sexta-feira, 8 de março de 2013

Francisco José Pessoa (Trova: A Mulher)


A Mulher em Trovas


Deus, demonstrando poder,
quando a mulher engravida,
transforma a dor em prazer
na celebração da vida!
Ademar Macedo

Num devaneio qualquer,
feito de sonho e de imagem,
no seu corpo de mulher
fiz a mais linda viagem.
Ademar Macedo

Da criação, a mulher,
deveras é obra prima.
Melhor é aquiescer
sem ela, a vida não rima...
Ana Maria Gazzaneo

Ah! trova com que me enleio...
Tens um gingado qualquer
que lembra esse bamboleio
do corpo de uma mulher…
Anis Murad

Uma trova… um belo tema,
Pra dizer o que se quer;
Quando o poeta é bom, da gema,
Inspira-se…na mulher!
Apollo Taborda França

Mulher... Visão colorida
que no mundo a gente tem...
Só perfuma sua vida
se floresce para alguém.
Daniela Estanislau

Mãe, mulher, sempre presente
no cuidado e educação;
fértil terra onde a semente
frutifica em cidadão.
Eliana Ruiz Jimenez

A família é sinfonia
e a mulher, sua regente,
que com amor e harmonia
orquestra a vida da gente.
Eliana Ruiz Jimenez

Ficou pronta a criação,
sem um defeito sequer,
e atingiu a perfeição
quando Deus fez a mulher.
Eva Reis

A mulher – pura beleza –,
de tez alva, igual à lua,
no universo é a riqueza
da minha alma que flutua.
Fábio Siqueira do Amaral

A mulher que a gente ama,
para nós sempre é a mais bela,
pois o coração conclama
não ver os defeitos dela!…
Harley Clóvis Stocchero

Ser guia da Humanidade,
que busca os rumos da paz,
do amor, da felicidade;
só a Mulher será capaz.
Hélica Cruz de O. Souza

À mulher foi concedido
o dom da maternidade,
e no filho concebido,
recria a humanidade.
Henriette Effenberger

Minha saudade é defeito
que outra saudade requer,
pois, sempre que abro o meu peito,
encontro a mesma mulher…
Héron Patrício

Mulher empreendedora,
mulher que não desanima,
é mulher batalhadora.
Bem merece nossa estima!
Joarez de Oliveira Preto

Mulher é sempre um mistério,
não se sabe o seu segredo;
brincando ela fala sério,
falando sério, dá medo.
José Barros Vasconcelos

Sabendo que o homem criado
teria, aqui, muito espinho,
Deus por tanto preocupado,
pôs-lhe a Mulher no caminho!
José de Vasconcelos Padrão

Amor! És como uma rosa,
cuja corola ao se abrir,
exibe a mulher formosa
que é o meu mais doce elixir!
José Feldman

Minha mulher reza tanto
aos pés de Nosso Senhor,
que eu vou precisar ser santo
pra merecer seu amor.
José Lucas de Barros

Mulher-Mãe, mais bela trova
que o mundo pôde compor!
Nela, o Senhor nos comprova
como é grande o seu Amor!
José Jacinto M. Godoy

Diz-se que em uma mulher
não se bate nem com flor.
Mate-a porém, se puder,
com muitos beijos de amor....
José Solha

Eu queria em tua vida,
não ser "bom" ou "mal-me-quer"
ser somente a flor querida
que me faz sentir Mulher.
Josefa Moraes Rodrigues

Ninguém por certo imagina,
por um momento sequer,
a beleza que há na sina
da arte de ser Mulher!
Josefa Moraes Rodrigues

Ser Mulher é ser divina,
é ter perfume de flor ;
ser adulta e ser menina,
é ser mãe e ser amor.
Josefa Moraes Rodrigues

Alma o mundo não teria
nem teria amor sequer ;
mas Deus criou a poesia
e concebeu a Mulher.
Judith Coelho Maciel

Para a mulher, só um dia?
Àquela que traz no ventre,
sempre com tanta alegria,
dando ao futuro, a semente?
Leda Montanari Leme

- Formem coroa de glória,
estrelas do Pavilhão,
sobre a Mulher que, na História,
aboliu a escravidão!
Lúcia V. Avelar

Mulher, "Imagem de Deus",
graças e dons aplicando,
para os Céus e para os seus,
o Mundo está elevando!
Lúcia Vitória Avelar

Ao teu prazer eu me entrego
- seja lá o que quiseres –
pois te escolhi, eu não nego,
entre todas as mulheres.
Luiz Carlos Abritta

- Uma mulher de verdade,
Traduz sentido profundo:
- No coração tem bondade,
- Nas mãos, as rédeas do mundo!
Lyra Fernandino

Papel da Mulher no mundo,
é ser forte, verdadeira! ...
Amar com amor profundo,
ser do homem companheira!
Lyra Fernandino

Entre os sexos, igualdade
não existe, pensem bem.
O dom da maternidade
somente as mulheres têm.
Lyrss Cabral Buoso

A mulher traduz ternura,
doação, vida e amor;
colabora com doçura
com a obra do Criador.
Marina Valente

Ele mudou a estrutura
no amor que o Mundo requer;
sendo Deus, se fez criatura,
no ventre de uma Mulher!
Mariza da C. Pereira

"Feministas não diria...
Mais femininas não há:
Irmã Dulce - da Bahia,
Thereza - de Calcutá! ...
Mariza da C. Pereira

A mulher apaixonada,
quando recebe uma flor,
fica logo deslumbrada,
achando que é amor.
Myrthes Neusali Spina de Moraes

No Céu, a monotonia
de um Adão sem "bem-me-quer"
era preciso alegria...
e assim surgiu a Mulher!
Nanci R. Zurmely

Da fêmea o maior tributo,
sublime e grande mister,
é gerar em si o fruto
que a torna Mãe e Mulher.
Nanci R. Zurmely

Como se faz a Mulher?
- Muita pimenta com mel
e tudo de bem que houver,
mais um pedaço do Céu!
Nanci R. Zurmely

Ó Mulher, celebridade
- filha, mãe, mulher, madrinha -
já nasceste Majestade
para ser nossa Rainha!
Nei Garcez

A mulher é um ser sublime,
a fonte de inspiração,
sopro de luz que exprime
o auge da criação.
Norberto de Moraes Alves

Sobre mulher não discutam,
seus impulsos não se medem:
- As mais fracas também lutam...
- As mais fortes também cedem...!
Nydia Yaggi Martins

Mulher de recursos fartos!
Como é que está impenitente,
tendo no corpo dois quartos,
dá pousada a tanta gente?
Olavo Bilac

Se não sou mulher rendeira,
sou eleita mulher forte,
sempre chamada guerreira
que luta para ter sorte.
Sílvia de Araújo Motta

Quando Deus fez a mulher,
de “presente” ao homem deu.
Acredite quem quiser:
o homem não mereceu!
Volpone de Souza

Englobando a criação
do que Deus aqui deixou,
é a mulher confirmação
de quanto ele caprichou.
Wadad Naief Kattar

Angela Togeiro (Mulher-Orquídea)


Machado de Assis (As Ventoinhas)

Pintura de Richard Johnson
Brasil, 1839-1908

 A mulher é um catavento,
          Vai ao vento,
Vai ao vento que soprar;
Como vai também ao vento
          Turbulento,
Turbulento e incerto o mar.

Sopra o sul: a ventoinha
          Volta azinha,
Volta azinha para o sul;
Vem taful; a cabecinha
          Volta azinha,
Volta azinha ao meu taful.

Quem lhe puser confiança,
          De esperança,
De esperança mal está;
Nem desta sorte a esperança
          Confiança,
Confiança nos dará.

Valera o mesmo na areia
          Rija ameia,
Rija ameia construir;
Chega o mar a vai a ameia
          Com a areia,
Com a areia confundir.

Ouço dizer de umas fadas
          Que abraçadas,
Que abraçadas como irmãs
Caçam almas descuidadas...
          Ah que fadas!
Ah que fadas tão vilãs!

Pois, como essas das baladas,
          Umas fadas,
Umas fadas dentre nós,
Caçam, como nas baladas;
          E são fadas,
E são fadas de alma e voz.

É que — como o catavento,
          Vão ao vento,
Vão ao vento que lhes der;
Cedem três coisas ao vento:
          Catavento,
Catavento, água e mulher.

Miguel Torga (Poema Melancólico a Não Sei que Mulher)

Portugal (1907-1995)

 Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...

Cesário Verde (Cabelos)

Pintura de Richard Johnson
Portugal 1955 – 1986

Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;

Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.

Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.

Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos,
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!

E, ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;

Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.

Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,
E vais na direção constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e enlanguescer.

E a tua cabeleira, errante pelas costas,
Suponho que te serve, em noites de verão,
De flácido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostração.

E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos Romanos,
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.
...............................................................................

Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.

Lídia Vasconcelos (Flor do Mundo)


José Lucas de Barros (O Dia das Mulheres)

Hoje cumpro o mais justo dos misteres,
Como poeta e amigo da beleza:
Dou parabéns a todas as mulheres,
Vendo nelas, do amor, a realeza!

Às rainhas do lar e deste mundo,
Que, sem elas, pra nada serviria,
Eu desejo, com o apreço mais profundo,
Um reinado de paz e de alegria!

Que haja flores na rota da existência
De toda mãe, que é nosso amor primeiro,
E nunca mais a mão da violência
Baixe sobre a mulher, no mundo inteiro!

Pirangi, 8 de março de 2013.

Fonte:
O Autor

António Barroso [“Tiago”] (Ser Mulher)

Pintura de Mirthes Crespo
Parede – Portugal

Ser mulher, é ser anjo protector,
Asas brancas que tapam, com brandura,
É beber muitas gotas de amargura,
Consolar, em palavras, com amor.

Ser mulher, é dar força e confiança,
Alicerçar a fé num Deus supremo,
É dar-se, por completo, até ao extremo,
E tentar transmitir uma esperança.

Ser mulher, é ser filha e, com carinho,
Tratar, dos ascendentes, com meiguice,
Saber encaminhá-los, na velhice,
E dar-lhes o seu lar, o seu cantinho.

Ser mulher, é também ser companheira,
Amiga do marido, em toda a vida,
E, com ele, vencer qualquer subida,
Ou descer, em conjunto, uma ladeira.

Ser mulher, é ter alma e ser amante,
Afogar os anseios e os desejos
Num caudal de carícias e de beijos
Que podem repetir-se a cada instante.

Ser mulher, é ser a mãe carinhosa
Que aperta seus filhinhos contra o peito,
Lhes mostrando o caminho que é direito,
E ampara numa queda desastrosa.

Ser mulher, é ser fonte de energia,
Moldada em puros versos de beleza,
Uma força que vem da natureza,
Que espalha, à sua volta, a poesia.

Fonte:
Libia Beatriz Carciofetti. Grupo TROVAMAR: União Brasileira de Trovadores – Balneário Camboriú -SC/ Facebook

António Ramos Rosa ( A Mulher)

Portugal,1924

 Se é clara a luz desta vermelha margem
é porque dela se ergue uma figura nua
e o silêncio é recente e todavia antigo
enquanto se penteia na sombra da folhagem.
Que longe é ver tão perto o centro da frescura

e as linhas calmas e as brisas sossegadas!
O que ela pensa é só vagar, um ser só espaço
que no umbigo principia e fulge em transparência.
Numa deriva imóvel, o seu hálito é o tempo
que em espiral circula ao ritmo da origem.

Ela é a amante que concebe o ser no seu ouvido, na corola
do vento. Osmose branca, embriaguez vertiginosa.
O seu sorriso é a distância fluida, a subtileza do ar.
Quase dorme no suave clamor e se dissipa
e nasce do esquecimento como um sopro indivisível.

William Shakespeare (Soneto 17)

Pintura de Mirthes Crespo
Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e mais ameno
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno.

Ás vezes brilha o Sol em demasia
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na terna mutação da natureza.

Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste inverno:

Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver.

Mauro Gouvêa (Poema para a Mulher Amada)


Sonia Nogueira (Trovas para a Mulher)

Pintura de Richard Johnson
Do seu ventre o fruto
Que multiplica na terra
A criação cria o culto
Para a mão que descerra

Cada dia sem a guerra
Levando a paz como lema
Da família quando encerra
Da labuta faz seu tema

Para reservar seu espaço
Subiu no degrau sucesso
Conquistou, soltou o laço
Da profissão fez progresso

Continua mãe dedicada
Amante e companheira
Na profissão destacada
Fez-se mulher sem fronteira

Parabéns pelo progresso
Pelas conquistas capazes
Até no espaço é sucesso
Louvo-as. Rainhas audazes

Fonte:
http://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=31344

Socorrinha Castro (Mulher!)

Pintura de Richard Johnson
Mulher, semente divina que faz brotar a vida,
fonte e manancial de puro amor,
teu coração, é como flor de pétalas coloridas
orvalhando bálsamo que alivia toda dor.

Mulher, semeadora de esperança,
és feita de paz e bondade,
da tua eterna alma de criança,
emanas a alegria, a felicidade.

No teu meigo olhar, irradias
reflexos da imagem Divina,
mulher, és a mais bela poesia,
mulher, és luz que o mundo ilumina.

Símbolo de renúncia e doação,
mulher, abnegação e generosidade,
teu corpo é templo de oração
e tua alma, é juventude, é eternidade!!!

Fonte:
http://metadedemim.mforos.com/1699995/9042100-mulher-em-trovas/

Antero de Quental (A Uma Mulher)

Pintura de Richard Johnson
Portugal, 1842-1891

 Para tristezas, para dor nasceste.
Podia a sorte pôr-te o berço estreito
N'algum palácio e ao pé de régio leito,
Em vez d'este areal onde cresceste:

Podia abrir-te as flores — com que veste
As ricas e as felizes — n'esse peito:
Fazer-te... o que a Fortuna há sempre feito...
Terias sempre a sorte que tiveste!

Tinhas de ser assim... Teus olhos fitos,
Que não são d'este mundo e onde eu leio
Uns mistérios tão tristes e infinitos,

Tua voz rara e esse ar vago e esquecido,
Tudo me diz a mim, e assim o creio,
Que para isto só tinhas nascido!

João Batista Xavier Oliveira (Mulher)

Pintura de Richard Johnson
As forças que dão coragem
Não agem a um ser qualquer:
São virtudes com imagem
estampada na mulher.
................................

A mulher é igual aos lírios
pela sua natureza:
Aos olhos, ternos colírios
a clarear a beleza.

Uma mulher de verdade
simplesmente é poderosa:
Vence os espinhos da idade,
ganha os encantos da rosa.

Era uma vez uma flor
que em mulher se transformou.
O jardim ganhou amor
e a mulher mais flor ficou.

Quem gera a vida tem alma
para o que der e vier.
É o mundo a girar na palma
da mão forte de mulher.

A flor beija a natureza
com sua espontaneidade.
Mulher exala beleza
Na sua simplicidade.

Venceu muitos preconceitos:
Não foram lutas quaisquer.
E se hoje ela tem direitos
é porque é forte e mulher.

Do poeta ao general
a sua figura encanta.
Mulher, a musa imortal
que a natureza acalanta.

O tempo abriu a cortina
e o passado emudeceu.
Cresceu a mulher-menina...
e o mundo também cresceu.

Mulher, não és diferente;
não és deusa, nem escrava...
mas tens um ar competente
que mil corações desbrava.

A vida tem seus abrolhos...
Não é uma força qualquer
que ilumina nossos olhos
a não ser os da mulher.

Fonte:
Grupo TROVAMAR: União Brasileira de Trovadores – Balneário Camboriú -SC/ Facebook

Jacqueline Aisenman (Tantas Anas)

Jacqueline é de Genebra/Suiça 
(Do livro Coracional)

Ana
Não és a estátua
Calada e altiva
Que vigia as noites
Da praça.
Nem és tanto assim
Somente
A heroína contada
Nas longas histórias
Dos livros.
Ana
Te conheci vulto.
Te aprendi mulher.
Aninha filha,
Ana aventura,
Anita do Garibaldi.

Fonte:
Jacqueline Aisenman (org.). Mulher: Um Universo. Revista Varal do Brasil. No. 20. Genebra, inverno de 2013.

Paul Verlaine (A Uma Mulher)

Pintura de Richard Johnson
França, 1844-1896

Pra vós são estes versos, pra consoladora
Graça dos olhos onde chora e ri um sonho
Doce, pra vossa alma pura e sempre boa,
Versos do fundo desta aflição opressora.

Porque, ai! o pesadelo hediondo que me assombra
Não dá tréguas e, louco, furioso, ciumento,
Multiplica-se como um cortejo de lobos
E enforca-se com o meu destino que ensanguenta!

Ah! sofro horrivelmente, ao ponto de o gemido
Desse primeiro homem expulso do Paraíso
Não passar de uma écloga à vista do meu!

E os cuidados que vós podeis ter são apenas
Andorinhas voando à tarde pelo céu
— Querida — num belo dia de um Setembro ameno.

Fonte:
http://www.citador.pt/poemas/a-uma-mulher-paul-verlaine

Charles Baudelaire (Perfume Exótico)

Pintura de Richard Johnson
França, 1821-1867

Quando eu a dormitar, num íntimo abandono,
Respiro o doce olor do teu colo abrasante,
Vejo desenrolar paisagem deslumbrante
Na auréola de luz d'um triste sol de outono;

Um éden terreal, uma indolente ilha
Com plantas tropicais e frutos saborosos;
Onde há homens gentis, fortes e vigorosos,
E mulheres cujo olhar honesto maravilha.

Conduz-me o teu perfume às paragens mais belas;
Vejo um porto ideal cheio de caravelas
Vindas de percorrer países estrangeiros;

E o perfume sutil do verde tamarindo,
Que circula no ar e que eu vou exaurindo,
Vem juntar-se em minh'alma à voz dos marinheiros.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Francisca Clotilde (A Um Poeta)


Mevlana Jalaluddin Rumi (Poesias da Pérsia Antiga)

O CORAÇÃO e A ALMA
A brisa da manhã trouxe-nos uma mensagem:
Viste tu no caminho um coração pleno de fogo,
Viste tu este coração abraçado e cheio de paixão
Que incendeia cem rochedos de sua chama?

A VISÃO

Quem terá visto algo que em realidade existe, mas não se manifesta?
Quem terá visto o que se manifesta no coração, mas não repousa nos lábios?
Quem terá visto aquele que é a realidade do mundo, mas não se encontra no mundo?
Quem terá visto na existência e na não-existência uma tal não-existência?

A CASA DE HÓSPEDES

O ser humano é uma casa de hóspedes.
Toda manhã uma nova chegada.

A alegria, a depressão, a falta de sentido, como visitantes inesperados.

Receba e entretenha a todos
Mesmo que seja uma multidão de dores
Que violentamente varrem sua casa e tira seus móveis.
Ainda assim trate seus hóspedes honradamente.
Eles podem estar te limpando
para um novo prazer.

O pensamento escuro, a vergonha, a malícia,
encontre-os à porta rindo.

Agradeça a quem vem,
porque cada um foi enviado
como um guardião do além.

NO AMOR…
"Sai do círculo do tempo
e entra no círculo do amor.
Desce à rua das tavernas
e senta entre os beberrões.

Se queres a visão secreta,
fecha teus olhos.
Se desejas um abraço,
abre teu peito.

Se anseias por uma face com vida,
rompe este rosto de pedra.
Por que hás de pagar o dote da vida
a essa velha bruxa, a terra?

Mil gerações já gozaram
do que agora tens.
Prova a doçura em tua boca
que antes foi flor, abelha e mel.

Vamos, aceita esta pechincha:
dá uma única vida
e leva uma centena."
––––––––––––––-

"Existe melhor solução que a loucura?
Cem âncoras despedaçadas por causa da loucura.

Quantos pela razão se tornaram infiéis?
Alguém jamais viste infiel por loucura?

A tristeza engordou, então vai, torna-te louco,
A tristeza definha por causa da loucura.

À taverna aonde vão os loucos de amor,
Vá logo, e toma da taça oferecida pela loucura.

Infelizes, foram eles, e sem nenhum proveito,
Os sultões turcos, privados da loucura.

Felizes e vitoriosos, amados da fortuna,
os ginetes guerreiros, por causa da loucura.

Tu sobes aos céus, semelhante à Jesus,
Se tens por auxílio a pluma da loucura.

Ó tu, Chams de Tabriz, impelido por teu amor,
Cem portas se me abriram pela loucura”

TREZE POEMAS

I
As palavras, mesmo que venham da alma,
ocultam a alma, como a névoa pairando sobre o oceano
cobre a costa, os peixes, as pérolas.
É um trabalho nobre construir discursos filosóficos coerentes,
mas eles bloqueiam o sol da verdade.
Veja as qualidades de Deus como um oceano
e este mundo como a espuma sobre a pureza delas.
Limpe a superfície e veja além do alfabeto direto para a essência,
assim como você faz com os cabelos
que cobrem os olhos de sua amada. 

Eis o mistério: esse mundo complexo e surpreendente
é a prova da presença de Deus
mesmo estando cobrindo a beleza.
Um floco da parede de uma mina de ouro
não dá muito a ideia de como é quando
o sol brilha lá dentro e torna o ar e os trabalhadores dourados.

II

Você é o amanhecer que chega no meio da noite,
fios de cabelo de música preenchendo a flauta,
a compreensão entrando através do ouvido e do olho,
o perfumado vapor do sabonete.
Sinais e instruções específicas articulam-se de você,
ensinando-nos novas maneiras de peregrinar.
Perguntar por que e como já não é mais correto.
Digamos que a alma é como os pés de uma formiga,
ou a água do mar, amarga e salgada,
ou uma cobra que tem também o antídoto
para o seu veneno em seu crânio:
nós rompemos através destas formas enigmáticas
para nos sentar em sua sombra da manhã.

III

Este momento maravilhoso, o gosto do nada,
na companhia dos pobres e dos vazios.
Sente-se com Bistami, não com algum adivinho.
Existem mais do que dois feriados no ano!
Nós celebramos um nascimento e um solstício a cada segundo.
Recém-nascidos, precisamos de pão fresco!
A vida cresce dos mortos,
da mesma forma que os vivos são levados para a morte.
Ramos secos para o fogo:
galhos verdes curvam-se no chão com os frutos;
o prazer preenche o seio de uma mãe:
coloque sua boca ali e mame. Você deve.
Fiz muitos discursos elegantes para a assembleia.
Agora é hora de andar lá fora e ficar em silêncio.
Shams me atrai para as palavras, depois dois dias de silêncio.

IV

O cantor canta sobre o amor,
até que o Amigo aparece na soleira da porta.
A fumaça da cozinha flutua para as nuvens
e se torna um vinho de mil anos.
Estou aqui,
não calculando o crédito acumulado ou com especulações futuras.
Sou a vinha e o barril onde as uvas são esmagadas,
toda a operação cuja transação despeja esta taça de vinho,
este momento, este poema.
Um homem se depara com a bagagem,
papeis da casa, arrependimento e desejo,
não sabendo para qual tender.
Nenhum deles.
Depois que você tiver visto a face, as preocupações mudarão,
assim como a água do lago torna-se bruma.

V

O amor está vivo e alguém recebendo seu suporte
está mais vivo do que os leões rugindo
ou que os homens com uma coragem feroz.
Bandidos armam emboscadas uns para os outros na estrada.
Eles conseguem riqueza, mas permanecem em um só lugar.
Os amantes ficam se movendo,
nunca o mesmo, nem por um segundo!
O que faz os outros chorarem eles apreciam!
Quando eles parecem bravos eles não acreditam em suas faces.
É um raio da primavera, uma piada diante da chuva.
Eles mastigam espinhos até o fim juntamente com a grama do pasto.
Gazelas e leões jantando.
O amor é invisível exceto aqui em nós.
Às vezes louvo o amor, às vezes o amor louva a mim.
O amor, uma pequena concha
em algum lugar do fundo do oceano,
abre sua boca. Você e eu e nós, esses seres imaginários,
entram na concha como um único gole de água do mar.

VI

 Você veste uma lã grosseira, mas você é um rei,
assim com a energia da alma se esconde,
 como o amor se lembra.
Você entra nesta sala numa forma humana
e como a atmosfera que respiramos.
Você é o polo central através dos nove níveis
conectando nós e eles a absoluta ausência.
Para que possamos obter o que queremos
você dá falha e frustração.
Você quer apenas a companhia do leão e seu filhote,
não de pernas vacilantes.
Aquele homem ali que você sugere
deve remover sua cabeça antes de entrar no templo.
Então ele poderá ouvir sem ouvidos a voz que diz:
Minha criatura.
A estrada que leva um mês para ser percorrida
você cobre essa distância em um dia.
Não ligue para pagamentos de ouro e prata.
Quando sentir-se generoso, dê a sua cabeça.
Minha beleza, você não precisa de um guia.
Aquele que segue e aquele que lidera são inseparáveis,
assim como a lua e o círculo ao seu redor.
Um árabe arrasta seu camelo de cidade em cidade.
Você segue através de seus problemas e mudanças de crença,
ambos não são diferentes da lua movendo-se
ou do manjericão crescendo e sendo cortado para um buque.
Não importa que você tem estado perdido.
A poupa ainda está lhe procurando.
É um novo começo, meu amigo,
esse acordar numa manhã sem neblina
e a ajuda chegar sem você pedir!
Uma taça submersa está girando dentro do vinho.
Com o pesar mandado para longe chega uma doce gratidão.

VII

Para a ausência o incenso queima perfumado.
O amor que sentimos é a fumaça disso.
 A existência é pintada pela não existência – sua fonte,
o fogo por trás da tela.
A fumaça nascida desse fogo esconde o fogo!
Passe através da fumaça.
A alma, um rio um movimento,
o corpo, o leito do rio.
A alma pode quebrar o círculo do destino e do hábito.
Segure as mãos da ausência
e deixe-a o levar através das Plêiades,
abandonando seco e molhado, quente e frio.
Você se tornará um confidente de Shams de Tabriz.
Você verá claramente a glória do nada
e inexplicavelmente permanecerá ali.

VIII

Veja como o desejo mudou em você,
O quão leve e sem cor ele está,
Com o mundo gerando novas maravilhas
Por causa de sua mudança.
Sua alma tornou-se uma abelha invisível.
Não vemo-na trabalhando, mas ali está uma colmeia inteira!
Seu corpo mede por volta de um metro e tanto,
mas sua alma eleva-se pelos nove níveis do céu.
Um barril arrolhado com terra e uma estaca de madeira bruta
Mantém em seu interior o mais velho vinho da vinha.
Quando lhe vejo, não é tanto a forma física,
mas a companhia de dois cavaleiros,
sua devoção de puro fogo e seu amor por aquele que lhe ensina;
em seguida o sol e a lua um passo atrás.

IX

Para um dervixe todos os dias são como sexta-feira,
como o início de um feriado,
Um começo de uma viagem que não terá fim.
Vestido na beleza da alma, você é um mês todo de sextas-feiras,
Doce lá fora, doce aqui dentro.
Sua mente e seu ser profundo caminham juntos
como dois amigos caminham para dentro de sua amizade.
As ruínas não permanecem no lugar num riacho que corre rápido.
Deixe os ressentimentos serem lavados no oceano.
O olho de sua alma assiste um ramo verde da primavera mover-se,
enquanto que esses outros olhos amam velhas histórias.

X

Siga o conselho de janeiro. Empilhe a lenha.
O tempo ficará frio inevitavelmente
e você fará fogo para permanecer saudável.
Estude a grande metáfora desse trabalho anual.
A lenha é um símbolo para a ausência.
O fogo, para o seu amor por Deus.
Nós queimamos a forma para aquecer a alma.
A alma ama o inverno, por isso ela aceita relutantemente
o conforto da primavera com suas dádivas elegantes e proliferastes.
Tudo é parte do plano: o fogo virando cinzas,
virando o solo do jardim, virando hortelã, salgueiro e tulipa.
O amor se parece com o fogo. Alimente-se nele.
Seja a lareira e a lenha.
Parabéns por essa metalurgia que faz uma agulha de uma barra de metal fundido.
Acalme o fogo agora: para a mariposa uma janela,
para você uma armadura de rosas!
O faraó dissolve como iogurte na água.
Moisés vem para o topo como óleo.
Árabes finos carregam a realeza.
Cavalos, os sacos de esterco seco.
A linguagem é um barulho irritante no moinho do significado.
Um rio silencioso gira a pedra de moer.
As palavras-grão são ruidosamente despejadas na esteira,
pulverizadas sob a pedra como fofoca.
Deixe este poema ser assim moído.
Deixe-me retornar para o fogo do amor
que refina o puro ouro de meu amigo, Shamsuddin.

XI

Vejo minha beleza em você. Torno-me um espelho
que não pode fechar os olhos para o seu anseio.
Meus olhos molhados com os seus na luz do alvorecer.
A cada momento minha mente dá a luz, sempre concebendo,
sempre no nono mês, sempre no ponto. Como aguento isso?
Tornamo-nos estas palavras que dizemos,
o som de um pranto movendo-se no ar.
Estes milhares mundos que surgem de lugar nenhum,
como pode sua face contê-los?
Sou uma mosca no seu mel, então mais perto,
uma mariposa pega na fascinação da chama,
depois um céu vazio estendido em homenagem.

XII

A lua vem visitar como um convidado da noite.
A rosa senta-se ao lado do espinho.
Alguém lavando roupas pede pela misericórdia do sol!
O compasso da perna circula o ponto.
Maomé chega aqui, um estranho,
uma nascente para esta árvore seca.
Hallaj sorri em sua cruz.
A romãzeira floresce. Todos falam sobre as folhagens,
não com palavras mas quietamente
de mesma forma que o próprio verde fala de dentro,
conforme começamos a viver nosso amor.

XIII

Estou aqui, neste momento, dentro da beleza,
o presente que Deus deu, nosso amor:
este sinal circular e dourado
significa que estamos livres de qualquer dever:
da eternidade volto minha face para você
e para dentro da eternidade:
temos estado apaixonados todos esse tempo.

Fontes:
http://poesiaexpressaodaalma.blogspot.com/search/label/Jalal-ud-Din%20Rumi
http://ricardo-yoga.blogspot.com/2012/05/jalaluddin-rumi-treze-poemas.html

Mevlana Jalaluddin Rumi (1207 – 1273)

Mevlana Jalaluddim Rumi nasceu em Balk, antiga Pérsia e atual Afeganistão, em setembro de 1207. Seu pai, Bahauddin Walad, foi um dos maiores eruditos de seu tempo, conhecido como Sultan Ulema, o Sultão dos Sábios e teve influência decisiva na formação de Rumi.

Na iminência da invasão mongol, Bahauddim migrou ao longo de alguns anos com sua família. Durante essa peregrinação, Rumi - em sua infância e adolescência - presenciou o encontro de seu pai com grandes mestres do Sufismo, como Faraddudim Attar.

Havia uma disputa entre os sultões e califas pela presença de seu Pai. Todos queriam construir Madrassas (escolas) para acomodar Bahauddin e sua família, e manter em suas cidades esta grande eminência. Mas foi em Konia, na antiga Anatólia e atual Turquia, que Bahauddim e sua família se estabeleceram.

Rumi passou por uma formação clássica que abrangia todas as áreas de conhecimento Islâmico. Ele estudou Gramática, Jurisprudência, Comentário Corânico, as tradições do Profeta, Teologia, Filosofia, Matemática, Astronomia, e foi introduzido ao conhecimento e prática do caminho Sufi. Foi enviado por seu pai às melhores escolas e logo, passou a ser reconhecido pela profundidade e brilhantismo de sua compreensão.

Com a morte de seu pai, Rumi assumiu a sua madrassa aos 24 anos. Ele era reverenciado por todos seus discípulos, e a população em Konia o chamava de Mevlana (nosso mestre).

Para compreender melhor a influência de Bahauddim sobre Rumi, segue abaixo um trecho de seu livro, o Maarif:

Se Deus diz ‘Nós’, significando EU SOU, então qualquer pronome que eu utilize se torna supérfluo. As designações caem como pétalas. A sabedoria vem e eu sinto tamanho deleite a me transbordar, que temo perder meus sentidos frente a isto. Eu digo a mim mesmo: amante, amado e os outros caminhos do amor não são uma única coisa?

Da mesma forma com os atributos Divinos e os seres humanos, existe a unidade no Amor. No coração não existe espaço para diferenciação, somente unidade e o Amado. Eu desistiria de livros e posses, das minhas virtudes e reputação, tudo por um único momento dentro desta presença.

Após a morte de Bahauddim, seu antigo discípulo Burhaneddin, veio a Konia para completar o treinamento de Rumi. E durante muitos anos, mesmo mantendo a madrassa e seu papel na comunidade, Rumi devotou-se a Burhaneddin e já demonstrava o desenvolvimento do elemento que iria tornar-se central em sua vida, a compreensão do papel do Mestre, Amigo e companheiro de Jornada como reflexo da Perfeição e do Amor Divino.

Após a morte de Burhaneddin, sentindo-se maduro, Mevlana assume integralmente seu papel na madrassa como Mestre, e sua fama e renome espalham-se para além das fronteiras de Konia.

E então surge Shamsuddim Tabriz, o homem que iria transformar Mevalana Jalaluddin Rumi no mestre que renovou o caminho místico e influenciou outros professores e escolas além das fronteiras do Sufismo ou do Islã. Shams continua sendo uma figura enigmática, a quem muitos atribuem diversas origens e lendas. Alguns o associam à tradição Ismaelita e sua forte influência Persa, outros aos Malamati, grupo Sufi que foi chamado de Povo da Culpa por seu comportamento pouco.

Mas isto é apenas conjectura, pois naquela época, o Sufismo ainda apresentava muita vivacidade e liberdade e ainda não havia sido formatado em escolas, ordens ou linhagens, fenômeno que demorou um século para acontecer. Os mestres e dervixes peregrinavam pelas cidades mesclando conhecimentos e interagindo de forma mais livre. As Madrassas e outras instalações serviam-lhes de acomodação, mesmo se fossem dirigidas por outros mestres. Por causa dessa mescla tornou-se possível o resgate das tradições antigas e o florescimento de um conhecimento novo.

Na época de Rumi o caminho Sufi era dividido basicamente em duas linhas. A primeira, chamada de caminho dos sóbrios, com origem nos primeiros Sufis de Bagdá, que prezava o caminho do conhecimento e auto-controle e tentava manter-se em bons termos com a ortodoxia. Este caminho está geralmente associado ao nome do grande mestre Junayd, e tem em figuras como Al Gazalli um exemplo posterior.

O outro caminho, conhecido como caminho dos “Loucos de Deus”, ou bêbados, está associado aos grupos de Basra e ao nome de Bayazid Bistami, e tem em Al-Hallaj, que foi sentenciado à morte, um expoente posterior.

Rumi já havia percorrido o caminho dos sóbrios e vinha vivendo de acordo com seus preceitos. Porém, a partir de seu encontro com Shams, ele descobre a dimensão do Amor, um estado tão celebrado pelos “Loucos de Deus”.

Mas é importante ter em mente que Rumi e Shams não devem ser associados com um ou outro destes caminhos. Shams era um sufi solitário e selvagem, que desdenhava da incompleitude daqueles que se aprisionavam a qualquer dos dois caminhos. Um mestre, para ser digno desse título, deveria aniquilar-se na verdade e queimar suas concepções a respeito do caminho místico.

Shams, que em persa significa Sol, buscava um companheiro que compreendesse seu ardor, e se transformasse ele também, em fogo. E para que Rumi pudesse atingir sua plenitude, ele precisava queimar, tornar-se um sol. É o próprio quem Rumi diz: “Eu estava cru, e quando encontrei Shams fui cozido e me consumi”.

Mevlana, como no trecho do Maarif citado acima, abandonou os livros, o estudo, seus discípulos e reputação para mergulhar na presença de Shams. É nesta época que Rumi é introduzido aos Giros e às cerimônias de Zikr, e de sua madrassa começa a transbordar a música e poesia.

Mas da mesma forma com que surgiu, Shams some repentinamente, deixando Rumi ser consumido no fogo do Amor e da Saudade que ele o havia apresentado e que sua separação abrasava.

É de seu desespero que brotam suas poesias, que lamentam a saudade e a separação do Amigo que havia se tornado o espelho para sua alma, e em cujos olhos ele contemplava o Amor que buscava.

Shamsuddin está eternamente vivo em meu coração.
Shamsuddin é a generosidade de toda alma.
Shamsuddin é o brilho do dia,
Shamsuddin é céu que gira.
Eu não sou o único cantando, Shamsuddin, Shamsuddin!
Os rouxinóis cantam dos jardins,
E os falcões nas montanhas.
A beleza da noite estrelada é Shamsuddin.
O jardim do Paraíso é Shamsuddin.
O Amor, a compaixão e a gratidão são Shamsuddin.
Ó Deus, mostre-me aquele local interno,
Onde sentamos juntos
Com Shams entre nós e eu ao seu lado.
Ó Shams, você é a esperança de todo coração,
Aquele por quem todo amante espera.
Ó Shams, retorne!
Não deixe minha alma em ruínas!


Rumi enviou discípulos e o próprio filho em busca de Shams, apelando por sua volta. E quando seu filho retorna com Shams, novamente eles mergulham em seus mistérios, transformando um ao outro. Mestre e discípulo, amante, amado e amigo, todos os limites se consomem na plenitude da Presença divina.

O amigo é o espelho para Alma,
Não respire na face do Espelho, ó minha alma!
Pois o espelho da alma nada mais é que a face do Amigo.


A morte de Shams também está envolta em mistérios e alguns autores sugerem que ele tenha sido assassinato por discípulos invejosos. Depois da morte de Shams, Rumi mergulha na saudade novamente e se deixa consumir por inteiro. Mas desta vez emerge pleno na compreensão de que a separação é somente um véu, imposto pelo próprio ser humano que insiste em perpetuar sua cegueira e ignorância. Ele vê que a luz que contemplava em Shams era a Luz da Presença Divina em si, e também a Luz de sua própria Essência. Nesta transformação, Mevlana pode contemplar a própria realidade como expressão da unidade, que revela eternamente a beleza e perfeição divinas.

É deste processo que nasce toda sua arte. Nasce também o caminho que ele incita o ser humano a percorrer, composto da busca pela compreensão da potencialidade humana e das amarras que o aprisionam aos níveis mais baixos da expressão do seu eu. Esta é a parte crucial de seu legado, que muitas vezes é ignorado devido à apreciação meramente poética e superficial de seu ensinamento.

Ó tolo, que com centenas de consentimentos e com teus próprios pés
Ingressas em uma jornada em direção a um destino cruel!
E em teus caprichos buscas estes sonhos de riqueza, poder e domínio!
Fale de Ti mesmo agora!
Tu possuis uma essência humana ou a essência bestial de um asno?
Não vês claramente o mal dentro de ti,
Ou então, irias te odiar com toda tua alma!


Mas se Mevlana acusa com rigor e indignação, também instrui e orienta. Ele traz a recordação da real dimensão pessoal e também de sua total potencialidade. Ele agita as almas a romperem os grilhões que as aprisionam, abrasando os corações com a recordação do verdadeiro amado.

Ouve,
presta atenção novamente ó viajante!
Está tarde e o sol da vida está se pondo.
Enquanto você ainda tem forças
Bata suas asas vigorosamente.
Cuidado!
Não diga Amanhã!
Porque muitos amanhãs já se passaram.
Não deixe que os dias de semeadura passem todos.


Rumi penetra na taverna dos amantes compartilhando o vinho do amor divino, declarando as belezas e perfeição do Amado. Mas esta dimensão não deve ser associada com os êxtases que levam à perda de consciência, ou à dimensão dos “loucos de Deus”, que tanto atiçam as fantasias dos aspirantes nessa jornada. Na presença de Deus esta embriagues nada mais é que a sobriedade última da contemplação de Sua Face. Por isso, Rumi declara ser necessária maturidade para trilhar o caminho do Amor, assim como para aprender os segredos do Giro. Pois mesmo ele, só foi iniciado nestes mistérios após longos anos de treinamento e transformações.

Ó irmão,
Traga o puro vinho
Do amor e da liberdade.
Sirva o Vinho,
Pois a vida sem Amor
Não é nada a não ser morte lenta.
*
O chão e o teto dos Céus
Estão todos tingidos com vinho!
Mas quem jamais viu
Um único copo de vinho em nossas mãos?

Para se aproximar de seu ensinamento é necessário penetrar no real significado do caminho que ele apresenta. Mas, o real significado deve ser buscado muito além de uma apreciação superficial. Ibn Arabi, um Sufi reconhecido como um dos maiores místicos da História e cujo enteado e discípulo, Sadruddin Konevi, foi amigo de Rumi, diz: “O místico não pode indicar sua dimensão a outros homens; ele pode apenas indicá-la simbolicamente para aqueles que começaram a experimenta-la por si próprios”.

Esta trajetória não se limita a leituras e aquisição de conhecimento, seja intelectual ou poético. É necessário que haja uma transformação que nasce a partir do esforço em mudar a si mesmo e desenvolver as suas potencialidades latentes.

A morte de Mevlana aconteceu em 17 de Dezembro de 1273, e segundo as descrições “transportaram seu corpo através da cidade, o povo e os nobres descobriram a cabeça, mulheres, homens e crianças assistiram ao seu enterro. Estavam presentes membros e discípulos de comunidades e nações distintas - cristãos, judeus, turcos, árabes e gregos - cada qual com seu livro sagrado. Leitores do Corão liam belos versículos, os sacerdotes rezavam as preces da ressurreição com voz melodiosa, grupos de músicos recitavam e cantavam versos e canções compostos por Mevlana.”

Mas para Mevlana a morte é o dia do retorno ao Amado, e deveria ser celebrada como o casamento da alma com Ele. Em suas próprias palavras: “Prazerosos, alegres, ébrios, aplaudamos o encontro final com o Amado”.

Além do Mathnavi, sua maior obra, ele deixou poesias que foram copiladas posteriormente, sendo a mais famosa, o Divan. Rumi também escreveu o Fihi-ma-Fihi que é uma compilação de aulas e ensinamentos sobre diversos temas dirigidos diretamente a seus discípulos.

O impacto de sua obra exerceu transcendeu os limites do Sufismo e do Islão. A universalidade e humanismo de suas idéias e posturas foram responsáveis por reunir à sua volta discípulos de todas as religiões e tradições. Após sua morte, seu exemplo e conhecimentos foram perpetuados, influenciando não apenas todos os grandes místicos da história, mas artistas, filósofos e pensadores.

O que distingue sua poesia e idéias, bem como sua trajetória pessoal, é a forma apaixonada com que buscou, nas expressões da Beleza e do Amor, os elementos intrínsecos da relação do homem com o Criador e com a própria criação.

Rumi busca esta Beleza na música, no Giro dervixe, na poesia e em toda forma de arte, mas principalmente na própria vida.

Mevlana é o poeta do Amor, mas de uma forma de amor que não está baseado em fantasias e ilusões, mas na luta desesperada e apaixonada da alma em encontrar a Verdade. E nessa luta é possível atingir a compreensão de que tudo o que separa a alma de seu objetivo é a própria incapacidade do ser humano em atingir sua plenitude. Somente após remover os véus causados pela própria cegueira é que será possível penetrar nesta saudade e amor, que faz girar o universo, eternamente inebriado pela beleza e perfeição.

Sou a névoa da manhã e a brisa da tarde.
Sou o vento na copa das árvores e as ondas contra o penhasco.
Sou todas as ordens de seres, e galáxias girantes,
a inteligência imutável, o ímpeto e a deserção.
Sou o que é e o que não é.
Tu, que conheces Jalaludin.
Tu, o Um em tudo,
Diz quem sou.
Diz: eu sou
Tu.


Fonte:
http://www.imagomundi.com.br/espiritualidade/rumi_2.pdf

Ditados Populares do Brasil (Letra B e C)

B

BANDIDO bom é bandido morto.
BARCO perdido, bem carregado.
BESTA é coco, que dá leite sem ter peito.
BESTA é quem vela acendeu pra defunto que não é     seu.
BOCA que não merece beijo, pimenta nela.
BOM no bom, todo mundo é.
BONS olhos te vejam.
BATER por trás é covardia.
BATIDA… só de limão.
BEBEU, bateu, morreu.
BEBER é uma arte, seja um artista.
BEIJO de menina contém vitamina.
BELEZA é isca, casamento é anzol.
BATA, mas não entre.
BALANÇA mas não cai.
BOTAR a mão no fogo.
BOTAR água na fervura.
BOTAR o preto no branco.

C
CABELO ruim é igual a bandido… Ou está preso, ou está armado.
COM os poderes da Virgem vou e volto.
CALMA, bicho, tem 22 na minha frente.
CALMA, pessoal, que devagar também é pressa.
CARINHO de mulher feia é dentada.
CARONA só de saia curta.
CASAMENTO é como pneu, quando enche estoura.
CIÚME eu teria se amor eu tivesse.
COM DEUS no meu caminho eu chego.
COM quatro rodas rodando ganho a vida viajando.
COMO é difícil se livrar de uma mulher fácil.
CONFIANÇA não se dá nem se empresta, conquista-se.
CORAÇÃO alheio é terra em que ninguém anda.
CORAÇÃO e motor sem faísca não pega.
CORRENDO, só quem ganhou dinheiro foi Ayrton Senna.
CORRO menos para te ver mais.
CRENDO EM DEUS, o feliz não abusa e o infeliz tem esperança.
CUIDADO, bater por trás é covardia.
CUIDADO, Fominha, já tem viúva demais.
CACHORRO mordido por cobra de lingüiça tem medo.
CADA MACACO no seu galho.
CADA TERRA com seu uso, cada roca com seu fuso.
CADA UM com a sua certeza.
CADA UM por si  e Deus por todos.
CADA UM sabe onde o calo lhe aperta.
CAIR no “conto do vigário”.
CAIU a sopa no mel.
CAIU na rede é peixe.
CÃO que ladra não morde.
CARANGUEJO não criou pescoço pra não ser enforcado.
CASA onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão.
CASAMENTO e mortalha, no céu se talha.
CATAR macacos.
CESTEIRO que faz um cesto faz um cento.
CHÁ, sopa e mulher, só quente.
CHORAR de barriga cheia.
CHOVER no molhado.
COBRA que não anda não engole sapo.
COM quem casei minha filha!
COM QUEM te não faz mal, procede por igual.
COMER como galo e cantar como pinto.
COMER e coçar é só começar.
COMER o pão que o diabo amassou.
COMO barata, morde e sopra.
CONSELHO se fosse bom era vendido.
CONVERSAR miolo de pote.
COZINHAR em fogo brando.
COZINHEIROS demais, caldo estragado.
CRIE FAMA, e deita-te na cama.
CUMPRIMENTAR com o chapéu alheio.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XIV)

Primeiro Fausto
Quarto Tema
O Temor da Morte


I

Que a morte me desmembre em outro, e eu fique
Ou o nada do nada ou o de tudo
E acabo enfim esta consciência oca
Que de existir me resta.
Sinto um tropel esfuziante e quente
De propósitos-sombras, e de impulsos
Transbordando do cálix da consciência
Para cima da vida...

II

Só um sentimento
De desejar eterna quietação,
Ambição vaga de fechar os olhos
E vaga esp'rança de não mais abri-los.
Ânsia cansada de não mais viver;
Meu cérebro esvaído não lamenta
Nem sabe lamentar. Tumultuárias
Idéias mistas do meu ser antigo
E deste, surgem e desaparecem
Sem deixar rastos à compreensão.
Já deslumbradas, vãs, incoerentes,
Amargas, [vagas] desorganizações
Que nem deixam sofrer. Vem pois, oh Morte!
Sinto-te os passos! Sinto-te! O teu seio
Deve ser suave e ouvir teu coração
Como uma melodia estranha e vaga
Que enleva até ao sono e passa o sono.
Nada. Já nada [passa] — nada, nada...
Vai-te, Vida!

III

Ah, o horror de morrer!
E encontrar o mistério frente a frente
Sem poder evitá-lo, sem poder...

IV

Gela-me a idéia de que a morte seja
O encontrar o mistério face a face
E conhecê-lo. Por mais mal que seja
A vida e o mistério de a viver
E a ignorância em que a alma vive a vida,
Pior me [relampeja] pela alma
A idéia de que enfim tudo será
Sabido e claro...
Pudesse eu ter por certo que na morte
Me acabaria, me faria nada,
E eu avançara para a morte, pávido
Mas firme do seu nada.

V

Gela-me apenas, muda,
A presença da morte que triplica
O sentimento do mistério em mim.

VI

Mistério, vai-te, esmagas-me! Ah, partir
Esta cabeça contra aquele muro
E tombar morto. Mas a morte, a morte,
Ali, como a temo! Para onde fugir?
Na vida nem na morte tenho abrigo.
Maldita seja... Quem? Quem faz o mal,
Este que sinto! Ah, mas já [nem] posso
Amaldiçoar...

VII

Não é o horror à morte, porque raie
Nela o mistério em mim, nem venha nela
Ou o acabar-me ou o continuar-me
Não. Não é minha alma que os sineiros
Rebatem medos pelo que hei de ser.
É a minha carne que em minha alma grita
Horror à morte, carnalmente o grita,
Grita-o sem consciência e sem propósito,
Grita-o sem outro medo do que o medo.
Um pavor corporado, um pavor frio
Como uma névoa, um pavor de todo eu
Subindo à tona intelectual de mim.

VIII

O animal teme a morte porque vive,
O homem também, e porque a desconhece;
Só a mim é dado com horror
Temê-la, por lhe conhecer a inteira
Extensão e mistério, por medir
O [infinito] seu de escuridão.
Dor que transcende o verbo e o sentimento
Criando um sentimento para si
Do qual o Horror é apenas a aparência
Pensável e sensível do exterior.
Uns têm — e é sofrer — o duvidar:
Há Deus ou não há Deus? Há alma ou não?
Eu não duvido, ignoro. E se o horror
De duvidar é grande, o de ignorar
Não tem nome nem entre os pensamentos.

IX

Medo da morte, não; horror da morte.
Horror por ela ser, pelo que é
E pelo inevitável.

X

Ao condenado
Inda no seu horror lhe luz ao menos
Uma sombra desesperada d'esperança;
Inda o horror que espera não é aquele
Horror da morte — não tem o intenso
Arrastar da inevitabilidade
Que a morte tem. A mim nem esperança
Nem suspeita de sombra de esperança
Ocorre, mas o horror completo e negro.
Isso que lhe aparece qual resgate
É o que eu temo!

XI

Ah, não me ofendas com palavras vãs
O horror do pensamento. Ninguém
Como eu teve este horror. Nem poderá
Nas veias e na alma do seu sangue
Tê-lo tão íntimo [...]
Tão feito um comigo.
As figuras do sonho não conhecem
O sonho [...] de que são figuras,
Porque o mundo não só é [já] sonhado
Mas é dentro dum sonho um [sonho] real,
Em que sonhados são os sonhadores
Também.
Não poder apagar esta tortura
Não poder despegar-me deste Ser;
Não poder esquecer-me desta vida ...

XII

Só uma cousa me apavora
A esta hora, a toda a hora:
É que verei a morte frente a frente
Inevitavelmente.
Ah, este horror como poder dizer!
Não lhe poder fugir. Não podê-lo esquecer.
E nessa hora em que eu e a Morte
Nos encontrarmos
O que verei? O que saberei?
Horror! A vida é má e é má a morte
Mas quisera viver eternamente
Sem saber nunca [...] isso que a morte traz [...]
Que o tempo cesse!
Que pare e fique sempre este momento!
Que eu nunca me aproxime desse
Horror que mata o pensamento!
Envolvei-me, fechai-me dentro em vós
E que eu não morra nunca.

Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 17. Louva-a-Deus

Tivemos hoje, à ida, um inesperado companheiro de viagem. Não sei quando nem como se aboletou no carro; só foi notado ao levantar o vôo do chapéu de um cavalheiro velho para ir pousar no seio de uma senhora gorda, copiando a abelha da pequena ode de Anacreonte. A senhora gorda enxotou-o, num gesto de susto muito gracioso, como convinha ao sexo. O bicharoco, executando um rápido vôo plané, foi aterrar no ombro de um rapaz elegante. Este se apresentava para lhe desfechar um tiro com o dedo médio armado em aríete, quando ele se passou para as costas de um homem distraído, onde se deixou e o deixaram ficar.

Uma vaga de hilaridade desencadeou-se no bonde ao toque das asas daquele forasteiro. Todos lhe acompanhavam as evoluções com sorrisos. E alguns manifestavam na cara uma curiosidade lorpa, como se estivessem diante de um invento completamente novo. Porque essa hilaridade? Problema complicado e escuro. Lembro-me de Bergson, mas não vejo como aplicar ao caso a sua teoria. Até nova ordem, penso que o riso proveio apenas de que o bonde não é veículo para passageiros dessa classe; de que o lugar habitual onde imaginamos o louva-a-deus não é o bonde, não as ruas ladeadas de prédios, calçadas de pedras, atravancadas de carruagem e caminhões, riscadas de fios de metal e pontas de cimento, -e de que os passageiros sentiam, ou melhor, não sentiam, mas tinham necessidade de deixar ver uns aos outros a impressão de desconcerto ou desconveniência que o transviado lhes produzia.

De fato, a mecânica do riso assenta no irreprimível instinto de comunicação próprio do homem. Como o pranto, o riso é uma forma de linguagem, em grande parte inconsciente, destinada a comunicar o incomunicável, a exprimir o inexprimível, o que não se pode, não se sabe, não se quer ou não se pensa exprimir por palavras ou por gestos que lhes eqüivalham. (Se é certo que rimos e choramos a sós, também é certo que falamos conosco mesmos -e todo pensamento é diálogo interior -sem que por isso possa negar-se o caráter eminentemente, social da linguagem articulada, cujas origens supõem fatalmente troca, relação entre indivíduos, fixação coletiva de sinais sonoros). A mímica do pranto e do riso nasceu provavelmente da necessidade de se solidarizarem e coligarem os ânimos, na horda primeva diante do perigo, da contrariedade ou do benefício comum que iam encontrando pela frente. Seria um elemento de coesão sublimável. Uma circulação rápida de psiquismo coletivo. Com o tempo, isso se teria refletido e entranhado no indivíduo, até assumir uma sorte de vida inferior, independente. Mas a inconsciência do seu mecanismo interindividual aí está para lhe atestar as origens gregárias. Somos ovelhas que se vão apenas destacando do rebanho por ligeiras diferenças de pêlo, de dimensões ou de andadura; mas a alma da ovelha pertence mais ao rebanho do que a ela própria.

E se tudo isto estiver errado? Não importa. Para um simples passageiro de bonde, as idéias são como os bilhetes de loterias: é preciso jogar em muitas, para ter probabilidade de acertar em alguma. E ainda o melhor é não acertar. Criar fama de rico é uma das mais graves maçadas que possam cair sobre quem não necessite de tanto numerário. Responsabilidade social muito pesada. Admiradores. Compromissos. Facadas, amabilidades, invejas, intrigas, amofinações... Que bom travesseiro, a pobreza!

A mim, o que me fez sorrir diante do louva-a-deus foi o riso dos outros, tão saudavelmente natural e estúpido. E foi também o próprio louva-a-deus, natural e bobo como esse riso.

O louva-a-deus é talvez um simples broto que de repente se animou, mexeu as suas folhazinhas tenras mal transformadas em asas, saltou, olhou o mundo em torno com os dois olhitos esbugalhados que se lhe acabavam de pôr -e esqueceu-se do papel que vinha representar. Todo trangalhadanças e todo indeciso, na sua irrepreensível casaquinha verde, é como um mascarado tanto que não tem coragem de ir ao baile nem sabe se há de voltar para casa, e fica a estatelar-se macambúzio pelas esquinas.

Desconfio agora que o louva-a-deus talvez fosse um broche que um artista primitivo, das cavernas ou das palafitas, modelasse,-no barro verdengo de algum açude, dando-lhe, por inabilidade e por fantasia, uma feição de monstro quimérico e grotesco. Um dia, a senhora Natureza, num momento de nervos, confundindo-o com os seus modelos infelizes e inacabáveis ter-lhe-ia comunicado o sopro da vida, lançando-o fora; "Enfim! sume-te, diabo!"

Outra hipótese. Esse e, com esse, muitos bicharocos parecem ter sido produzidos pela artífice quando ela ainda não podia desprender a imaginação dos liames do concreto. A minhoca teria sido tirada de uma raiz de tubérculo. A serpente, de uma haste de foraminífera. O besouro foi talvez copiado de um caroço de mamona. O elefante originar-se-ia de uma pedra viajada, do período glaciário, quer por acaso se tivesse vindo suster em cima de outras pedras menores e espaçadas. O lagarto, de um estilhaço de pau nodoso rachado pelo raio. Os peixes não teriam vindo da sugestão de um cardume de folhas polpudas caídas de grossas plantas aquáticas? E o morcego? O morcego foi de certo imitado de um pequeno guarda-chuva esfrangalhado pelo vento. (Contudo, não estou seguro da existência pré-histórica do guarda-chuva).

Só depois, muito depois, a Artista se libertou das formas anteriores para as inventar novas e mais perfeitas - o galo, esse objeto de luxo, o cisne, esse sonho de paz e perfeição, o gato, essa pequena mistura de inocência e de malignidade, a mulher... Ai, a mulher! complexa obra de fantasia terna, cruel e humorística: cisne, galinhola e gata. Rufina, meu amor, eu adivinho que tu és isso tudo!

Tive também um acesso de ternura pelo coitado do meu louva-a-deus, perdido entre paralelepípedos e almas, na cidade poeirenta e dura, longe do fluido verdor fresco das moitas e dos aguaçais. E lembrei-me do meu tempo de menino, lá muito longe (muito longe, muito longe, num outro mundo que já nem sei se existe!), onde o louva-a-deus se conhecia por cavalinho de Nosso Senhor e onde me divertia com outros pequenos a caçá-lo, para o ver fazer a sua oração de mãos postas e para lhe amarrar um cordelinho a uma das patas traseiras.

Vi os agros lavrados, grandes remendos postos ao manto das lombas, com estrias roxas de terra e bordados verdes de planta nova. Vi a vegetação mole e tufada dos grotões por onde a água corria e ofegava, como rapariga surpreendida nua. Vi o empastamento violáceo-azul fumaça dos morros distantes. Vi o risco sangrento do caminho velho através da solidão virgiliana dos pastios. Senti o cheiro salubre das macegas. Ouvi ranger a velha porteira pesada e pensa, ao pé do valo esboroado, entupido de gravatás, à sombra do pau-d'alho fechado e baixo como uma cabana triste. Ouvi ecos errantes de vozes grossas a chamarem pelo gado, de cantigas de lavadeiras no córrego, do jorro da bica a referver no esqueleto negro da roda de água. E havia no meio de tudo isso, ainda mais distante, mais real e mais irreal, mais vivo e mais sonhado, um toque fremente e forte de buzina de caça, lá pelas barrocas e pelos cerrados desertos, um toque ululante; ansioso, resoluto, que estraçalhava o silêncio com ímpetos heróicos e melancólicos, de desafio e de saudade.

Transpassou-me a alma hereditária de lavrador desenraizado um sentimento agudo de solidão e de incomunicabilidade, e fiquei a olhar para o louva-a-deus na ânsia com que alguém, perdido em terra estrangeira, se poria a amar de longe um compatriota com quem houvesse topado por acaso. (Assim as nossas ternuras vêm sempre acabar em nós mesmos. Aí, senhor duque de la Rochefoucauld!)

Viajava a meu lado um moço atochado de conhecimentos exatos. Disse-me, com certa indignação, que o louva-a-deus, mante réligieuse, é um dos seres mais sinistros da criação viva: a fêmea tem o indelicado costume de devorar o incauto esposo logo no festim de bodas (ao contrário portanto de outras que comem os seus aos bocadinhos, a vida inteira).

Eu já sabia disso pelos Souvenirs do Fabre; mas o moço tinha prazer em me instruir, e eu não lhe quis aguar essa satisfação não de todo inocente, mas tolerável. Não lha tolerei por generosidade, mas porque não queria jogar com ele a cena dos dois pedantes que se travam de sabenças.

Tenho pavor a essa espécie de gente, (aliás estimável, posto que daninha) a essa espécie de gente que vive a verter sabidelas decoradas por todas as juntas, como pipotes de melado em que não se pode pôr o dedo sem sentir o pegajoso das escorrências. São sucursais vivas da tipografia. São jornais parlantes, cheios de reportagens, de ciência feita, mas sem artigos de fundo e sem rodapés literários. A ciência, para eles, é o refugium, desde que se reconheceram anêmicos de bom senso, de imaginação, de sensibilidade e privados dessa divina capacidade de simpatia cósmica, que faz as almas verdad.... Mas não vale a pena repetir Nietzsche.

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte VI – A Peixada

O Satanás acompanhou o príncipe a Santos na madrugada do dia seguinte.

Naquela noite, em que a tragédia da rua do Conde se passara, o Satanás saíra de casa da filha, como um louco. Vagara sem destino até o amanhecer, apertando a cabeça nas mãos, sem compreender ainda o que se havia passado.

E no dia seguinte, a bordo, d. Pedro, que o forçara a partir consigo, notou-lhe a fisionomia alterada: o Satanás queixou-se de estar doente e fechou-se a sete chaves no mais absoluto silêncio a respeito dos sucessos da véspera. A notícia dos dous assassinatos espalhara-se rapidamente pela cidade: tinham sido encontrados os cadáveres de Paulo de Andrade e de Emerenciana, e a polícia pôs-se logo em campo para esclarecer o negócio. De Branca, porém, não havia a menor notícia: desaparecera.

Quando o príncipe partiu para Santos, os horizontes políticos do Brasil toldavam-se, anunciando a tempestade iminente. D. Pedro via-se reduzido a simples governador do Brasil e recebera já a ordem de retirar-se para a Europa. O povo de São Paulo mandara-lhe a célebre representação de oito mil pessoas, pedindo-lhe que ficasse.

No ouvido do príncipe regente soavam ainda as últimas palavras de seu pai, ao embarcar para Lisboa: Pedro, põe a coroa sobre a tua cabeça...

O seu nobre desejo de ser o constituidor de um novo povo era secundado ainda pelos conselhos dos seus partidários, que lhe inflamavam cada vez mais o entusiasmo e a ambição.

A Sociedade Tenebrosa do Apostolado, que então funcionava no quartel da Guarda Velha e da qual era o príncipe o Archonte Rei, incitara-o a precipitar os acontecimentos. Demais, as últimas notícias de Lisboa eram as mais inquietadoras possíveis: os deputados brasileiros, insultados nas cortes, tinham reagido escandalosamente com uma nobre energia: perseguidos, tinham sido forçados a embarcar para Falmouth e daí~ara o Brasil.

De modo que o príncipe não podia mais hesitar.
Mas, em Santos, não foi a política que lhe preocupou o exaltado coração.

Lá mesmo, o Satanás teve de reassumir as funções de medianeiro fiel. Porque, cheio, durante o dia, de preocupações políticas, o príncipe passava as noites a correr a velha cidade, à cata de aventuras.

As ruas sujas de Santos, eternamente cobertas de lama, quer a chuva caísse, quer o sol abrasasse, impregnadas de um cheiro repugnante de maresia, não tiveram mais segredos para os dous. E Satanás descobriu uma rapariga deliciosa, que casara com um velho fidalgo português e que não hesitou em abrir o seio à honra dos beijos do jovem príncipe.

A primeira entrevista realizou-se na Barra, em casa de uma velha algarvia, conhecida na cidade pela perícia inexcedível com que preparava as peixadas suculentas para as funçanatas de então. E fui por uma bela noite de luar que O príncipe, acompanhado do Satanás, partiu para a Barra, onde o esperavam uma farta peixada de escabeche e um farto colo de mulher morena.

A casa abria as janelas para o mar, onde o luar entornava a sua prata líquida, naquela noite serena. Eram a perder de vista, desde a praia curva, de areias claríssimas, até o limite apartado do horizonte, águas e águas que tremiam ao luar, encrespadas e franjadas de espuma.

À porta d. Pedro parou. A sua alma ardente de ambicioso agradava aquele infinito sereno, aquela vastidão de águas calmas, ilimitadas como os seus sonhos de poder e de glória.

O Satanás, ao lado, olhava também o mar: e aquilo trazia-lhe à lembrança o infinito do seu desespero e a soledade da sua vida, sem filha, sem amigos, cão rafeiro de um fidalgo...

Mas d. Pedro foi o primeiro a arrancar-se das suas meditações:

- Entremos. Nunca se deve fazer esperar uma mulher.

- Nem uma peixada, acrescentou o escultor.

Entraram. Uma sala baixa, toda furada de janelas, por onde o luar entrava, cintilando. Ao centro, a mesa estava posta, aceiada, com a grande terrina de louça azul, descoberta, deixando ver o molho louro do escabeche, cujo aroma fazia a água crescer na boca.

Maria, ao ver entrar o príncipe, levantou-se do banco em que estava sentada, a uma das janelas, contemplando o luar. Era uma mulher opulenta, de amplas formas sensualmente arredondadas, olhos profundos e negros, circulados de olheiras roxas. No lábio superior, carnudo e vermelho, sombreava-se-lhe um buço delicioso.

O príncipe beijou-lhe a mão, fidalgamente. E, enlaçando-lhe a cintura, foi com ela para a janela. Daí a pouco, a sala encheu-se de um sussurro de vozes cochichadas nomezinhos ternos, risadinhas brejeiras, beijinhos marotos. O Satanás meditava a um canto, taciturno.

A velha Marta do Peixe entrou muito gorda, muito suada com dous seios formidáveis, trêmulos como dous grandes bolos de gelatina, trazendo os canjirões do Ribatejo.

Que viessem para a mesa, que viessem para a mesa! estava a cousa de empanturrar o bandulho e soluçar por mais! haviam de lamber os beiços.. Não! que para coser as anchovas tenrinhas não havia com'a ela!

Abancaram todos. E a Marta, de mangas arregaçadas, deixando ver dous braços que pareciam duas pernas, pôs-se a encher pratarrazes de peixe.

- Olhem que foi pescado ali assim p'lo meu home! E é quê ele foi feliz, o raio do dianho, que as pescarias têm andado nada boas, p'la Senhora da Boa Morte!

O príncipe interessou-se pelo homem da Marta.

- Então? rendia o negócio?

- Qual nada, senhor! É uma azáfama do tinhoso a sol e chuva, e nada de fazer p'r'ó pão! E inda é bom quando não se morre por lá, por essas aiaguas de Cristo! Inda tresantonte lá se ficou o Chico da Burra, mais a canoa e a rede... Agora é verdade que ninguém mandou o desinfeliz ir pescar por riba da catedral!

- Que catedral, mulher? interrogou o Satanás, curioso.

A Marta contou então a lenda, muito conhecida, naqueles tempos e ainda hoje, em Santos. Dizia-se que uma parte da cidade, construída pelos primeiros portugueses, fora submergida. Era nessa parte que fora edificada a primeira igreja de Santos: e tanto que, por noites assim, de luar, quem chegava à beira da praia, ouvia no seio das águas um barulho de sinos, dobrando a finados. E ai! do pescador atrevido que ousasse pescar naquele ponto!... vinham os padres à tona d'água e carregavam com ele para o fundo do mar.

- Crendices tolas! - disse d. Pedro.

Mas, por uma sucessão de idéias, aquela história supersticiosa da velha trouxera-lhe à memória as profecias da Zabanila. Sacudiu os ombros. E, aproximando a cadeira da cadeira de Maria, pôs-se a conversar com ela, em voz baixa. Depois levantaram-se, voltaram à janela.

A Marta do Peixe ia retirar-se discretamente da sala, frechando para a janela um olhar meloso e brejeiro de rufiona entendida. O príncipe falou:

- Olá! mulher! podes levar a luz!

O Satanás saiu, e foi à praia apreciar a noite. E a sala às escuras encheu-se de beijos.

A mesa ficara posta, com a terrina destampada. E talvez, naquela escuridão, a alma faminta de d. Bias andasse em comunicações espíritas com a alma cheirosa do peixe...

Havia meia hora que estavam sós os amantes, quando o Satanás falou da porta:

- Senhor!

- Que é? saiu das trevas da sala a voz do príncipe, enfadado.

- Cousa séria.

- Ora, deixa lá as cousas sérias para amanhã, homem!

- E o capitão das guardas que aí está.

- Que espere.

- Não pode esperar. É preciso que fale já com ele.

- Vai-te para o diabo e deixa-me em paz!

- Ouça, senhor...

- Arre, vai-te! já te disse...

- Perdão! não me vou. Acabam de chegar despachos assustadores de Lisboa.

O príncipe resolveu-se a desenlaçar-se dos braços da amante. Saiu. O capitão esperava-o. Depois de uma curta conferência, o príncipe veio despedir-se de Maria. Outra vez a sala se encheu de beijos. E o príncipe, elevando a voz, chamou pela Marta.

Ela veio logo, muito azafamada, arrastando as banhas pesadas. E ajoelhou-se, comovida, quando o seu hóspede lhe meteu na mão duas moedas de ouro.

Nessa mesma noite, o príncipe saiu de Santos, acompanhado por um regimento de cavalaria. E a madrugada despontava, banhando de ouro e fogo os píncaros de Cubatão, quando a comitiva começou a subir a serra, a caminho de S. Paulo.
–––––––-
continua