paixão... Também é certo... Que tenho excelentes qualidades de coração, o que não me impedirá de morrer como um cão sem dono, na calçada...

— Que mais?

— Ainda querias mais?!

— Que respondeste?

— Fingi heroicidade, que é sempre o nosso costume, mas sabe Deus o que se passava cá dentro! Quando pude fugir, fugi. Os guinchos da Noêmia perseguiam-me; a alegria da Sinhá irritava-me. A felicidade dos outros agrava o nosso infortúnio. Só hoje compreendi isto. Por mais que eu olhe para a mão, para estes caminhos que parecem traçados na palma pela ponta finíssima de um alfinete e por onde marcham os nossos instintos, os nossos segredos e até o nosso futuro se esclarece, por mais que eu observe toda esta rede complicadíssima, não consigo descobrir nada! Se ele se tivesse enganado?! Mas não; vi que falou com toda a convicção, disse a verdade. Eu agora já sei; abandono-me, aceito o meu destino, o meu feio destino de ser medonha, não ser amada e morrer numa calçada, à vista de quem passar na ocasião!

— Não vês, minha tontinha, que te meteram num enredo? Vou apostar eu como o tal rapaz entende tanto de quiromancia como eu.

— Ah, a quiromancia é uma arte!

— E nas salas uma armadilha maliciosa à ingenuidade de certas moças... Quando tiveres algum segredo que não queiras ver profanado, nem pela mais leve suspeita, abotoa bem as tuas luvas ao entrar em certas salas. Entretanto, fica certa de que não será nas linhas da mão que ele se mostre todo, mas no rubor das tuas faces ou no pestanejar dos teus olhos, que serão consultados à proporção que se faça a leitura fatídica. Quanto ao resto, o rapaz, se não foi absolutamente delicado, não deixou de ter uma pontinha de espírito. Sinhá é feia, tu és bonita; ela roça pelos trinta anos, tu ainda não tens vinte, ele quis igualar-vos momentaneamente, vestindo-te de desapontamento e iluminando a outra de alegria. Na tua idade os segredos são leves e fáceis de adivinhar; em todo caso guarda-os contigo, ou só para a confidencia amiga. O recato do sentimento, fortifica-o e enobrece-o. E o coração de uma donzela não se deve devassar a todas as curiosidades... Ele é, como disse o poeta Vigny: un vase sacré tout rempli de secrets. (
um vaso sagrado cheio de segredos)

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: UNAMED. Publicada originalmente em 1906.
Disponível em Domínio Público.

Daniel Maurício (Miudezas do Coração)

Alma nua
como a chuva
que encharca
a roupa as lágrimas
romperam as fontes,
mesmo sem querer
revelando a nudez
da minha
tímida alma.
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Catarata
Da paixão
A lua
Mergulhou
Nos olhos.
O coração
Só enxerga
O que deseja ver.
E as palavras?
As palavras
Tornam-se
Inúteis.
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Como um pardal
solitário
pulando
entre telhados
gorjeio com
tintas e lágrimas
nos muros da cidade
a procura do meu
amor juvenil.
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Como um ritual
sagrado
ininterruptamente
desfilam as fases
da lua.
De janeiro a janeiro
as décadas
despencam
do calendário.
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Despertada
Pelo
Vento
A palmeira
Bate
Palmas
Noite
A dentro.
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De tanto
doer
no peito
a saudade
caiu
em lágrimas
feito pétalas
de margarida.
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Dona Chica
quebrou
a xícara
cortou o dedo
e enrolou
com pano
de chita.
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Ela
bebeu
tanta
solidão
que embriagou-se
com meia taça
de carinho.
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Escorria a poesia.
O ambiente conspirava.
Os lábios entreabertos
Resfolegavam
Suplicantes.
Escorria a poesia.
pernas tremiam.
Num movimento
De ancas...
pássaro ferido em meus
Lençóis. Escorria...
Pura sedução.
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Flores
De
Glicínias
São cachos
de uvas
Aos olhos
Do beija-flor.
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Hoje
eu quero colo
quero abrigo
quero uma canção,
quero um afago
quero um amigo.
Preciso acalmar
o velho e terrível dragão
que insiste a queimar
meu peito
sempre pelo
mesmo motivo:
o amor.
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Máscara.
festa, alegria,
Espetáculo.
De repente
A cortina abaixou.
tive pena de mim.
Recolhi meus cacarecos
Segurei um soluço
Deixei apenas
Uma lágrima rolar
Tristeza doida,
Tristeza doída
Cansaço
F i m.
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Meus passos,
Rastejam
A me
procurar...
Meu sorriso
Alegre
foge
Do espelho,
Quando
vê chegar...
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Não quero
dizer nada
quando escrevo.
Quero apenas,
despertar
as entrelinhas
adormecidas
em cada peito.
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No cais cai
a lágrima do adeus
cai a lágrima
da saudade,
mas no cais
não cai
a esperança
do reencontrar.
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No
Espelho d'água
A beleza
Dança
Ao
sacudir
Do vento.
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O canto
não ficou
pelos cantos
bateu no canto
da porta
e espalhou-se
livre
pelos quatro
cantos
do mundo.
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O Guardião do tempo
Se perdeu na contagem
Do ábaco do Universo
Giraram descontroladas
As constelações
Sóis e luas
Sem medidas
Passaram pelo filtro
E, o dia da cura chegou
Caíram as cascas da ferida
a alma tão tenra e cheia de vida
Muito mais sábia brotou.
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Os pés
de galinha
do meu rosto
só ciscam
as lembranças
nos meus
olhos.
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Os Ses

Se não fosse
O antes
Se não fosse
O quase
Se não fosse o não
Se não fosse o sim
Se não fosse...
A história
Seria outro fim.

E se?…
= = = = = = = = =

O verão radiante
Vestiu seu terno azul,
A pipa vermelha
Distante,
Transformou-se
Em uma gravata
Cegante,
Aos olhos do menino
feliz.
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Página
policial.
O sangue
escorria
em vão,
pelos vãos
dos meus
dedos.
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Tempo...
Maratonista
apressado
que corre tanto
e nem olha
pra trás
ou para os lados.
= = = = = = = = =
Fonte:
Daniel Maurício. Miudezas do Coração. Curitiba: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo autor.

Contos das Mil e Uma Noites (As botas de Abu-Kassim Attanburi)


Contam que vivia certa vez em Bagdá um homem chamado Abu-Kassim Attanburi, que usava as mesmas botas havia sete anos. Todas as vezes que alguma parte delas se rasgava, ele a remendava, de modo que as botas se tornaram excessivamente pesadas e passaram a ser citadas em provérbio. Um dia, Abu-Kassim foi ao mercado de vidros. Um corretor lhe disse: “Ó Abu-Kassim, chegou hoje um negociante de Alepo com um carregamento de frascos dourados que ninguém quer comprar. Compra-o. Eu o revenderei para ti mais tarde, e tu ganharás o dobro de teu investimento”.

Abu-Kassim comprou os vidros por sessenta dinares. Foi em seguida ao mercado de perfumes, e outro corretor lhe disse: “Ó Abu-Kassim, chegou-nos hoje de Tassibina um negociante com um carregamento de água de rosas da melhor qualidade! O negociante precisa prosseguir logo sua viagem, e podes, por isso, comprar-lhe a mercadoria por um preço muito barato; compra-a. Eu a revenderei para ti dentro em pouco, e tu ganharás o dobro de teu investimento”.

Abu-Kassim comprou a água de rosas por sessenta dinares, colocou-a nos frascos dourados e levou-os para casa e os arrumou sobre uma prateleira. Depois, foi aos banhos públicos. Enquanto se banhava, um de seus amigos o interpelou: “Ó Abu-Kassim, gostaria de ver-te mudar essas botas; elas já estão feias demais, e tu és um homem de posses pela graça de Deus”.

“Tens razão”, retrucou Abu-Kassim, “seguirei teu conselho”.

Quando saiu do banho para vestir-se, viu junto de suas botas um par de sandálias novas. Pensou que fosse o seu amigo que lhe as havia ofertado; calçou-as e dirigiu-se para casa. Ora, as sandálias novas pertenciam ao cádi, que estava tomando banho naquele mesmo local. Quando saiu, procurou suas sandálias e não as encontrou.

“Meus amigos”, perguntou ele,”aquele que levou minhas sandálias não deixou nada no seu lugar?”

Procuraram e só encontraram as botas de AbuKassim, que todo mundo reconheceu, pois eram famosas. O cádi mandou os seus homens revistarem a casa de Abu-Kassim. As sandálias estavam, de fato, lá. O cádi ordenou a Abu-Kassim comparecer à sua presença, confiscou-lhe as sandálias e fê-lo flagelar, multar e encarcerar.

Abu-Kassim saiu da cadeia cheio de cólera contra suas botas. Levou-as e atirou-as ao rio Tigre. Elas afundaram. Mas um pescador, tendo atirado sua rede à procura de peixes, recolheu as botas. Reconheceu-as e pensou: “Abu-Kassim deve tê-las perdido no Tigre.” Levou-as para a casa de Abu-Kassim; não o encontrou; mas viu uma janela aberta e jogou as botas para dentro da casa. As botas caíram sobre a prateleira onde estavam os frascos com a água de rosas. A prateleira desmontou-se; os vidros caíram no chão e se quebraram; toda a água de rosas se perdeu.

Ao voltar, Abu-Kassim compreendeu o que se passara e começou a se lamentar e desesperar: “Ó desgraça! Estas malditas botas me arruinaram!”

Então, foi de noite abrir um buraco para enterrá-las e livrar-se delas. Mas os vizinhos, ouvindo o ruído da escavação, pensaram que alguém estivesse procurando demolir a sua casa. Queixaram-se ao governador, que mandou prender Abu-Kassim e o repreendeu:

“Como te permites cavar junto ao muro de teus vizinhos?”

Então, aprisionou-o e só o soltou depois de lhe ser cobrada uma multa.

Abu-Kassim saiu da cadeia mais furioso ainda contra as suas botas. Levou-as e atirou-as nas privadas do caravançarai. Mas as botas entupiram os esgotos; as imundícies transbordaram; o povo protestou contra o mau cheiro. Procuraram a causa e acharam as botas; examinaram-nas: eram as botas de Abu-Kassim!

Levaram-nas ao governador e relataram-lhe o ocorrido. O Governador mandou vir Abu-Kassim, censurou-o severamente, encarcerou-o e obrigou-o a pagar o conserto dos esgotos e outra soma igual a título de multa.

Abu-Kassim saiu da prisão com as botas e, na sua ira, jurou nunca mais se separar delas. Lavou-as e pô-las a secar no terraço de sua casa. Um cão as viu e, tomando-as por uma carniça, pegou-as. Mas enquanto pulava para outro terraço, as botas lhe escaparam e caíram sobre um homem, ferindo-o gravemente.

Examinaram as botas e reconheceram-nas. O caso foi levado ao juiz, que condenou Abu-Kassim a indenizar o homem, de todas as despesas requeridas pelo seu tratamento. Assim, Abu-Kassim gastou o último dinar que possuía.

Apanhou então as botas e levou-as ao cádi e disse-Ihe: “Solicito de Vossa Excelência que redija um ato de separação solene entre minhas botas e eu, que proclame que nada mais temos um com o outro, que nenhum de nós é responsável pelo outro e que eu não poderei ser culpado pelo que minhas botas venham a fazer”.E contou ao cádi tudo que lhe sucedera por causa dessas botas.

O cádi soltou boas gargalhadas e deu um presente a Abu-Kassim antes de despedi-lo.

Fonte:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX.
Disponível em Domínio Público

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 19: Labirinto de Nácar

 

Daniel Maurício (Poetizando em Prosa) 1

Tentar...

O sino insiste a bater com o passar do tempo. O espelho insiste em mostrar os meus sinais, mas o coração não desiste de tentar o amor encontrar. Lábios viciados por beijos, corpo desejoso por sexo, alma suplicante por um afago.

Dificuldades, desilusões?

A solidão me impele a ir em busca de outro amor. A uma simples fagulha a esperança renasce como fênix dourada.

Os sonhos não envelhecem apenas ficam empoeirados. Tentar, tentar, tentar... É o verbo que dá ritmo ao pulsar do peito ofegante.

Gato de mil vidas, não se intimida com a possibilidade do não. Tentar é a ordem do universo, pois o amor pode estar confuso em alguma esquina qualquer, esperando o sinal despertar.

Se o amor não vier depois do jantar, a poesia como sobremesa haverá de bastar. O amor existe para quem ousa e não se cansa de todo o dia buscar.
 
Fonte:
Daniel Maurício. Miudezas do coração. Curitiba: Ed. do Autor, 2021
Enviado pelo poeta. 

Voltaire (História de um Brâmane)

Encontrei nas minhas viagens um velho brâmane, homem bastante sábio, cheio de espírito e erudição;. de resto, era rico, e por isso mesmo ainda mais sábio, pois, como nada lhe faltasse, não tinha necessidade de enganar a ninguém. Seu lar era muito bem governado por três belas mulheres que porfiavam em agradar-lhe e, quando não se divertia com elas, ocupava-se em filosofar.

Perto de sua casa, que era bonita, bem ornamentada e cercada de encantadores jardins, morava uma velha hindu carola, imbecil e muito pobre.

— Quem me dera não ter nascido! – disse-me um dia o brâmane.

Perguntei-lhe por quê.

– “Há quarenta anos que estudo – respondeu-me – e são quarenta anos perdidos: ensino aos outros, e ignoro tudo; esse estado me enche a alma de tal humilhação e desgosto, que me torna a vida insuportável. Nasci, vivo no tempo, e não sei o que é o tempo; acho-me num ponto entre duas eternidades, como dizem os nossos sábios, e não tenho a mínima ideia da eternidade. Sou composto de matéria, penso, e nunca pude saber por que coisa é produzido o pensamento; ignoro se o meu entendimento é em mim uma simples faculdade, como a de marchar, de digerir, e se penso com a minha cabeça como seguro com as minhas mãos. Não só o princípio de meu pensamento me é desconhecido, mas também o princípio de meus movimentos: não sei por que existo. No entanto, cada dia me fazem perguntas sobre todos esses pontos; é preciso responder; nada tenho que preste para lhes comunicar; falo bastante, e fico confuso e envergonhado de mim mesmo após haver falado.

“O pior é quando me perguntam se Brahma foi produzido por Vixnu, ou se ambos são eternos. Deus é testemunha de que nada sei a respeito, o que bem se vê pelas minhas respostas. “Ah! meu reverendo – imploram-me, – dizei-me como é que o mal inunda toda a terra”. Sinto-me nas mesmas dificuldades que aqueles que me fazem tal pergunta: digo-lhes algumas vezes que tudo vai o melhor possível; mas aqueles que ficaram arruinados ou mutilados na guerra não acreditam nisso, nem eu tampouco: retiro-me acabrunhado da sua curiosidade e da minha ignorância. Vou consultar nossos antigos livros, e estes duplicam as minhas trevas. Vou consultar meus companheiros: respondem-me uns que o essencial é gozar a vida e zombar dos homens; outros julgam saber alguma coisa, e perdem-se em divagações; tudo concorre para aumentar o doloroso sentimento que me domina. Sinto-me às vezes à borda do desespero, quando penso que, após todas as minhas pesquisas, não sei nem de onde venho, nem o que sou, nem para onde vou, nem o que me tornarei”

O estado desse excelente homem me causou verdadeira pena: ninguém tinha mais senso e boa-fé. Compreendi que, quanto mais luzes havia no seu entendimento a mais sensibilidade no seu coração, mais infeliz era ele.

Vi, no mesmo dia, a velha sua vizinha: perguntei-lhe se alguma vez se afligira por saber como era a sua alma. Nem chegou a entender minha pergunta: nunca na sua vida refletira um momento sobre um só dos pontos que atormentavam o brâmane; acreditava de todo o coração nas metamorfoses de Vixnu e, desde que algumas vezes pudesse conseguir água do Ganges para se lavar, julgava-se a mais feliz das mulheres.

Impressionado com a felicidade daquela pobre criatura, voltei a meu filósofo e disse-lhe:

— Não te envergonhas de ser infeliz, quando mora à tua porta uma velha senhora que não pensa em nada e vive contente?

— Tens razão – respondeu-me ele; – mil vezes disse comigo que seria feliz se fosse tão tolo como a minha vizinha, e no entanto não desejaria tal felicidade.

Essa resposta me causou maior impressão que tudo o mais; consultei minha consciência e vi que na verdade também não desejaria ser feliz sob a condição de ser imbecil.

Expus a questão a filósofos, e eles foram da minha opinião. “No entanto – dizia eu, – há uma terrível contradição nessa maneira de pensar”. Pois de que se trata, afinal? De ser feliz. Que importa, pois, ter espírito ou ser tolo? Mais ainda: aqueles que estão contentes consigo estão bem certos de estar contentes; mas aqueles que raciocinam não se acham tão certos de bem raciocinar. “É claro – dizia eu – que se deveria preferir não ter senso comum, uma vez que este contribua, o mínimo que seja, para o nosso mal-estar.”

Todos foram de minha opinião, e todavia não encontrei ninguém que quisesse aceitar o pacto de se tornar imbecil para andar contente. Donde concluí que, se muito nos importamos com a ventura, mais ainda nos importamos com a razão.

Mas, refletindo bem, parece uma insensatez preferir a razão à felicidade. Como se explica, pois, tal contradição? Como todas as outras. Aí há muito de que falar.

Fonte:
Voltaire. Breves Contos. Publicado originalmente em 1759.
Disponível em domínio público.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) XXVII

A costureira aos farrapos,
velhinha, agulha na mão,
sempre costurava os trapos,
da roupa da solidão!
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Almas gêmeas!... nossas almas,
feitas de luzes pagãs,
despertam batendo palmas
para as luzes das manhãs!
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A paz de mãe, era tanta,
no altar cercada de luz,
que até lembrava uma santa
de joelhos aos pés da Cruz!
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Aquele teu guardanapo,
com marcas de um beijo teu,
que pena que virou trapo,
aos trapos de um beijo meu!
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A tarde com seus dilemas
pendura nos seus varais,
cordéis com lindos poemas
em seus acenos finais!
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Contando as horas antigas,
por que tu me desconfortas?
pondo essas horas amigas
no entulho das horas mortas!
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Desde a passada primeira,
aos passos de um bom velhinho,
ninguém passa a vida inteira
sem pedras no seu caminho!
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Deus te abençoe, disse o cego,
pela esmola recebida!
E aquela bênção, não nego,
encheu de luz minha vida!
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Essas vozes reprimidas
das insones madrugadas,
são plangências das batidas
dos ritos das alvoradas.
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Eu faço o que for preciso,
em tudo que Deus permite,
para fazer teu sorriso
ser feliz sem ter limite!
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Não reclames das pedradas
que te dão pelos caminhos...
Vê, que às vezes, de mãos dadas,
há aqueles que vão sozinhos!
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Naquele rancho de palha,
onde estamos sempre a sós...
O amor chega e se agasalha,
se faz escravo entre nós!
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No morro, de heróis e bravos,
quantos gritos pelos ares,
lembram os gritos escravos
do Quilombo dos Palmares!
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O pai, ao filho abraçado,
passos tropos, voz cansada;
era o outono, lado a lado,
com a primavera na estrada!
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Ouço em silêncio e assustado,
de repente um forte grito;
era o grito do passado
na voz do próprio infinito!
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Penso que tu, não descansas,
nem cochilas, velho mar;
pois sinto em tuas andanças,
que estás sempre a resmungar!
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Por ciúme ou por destemor,
quanto mais linda e mais bela,
a planta protege a flor
pondo espinho ao lado dela!
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Por que tanto dissabor?
crer em mim, tu tens que crer;
se fiz bem, fiz por amor
se fiz mal, foi sem querer!
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Por sermos irmãos em sonhos
e termos almas irmãs,
não há caminhos tristonhos
para os sonhos das manhãs!
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Saudade - doce lembrança
de um velho amor que foi meu;
tão doce, quando criança,
que a vida nunca esqueceu!
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Saudades dos sonhos vãos;
lembranças tortas e tronchas,
das conchas de tuas mãos,
nas minhas, fazendo conchas!
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Senhor, eu te rogo em prece
de joelhos e tão sozinho,
que eu não caia e nem tropece
nas pedras do teu caminho!
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Sentindo da noite os dedos,
nos braços dos sonhos vãos,
eu vou contando os seus medos
nos dedos de minhas mãos!
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Se o destino que me guia,
aceitasse o que eu pedisse,
punha mais luz e alegria
no entardecer da velhice!...
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Sinto na dor desses laços
dessas folhas pelo chão,
a dor de tantos abraços
de outras vidas que se vão!
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Tu me mentiste, é verdade;
se eu te mentir, me perdoas?
Vou sempre sentir saudade
de tuas mentiras boas!
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Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Enviado pelo trovador.

Arthur de Azevedo (A “Dona Branca”)

A Delgado de Carvalho Júnior


No dia 6 de outubro de 1891, quando o senhor Vieira, ás sete horas da manhã, pôs o chapéu para sair, dona Catarina, sua esposa, disse, consertando-lhe o laço da gravata:

- Sabes de uma coisa? Mana Adelaide mandou convidar-me para ir hoje com ela ao Teatro Lírico.

- Que ideia!

- Aí vens tu! Vai-se embora a companhia e eu não assisto a um único espetáculo, podendo ouvir a Dona Branca de graça!

- Mas, filha, não te lembras que dia é hoje?

- É terça-feira.

- E então?

- E então?

- Pois não sabe que às terças-feiras não dispenso o meu voltaretezinho em casa do compadre?

- Quem te diz que não vás ao teu voltaretezinho? Mana Adelaide conhece os teus hábitos e as
tuas impertinências; foi a mim e não a ti que convidou.

- Mas...

- Olha, eu vou jantar com ela nas Laranjeiras e de lá vamos juntas para o teatro; acabado o espetáculo, ela traz-me no seu carro, e deixa-me ficar em casa. Não gastas um vintém, nem te incomodas.

- Bem sei, mas não é bonito uma senhora casada ir ao teatro sem seu marido.

- Mas com sua irmã... e com o marido de sua irmã...

- Bom, bom, vai; não quero que me chamem desmancha-prazeres. Jantarei sozinho.

O senhor Vieira saiu, foi tratar da vida, e quando, às quatro horas, voltou à casa, já dona Catarina tinha essa ter com a irmã.

O pobre homem ficou muito aborrecido naquela solidão. Toda sua família era essa bela senhora com quem se casara em 1885 e contava dez anos menos que ele. Tinha quarenta e quatro invernos o senhor Vieira, e inteligência bastante para perceber que dona Catarina o não amava; entretanto, contentava-se da respeitosa amizade com que ela se impunha serenamente à sua estima, e preferia mesmo esse discreto sentimento ao amor desordenado e doentio, que produz ciúmes e dispepsias, maus humores e lesões cardíacas. Depositava uma confiança cega em sua mulher e estimava-a deveras. Sentia-se feliz.

Mais feliz seria, entretanto, se houvesse uma criança naquela casa. Dona Catarina sofria por vezes longos acessos de melancolia; algumas noites deixava o esposo sozinho na larga cama de casados, e ia revolver-se num sofá, suspirando, irrequieta, nervosa, sem poder dormir. Mas esses fenômenos eram passageiros, e o marido, atribuía-os às ausência da prole.

- Decididamente, falta uma criança nesta casa!

Depois daquele jantar de solteirão, o senhor Vieira dormiu a sesta, e às sete horas foi para casa do compadre, em São Cristóvão. O senhor Vieira morava no Catete.

- Bravos! Cá está o nosso homem! – exclamou o compadre e exclamaram mais dois amigos da vizinhança, que se achavam à espera do parceiro. – Vamos ao vício!

Os quatro companheiros sentaram-se às oito horas e jogaram até perto da meia noite. O senhor Vieira ganhou dezenove mil e quinhentos. Nunca estivera com tanta sorte.

À meia noite, depois do chá com torradas, o nosso homem saiu, e foi esperar a condução na esquina. Passados uns vinte minutos, apareceu um bonde, mas em sentido contrário, e parou para fazer saltar o Lamenha, que era vizinho paredes meias do compadre.

- Olá! A estas horas, seu Lamenha? – perguntou o senhor Vieira.  – Já sei que vem do Lírico; foi ouvir a Dona Branca.

- Ora deixe-me com a Dona Branca! Se soubesse...

- Então a ópera não presta?

- Não sei; o espetáculo não passou do começo!

- Ora essa! Por que?

- No fim do primeiro ato o público das torrinhas chamou à cena o empresário para ferrar-lhe uma pateada, não sei porque motivo. O empresário não quis vir.

O público zangou-se. A polícia interveio, e agora é que são elas! Ah, seu Vieira, que rolo!...

- Deveras? perguntou o outro empalidecendo.

- Os soldados da polícia acutilavam a torto e a direito, os bancos voavam, os globos dos candeeiros partiam-se, as famílias separavam-se numa confusão medonha, as senhoras tinham chiliques e soltavam gritos...

- As senhoras?... Meu Deus!... E a minha?...

- Há muita gente ferida, e não será para admirar que houvesse mortes! Eu escapei por milagre!

- E minha mulher que foi a este espetáculo!...

- Sua senhora? Não a vi. Só vi sua cunhada, a Dona Adelaide, sozinha, correndo e gritando que parecia uma louca!

- Pois estavam juntas!... Felizmente aí vem o bonde... Quem sabe se não vou encontrá-la morta?

Eu bem que queria que não fosse à tal Dona Branca! Ora esta!...

E o senhor Vieira tomou o bonde, sem mesmo se despedir de Lamenha.

Imaginem o desassossego com que o pobre diabo fez a viagem de São Cristóvão ao largo de São Francisco. Aí tomou um tílburi. O cocheiro confirmou a informação do Lamenha, acrescentando que tinham morrido duas senhoras, sendo uma de susto.

Ao passar pela Guarda Velha, o senhor Vieira notou que o Lírico estava imerso nas trevas e no silêncio. Chegou à casa, e expectorou um grande suspiro de alívio ao entrar na alcova: dona Catarina dormia tranquilamente, envolvida no seu lençol. O marido despiu-se em silêncio e deitou-se ao lado da senhora.

Ela despertou:

- Ah! és tu?

Ele, completamente serenado, resolveu gracejar e perguntou-lhe sorrindo:

- Então, minha senhora, que me diz de Dona Branca?

- É uma ópera muito bonita.

- Hein?

- O último ato principalmente, acrescentou dona Catarina com muita convicção.

O senhor Vieira sentiu o sangue lhe subir à cabeça, mas conseguiu dissimular, e perguntou se a ópera tinha sido bem cantada.

- Perfeitamente cantada. - respondeu ela, mentindo como só as mulheres sabem mentir.

- E não houve novidade durante o espetáculo?

- Nenhuma. O Gabrielesco esteve sublime!

- O Gabrielesco? No último ato?

- Em todos os atos. É um tenorão!

- Está bem.

O senhor Vieira apagou a vela e fingiu que se aninhava para dormir.

- Aí está você amuado! Eu por seu gosto não saía de casa, não me divertia, vivia metida entre quatro paredes! Que homem!...

Ele resmungou uns sons inarticulados; não respondeu.

- Será possível que o Lamenha me enganasse? pensava o marido. Não; - e o cocheiro do tílburi?...

O senhor Vieira passou, talvez pela primeira em sua vida, uma noite completamente em claro.

Ergueu-se logo ao amanhecer, saiu, convenceu-se de uma verdade terrível, e nesse mesmo dia separou-se para sempre de dona Catarina.

Na terça feira seguinte, o senhor Vieira não faltou ao voltaretezinho do compadre. Quando este lhe perguntou: - Então?... Que foi isso?... A comadre? - ele respondeu  melancolicamente:

- A comadre ouvia-me dizer que em nossa casa faltava uma criança e quis arranjá-la fora... Deixa lá! - Vamos ao vício!

Nessa noite perdeu quinze mil e oitocentos.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos fora de moda. Publicado em 1894.
Disponível em Domínio Público

terça-feira, 27 de junho de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 11

 

A. A. de Assis (Viver ou não viver)

Era uma vez uma cegonha que trazia no bico mais um candidato à vida. Seria chamado Chiquinho. A mãe, o pai, os avós, os irmãozinhos, os tios, os primos, os padrinhos, os compadres, a família inteira preparando a festa.

A cegonha voava, revoava, sobrevoava, não aterrissava. Olhava de cima e tremia. De medo.

Até que ponto seria prova de amor entregar uma criança a um mundo assim?

Olhem o que fizeram da natureza: mataram as matas, envenenaram as aves e os peixes, emporcalharam as águas, enfumaçaram o ar. Cadê o verde, meu Deus? Cadê o azul?

Olhem o que fizeram das cidades: um amontoado de cimento e aço, motores roncando, sirenes espalhando pânico, gente correndo, brigando, sofrendo, morrendo.

Olhem o que fizeram dos lugares de morar: cortiços, favelas, janelas com grades, famílias engaioladas em enormes viveiros chamados arranha-céus.

Olhem o que fizeram das praças e dos jardins: onde os namorados? O ladrão espantou. Onde as bandas com as suas alegres retretas? A secura dos corações silenciou. Onde os sabiás e os bem-te-vis? O inseticida exterminou. Onde as flores? A poeira do asfalto sufocou. Onde os garotos que brincavam nas ruas? O trânsito alucinado atropelou.

Olhem o que fizeram do sossego da gente: não há mais sossego. Há medo de tudo: da bactéria, do vírus, do desemprego, da seca, da enchente, da guerra.

A cegonha voava, revoava, sobrevoava, tinha medo de aterrissar. O pai, a mãe, os irmãozinhos, a família inteira, todos felizes, esperando a nova pessoinha.   

Ao mesmo tempo agitados, preocupados. A conta da maternidade, o aluguel, o preço do leite, a mensalidade da escola. Os sustos mais tarde: era um menino, ia querer moto ou carro, ia entrar num mundo louco cheio de perigos e tão competitivo. Os pais pensavam. A cegonha, lá do jeito dela, repensava. O que é melhor: to be or not to be? Viver ou não viver num mundo assim?

Melhor viver. A cegonha sobrevoou, pousou. Chiquinho desembarcou.

Quem sabe será ele o iniciador de um mundo novo?  

Alguém já disse e muita gente já repetiu: “Cada criança que nasce é uma nova prova de que Deus continua apostando na humanidade”.

Deus apostou em Chiquinho. Bem-vindo Chiquinho.

Algum dia, talvez, possamos recitar: Cadê a floresta daqui? Chiquinho replantou. Cadê os rios daqui? Chiquinho recuperou. Cadê os passarinhos daqui? Chiquinho ressuscitou. Cadê as flores? Cadê a paz? Cadê o amor? Cadê a vida? Chiquinho reinaugurou.

Bem-vindo Chiquinho.
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  (Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 30-3-2023)

Daniel Maurício (Alma Lírica)


Amor.
Não precisava de nome
Nem escolhia sobrenome
Apenas pulsava sem procurar sentido
Como o desabrochar de uma flor.
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Depois
de vírgulas
e reticências
Na minha
história
de amor,
Você
Foi o meu
ponto final.
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Desprotegido de ti
"De orelha a orelha"
Meu coração sorri
Sem máscara.
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Do alto
Flores desenham nuvens
Que orvalham
Nos meus olhos.
= = = = = = = = =

Ela despiu-se
De tantas palavras
Que a "verdade nua e crua"
Nem precisou de espelho
Pra se enxergar.
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Ela
Dizia
Que
Não
Tinha
Mais esperança.
Mas todos os dias,
Feito criança,
Demoradamente
Olhava para o céu.
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Ela
Tinha
A alma florida
Mas ele
Não sabia
Ser beija-flor.
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Escrevia
Toda a dor
E a alegria que sentia
Lágrimas desinchando a alma
Gotas que transbordam o rio.
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ÍNDIO

Ao som dos gritos dos guerreiros
A natureza dança de corpo Inteiro.
E nas asas dos pássaros ligeiros
Suas almas cantam livres e sem medos.
Mas nos olhos faiscantes
Escorrem os sonhos dos antepassados.
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Mãos de seda
É esse teu olhar
Que desabotoa as minhas vestes
Fazenda cócegas na minha alma.

Queríamos reter o tempo
Paralisar momentos
E muitos
Até criança
Queriam voltar a ser.
Mas hoje temos pressa
E até em prece
Pedimos que tudo passe
E que o tempo
Volte novamente a correr.
Em silêncio a natureza ouço
Guardando a ansiedade no bolso
Esperando a hora certa
Pra voltar a "brincar".
Tempo...
Leve, lave, livre, passe
E que a paz de novo
Volte a florescer.
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Me fiz de lua
E fui tão tua
Vivendo e revivendo
Todas as fases.
E se hoje,
A ti,
Meu nome
Rima com saudades
Foi porque
Não tivestes capacidade
De guardar
O nosso amor
Que jurastes
Que não teria fim.
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Metamorfose.
Os rios
Da alma
Em mar se
transformam.
Em lágrimas
Nadam
As meninas
Dos
Meus olhos.
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Na escadaria
Do tempo
Me pus em doação.
Lembrei
Do menino
Que eternamente
Esperava
Ser escolhido
Para o time
De futebol.
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Nas ruas
Cerejeiras floridas.
Será que foi minha avó,
Que já anda meio esquecida,
Que espalhou os seus bordados por aí?
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No
Corpo
Da
Índia
Destemida
A natureza sem ser reprimida
Brinca, pintando sonhos...
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No mar de chuvas
As sombrinhas
São botes flutuantes.
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Sinônimo de mãe
É amar
Sem aspas
E sem ponto final.
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Você
Era tão Presente
Na minha saudade
Que o mofo
Não tinha vez.
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Você
Vive de muitos "se"
Enquanto isso
Zombeteira
A vida passa
E você nem vê.

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HOMENAGENS
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A palavra sem ação é morta.
Bradava a voz incessantemente
Reunindo alguns poucos crentes
Na paróquia de Casnigo.
Ah, palavras ditas
Soavam tão benditas
Ricocheteando nas paredes mudas
Em busca de ouvidos atentos
Sequiosos por aliviar seus sofrimentos
Que se abate sobre o mundo.
Mas foi na voz fraca
Entrecortada por longas pausas
Que surge um herói com causa
Que fez o mundo inteiro se comover.
- cedo o equipamento
que permitiria eu viver um resto de vida
Pra alguém que tenha a vida inteira pra viver.

(Homenagem ao padre Giuseppe Berardelli, faleceu aos 72 anos, cedeu um respirador artificial que tinha ganhado para alguém mais jovem)
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Quando tudo se fecha
Se abrem os corações
Dos nossos heróis
Tendo o amor por escudo
Mesmo sabendo
Que a flecha pode sangrar.
Zelam da saúde do mundo
Estando às vezes,
Por trás das máscaras a chorar.
Mas a esperança também é remédio
Fé que cura e com muito carinho
Os dias ruins também irão passar.

(Homenagem aos profissionais da saúde)

Fonte:
Daniel Maurício. Alma Lírica. Curitiba/PR: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo poeta.

Coelho Neto (O Ribeiro)

No princípio, querendo o Senhor estabelecer a ordem perfeita e firmar a harmonia entre as criaturas para que, a todo o tempo, não lhe chegassem queixas de oprimidos ou de descontentes, descia à terra de vez em quando e, ainda que tudo lhe parecesse bem, dissimulando em humildade a sua onipotência, escondia-se na folha da árvore, na pena do pássaro, na pétala da flor, na gota d'água, na estriga (
filamentos de plantas), no grão de areia, na centelha do lume, no espírito do homem, no coração do animal e escutava, na intimidade, o que pensavam ou diziam e se achava razão na queixa, corrigia; se ouvia louvores, exultava.

O pássaro bendizia-o porque Ele lhe dera a asa e o canto; a flor agradecia-lhe o perfume, a árvore a folhagem, a serra o arvoredo, o rochedo a fonte e o musgo, a caverna a sombra e o silêncio, a mina os filões de ouro, o homem o pensamento, a fera a liberdade e o mar não se cangava (
dominava) de desdobrar os vagalhões admirando-lhes as rendas brancas de espuma que se espalhavam nos areais.

A terra era imensa alegria. Todas as vozes, ainda as mais humildes, como a das formigas que carreavam achegas (
materiais de construção) e a das abelhas que recolhiam o mel, eram de agradecimento a Deus. O próprio cardo hediondo mostrava-se ufano da flor que se abria nos seus galhos aleijados.

E Deus parecia contente com o que fizera e, retomando a forma divina, envolvendo-se na auréola refulgente, já se dispunha a regressar ao céu quando ouviu o murmúrio lamentoso que subia de um ribeiro.

Aproximou-se da margem, toda vestida de verdura florente e, inclinando-se sobre as águas passageiras, reteve-as perguntando-lhes porque se queixavam.

— Senhor, disse o ribeiro, a tudo destes liberdade: os pássaros voam por onde querem — se lhes apraz a montanha, batem asas, lá vão; se está em flor o bosque, ao bosque se dirigem. Passam as águias e as levandiscas (
aves): são livres, têm toda a terra e todo o espaço; o homem erra à vontade por todas as devesas (pastagens), os animais percorrem as florestas, atravessam as campinas e os desertos, elegem a moradia que lhes convém; a estrela brilha no céu e fulge nas águas; a terra levanta-se em poeira e vai criar ilhas nas rochas do largo oceano e as vagas do mar, se desejam o sol, chegam-se às praias tépidas e douradas, quando querem o repouso recolhem-se nos extremos do mundo e dormem congeladas. Eu só não tenho o direito de deixar esta prisão estreita, nem de retroceder, o que fazem os pequeninos peixes que nascem no meu seio, mais livres do que eu porque podem ir e vir, zombando da correnteza. Sou um cativo. Quisera poder insinuar-me nos bosques, repousar um minuto á sombra das arvores, correr as areias claras do deserto, rolar pelas ribanceiras alfombradas (campo de relva), ser livre, enfim.

— É quanto queres?

— É tudo, Senhor.

— Assim seja.

E logo, desfazendo as ribanceiras que continham as águas do ribeiro, deixou-as o Senhor livres. Precipitadas, com murmúrio alegre, correram pelos campos, invadiram a floresta, alastraram o deserto, meteram-se pelas furnas. Mas a floresta reteve as que lhe chegaram e, juntando-as em lago, matou-as formando com as miseras, dantes tão límpidas e vivazes, o tenebroso e taciturno pântano. O deserto, de areias quentes, mal sentiu as águas erradias, logo as devorou, sôfrego. As furnas, cheias de pedras, em declives escabrosos, precipitaram-nas de queda em queda. De todos os lados, então, subiram lamentos doridos: no pântano, as vozes das águas agonizantes que se sentiam abafar pelas folhas mortas, pelos ramos secos, escabujando (
agitando), não sobre o saibro claro em que, dantes, haviam corrido, mas sobre um pútrido lençol de lodo; no deserto, gritos das águas que sucumbiam devoradas pela sede eterna dos areais ressequidos; nas furnas o longo, angustioso gemido das águas arrojadas de pedrouço (montão de pedras) em pedrouço.

Foi, então, que o ribeiro arrependido clamou em desespero :

— Fazei-me, Senhor, voltar ao leito antigo, dai-me a doce prisão das minhas formosas margens. Que fui eu pedir, insensato que sou! Pobres das minhas águas! Dai-me, de novo, o antigo leito com as suas margens orladas de verdura; fazei-me tornar à minha prisão e que as minhas ondas continuem a brincar com as libélulas e com as borboletas. Ó o túmulo negro, o pântano triste...! Como me iludiu a floresta! Ó o deserto pérfido e os antros traidores! Juntai as águas dispersas que sofrem por minha culpa, que elas tornem ao leito enxuto. Fazei-me, de novo, o ribeiro de outrora.

E disse o Senhor :

— Foste o único descontente. Entre tantos rios e ribeiros só tu reclamaste contra a minha ordem pedindo liberdade. Dei-a. Eras límpido, tinhas beleza e tinhas frescura e todas as tuas águas corriam juntas, em alegre bando, por entre as sombras cheirosas. Quiseste entrar na floresta, como o homem — lá estás em pântano; quiseste percorrer o deserto como os leões, as areias devoram-te; quiseste voar como o pássaro, o sol absorve-te; quiseste descer a montanha, os penhascos precipitam-te e, querendo ser tudo nem ribeiro és mais, porque a agua que te resta é uma lágrima escassa que desaparecerá no estio, com o ardor do sol.

E, sem mais dizer, subiu o Senhor ao céu e lá ficou na campina o raso fio de água, resto do ribeiro ambicioso, cujos membros jaziam dispersos: —na floresta rebalsados (
estagnados) em pântano, torvelinhando em cachões (borbotões) nas furnas, no deserto em lençol úmido que mal chegava para a sede voraz das areias adustas.

Desde então nunca mais as coisas se queixaram: serviu a todas de exemplo o caso do ribeiro descontente.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 31: Recanto da Saudade

 

João do Rio (Tabuletas)

Foi um poeta que considerou as tabuletas — os brasões da rua. As tabuletas não eram para a sua visão apurada um encanto, uma faceirice, que a necessidade e o reclamo (
propaganda) incrustaram na via pública; eram os escudos de uma complicada heráldica urbana, do armorial da democracia e do agudo arrivismo dos séculos. Desde que um homem realiza a sua obra — a terminação de uma epopeia ou a abertura de uma casa comercial — imediatamente o homem batiza-a. No começo da vida, por instinto, guiado pelos deuses, a sua ideia foi logo a tabuleta. Quem inventou a tabuleta? Ninguém sabe.

É o mesmo que perguntar quem ensinou a criança a gritar quando tem fome. Já no Oriente elas existiam, já em Atenas, já em Roma, simples, modestas, mas sempre reclamistas. Depois, como era de prever, evoluíram: evoluíram de acordo com a evolução do homem, e hoje, que se fazem concursos de tabuletas e há tabuletas compostas por artistas célebres, hoje, na época em que o reclamo domina o asfalto, as tabuletas são como reflexos de almas, são todo um tratado de psicologia urbana. Que desejamos todos nós? Aparecer, vender, ganhar.

A doença tomou proporções tremendas, cresceu, alastrou-se, infeccionou todos os meios, como um poder corrosivo e fatal. Os próprios doentes também a exploram numa fúria convulsiva de contaminação. Reparai nos jornais e nas revistas. Andam repletos de fotogravuras e de nomes — nomes e caras, muitos nomes e muitas caras! A geração faz por conta própria a sua identificação antropométrica para o futuro. Mas o curioso é ver como a publicação desses nomes é pedida, é implorada nas salas das redações. Todos os pretextos são plausíveis, desde a festa a que se não foi até à moléstia inconveniente de que foi operada com feliz êxito a esposa. O interessante é observar como se almeja um retrato nas folhas, desde as escuras alamedas do jardim do crime até às garden-parties de caridade, desde os criminosos às almas angélicas que só pensam no bem. Aparecer! Aparecer!

E na rua, que se vê? O senhor do mundo, o reclamo. Em cada praça onde demoramos os nossos passos, nas janelas do alto dos telhados, em mudos jogos de luz, os cinematógrafos e as lanternas mágicas gritam através do écran de um pano qualquer o reclamo de melhor alfaiate, do melhor livreiro, do melhor revólver. Basta levantar a cabeça. As tabuletas contam a nossa vida. E nessa babel de apelos à atenção, ressaltam, chocam, vivem estranhamente os reclamos, extravagantes, as tabuletas disparatadas. Quantas haverá no Rio? Mil, duas mil, que nos fazem rir. Vai um homem num bonde e vê de repente, encimando duas portas em grossas letras estas palavras: Armazém Teoria.

Teoria de que, senhor Deus? Há um outro tão bizarro quanto este: Casa Tamoio, Grande Armazém de líquidos comestíveis e miudezas. Como saber que líquidos serão esses comestíveis, de que a falta de uma vírgula fez um assombro? Faltou a esse pintor o esmero da padaria do mesmo nome que fez a sua tabuleta em letras de antigo missal para mostrar como se esmera, ou talvez o descaro deste outro: o maduro cura infalivelmente todas as moléstias nervosas...

Mas as tabuletas extravagantes são as do pequeno comércio, sem a influência de Paris, a importação direta e caixeiros elegantes de lenço no punho: as vendas, esta criação nacional, os botequins baratos, os açougues, os bazares, as hospedarias... Na Rua do Catete há uma venda que se intitula O Leão na Gruta. Por quê? Que tem a batata com o leão que nem ao menos é conhecido de Daniel?

Defronte dessa venda há, entretanto, um café que é apenas Café de Ambos Mundos. E se não vos bastar um café tão completo, aí temos um mais modesto, na Rua da Saúde o Café B.T.Q. E sabem que vem a ser o B.T.Q., segundo o proprietário? Botequim pelas iniciais! Essa nevrose das abreviações não atacou felizmente o dono da casa de pasto da Rua de São Cristóvão, que encheu a parede com as seguintes palavras: Restaurant dos Dois Irmãos Unidos Por...

Unidos por... Pelo quê? Pelo amor, pelo ódio, pela vitória? Não! Unidos Portugueses. Apenas faltou a parede e ficou só o por — para atestar que havia boa vontade. A questão, às vezes, é de haver muita coisa na parede. Assim é que uma casa da Rua do Senhor dos Passos tem este anúncio: Depósito de aves de penas. É pouco?

Um outro assegura: Depósito de galinhas, ovos e outras aves de penas — o que é, evidentemente, muito mais. Tal excesso chega a prejudicar, e andasse a higiene a olhar tabuletas, ofício de vadiagem incorrigível, mandaria fechar uma casa de frutas da Rua Sete, que pespegou esta inconveniência: Grande sortimento de frutas verdes e secas.

A origem desses títulos é sempre curiosa. Uma casa chama-se Príncipe da Beira porque o seu proprietário é da Beira, uma venda de Campo Grande tem o título feroz de Grande Cabaceíro porque perto há uma plantação de cabaças; há açougue Aliança e Fidelidade porque é um hábito pôr aliança como título com duas mãos apertadas e fidelidade com um cachorro de língua de fora, bem no meio da parede. Muitos tomam o título de peças de teatro: Colchoaria Rio Nu, Casa Guanabarina, venda Cabana do Pai Tomás. A coisa, porém, toma proporções assombrosas quando o proprietário é pernóstico. Assim, na Rua Visconde do Rio Branco há um armazém Planeta Provisório, e noutra rua Planeta dos Dois Destinos, um título ocultista sibilino; no Catete, um Açougue Celestial. Essa dependência do firmamento na terra produz um péssimo efeito e os anjos têm cada braço de meter medo a uma legião da polícia. Outro, porém, é o Açougue Despique dos Invejosos, e há na Rua da Constituição uma casa de bilhetes intitulada Casa Idealista, naturalmente porque quem compra bilhetes vive no mundo da lua, e há uma casa de coroas, o Lírio Impermeável e uma outra, Ao Vulcão das 49 Flores.

Não é só. Uns madeireiros puseram no seu depósito este letreiro filosófico, que naturalmente incomodará o arcebispado: Madeireiros e Materialistas; e há uma taberna muito ordinária, centro de malandrões, em Sapopemba, que se apossou de um título exclusivamente nefelibata: A Tebaida...

E os afrancesados que denominam as casas de Au Bijou de la Mode; Au Dernier Chic, Queima Chefe, Maison Moderne da Cidade Nova? E os patrióticos que fazem questão da casa de pasto ser 1o de Dezembro, do açougue ser 1o de Janeiro? Do restaurante ser Luís de Camões ou Fagundes Varela? E os engrossadores que intitulam as casas de Afonso Pena durante quatro anos? E os engraçados, os da laracha (
pilhéria) boa, que fazem as tabuletas propositalmente erradas, como um negociante da Rua Chile: Colxoaria de primera Colxães contra purgas e precevejos?

Mas as tabuletas têm uma estranha filosofia; as tabuletas fazem pensar. Há, por exemplo, na Rua Senador Eusébio, perto da ex-ponte dos Marinheiros, uma hospedaria com este título: Hotel Livre Câmbio. Quanta coisa pensa a gente conhecendo o negócio e olhando a tabuleta!

A série é nesse ramo curiosíssima. Há o Locomotora, que é naturalmente rápido; há Os Dois Destinos, há a Lua de Prata, há o irônico Fidelidade, tendo pintado uma senhora a pender dos lábios de um senhor... Quantos!

Na Rua Dr. João Ricardo há um restaurante com este título: Restauração da Vitória.

— Por que “restauração da vitória”? indagamos do proprietário, o Sr. Colaço.

— Eu explico, diz ele. Há cerca de 30 anos, os espanhóis invadiram a ilha Terceira. Como eram poucos os soldados para repelirem o castelhano, os lavradores soltaram todos os touros bravos na praia da Vitória e dessa maneira os espanhóis fugiram. Os paraguaios resistiram também tanto tempo por causa dos touros importados da Argentina.

— Tudo tem uma explicação neste mundo!

— All right!

Alll right, sim! Os títulos das casas, por mais absurdos, como Filhos do Céu, por exemplo, têm uma explicação que convence. Há os nefelibatas, os patrióticos 19 de Janeiro, D. Carlos; o diplomático União Ibérica, os que engrossam uma certa classe, e até um, na Rua Frei Caneca, pertencente ao riquíssimo Pinho, cujo título é uma profunda lição filosófica. O hotel intitula-se Comércio e Arte...

Os pintores desse gênero criaram uma especialidade: são os moralistas da decadência e usam também tabuletas. Um mesmo, talvez por ter sofrido muito de cara alegre, pôs na Rua de São Pedro este anúncio: Fulano de Tal, Pintor de Fingimentos. E realmente eles aturam tanto dos proprietários! Um deles, rapazinho inteligente, era encarregado de fazer a fachada da Casa do Pinto. Fez as letras e pintou um pintainho. O proprietário enfureceu:

— Que tolice é esta?

— Um pinto.

— E que tenho eu com isso?

— O senhor não é Pinto?

— O meu nome é Pinto, mas eu sou galo, muito galo. Pinte-me aí um galo às direitas!

E outro, encarregado de fazer as letras de uma casa de móveis, vendem-se móveis quando o negociante veio a ele:

— Você está maluco ou a mangar comigo!

— Por quê?

— Que plural é esse? Vendem-se, vendem-se... Quem vende sou eu e sem sócios, ouviu? Corte o m, ande!

As letras custam dinheiro, custam aos pobres pintores... O rapaz ficou sem o m que fizera com tanta perícia. Mas também, por que estragar? Em São Cristóvão havia uma Pharmacia São Cristóvão. Desapareceu. Foi a primeira que fez isso na terra, desde que há farmácias. Foram para lá outros negociantes. Como aproveitar algumas letras? Lembraram foco, e, como a Academia não chega os seus cuidados ortográficos às tabuletas, arrumaram Phoco de São Cristóvão. Estava uma tabuleta nova só com três letras novas.

Os pintores de tabuletas resignam-se. Eles, os escritores desse grande livro colorido da cidade, têm a paciência lendária dos iluministas medievos, eles fazem parte da grande massa para que o Reclamo foi criado — são pobres. Talvez por isso, um mais ousado, de acordo com certo açougueiro antigo da Praça da Aclamação, pintando uma vez o letreiro Açougue Pai dos Pobres, pôs bem no meio uma cabeça de boi colossal, arregalando os olhos, que Homero achava belos, como o símbolo de todas as resignações...

E é decerto este o lado mais triste das tabuletas – brasões da democracia, escudos bizarros da cidade.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. Publicado originalmente em 1908.