sábado, 17 de junho de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 26

 

Cecy Barbosa Campos (Vestígios)

É... Quase nada resta... Só algumas daquelas numerosas e frondosas árvores, que enfeitavam o Parque Halfeld, há muitos, muitos anos atrás...

Percorreu, com os olhos cansados, as alamedas que levavam ao caramanchão. Enxergou, com os olhos da mente, a água cristalina, pontilhada por peixinhos vermelhos, que iam e vinham em seu frescor.

Sem perceber a grande área central, curtida pelo sol causticante e desabrigada da vegetação que, anteriormente, a protegia, ouviu sons que vinham da PRB3, a estação de rádio da cidade, cujo prédio ficava bem no meio do Parque. Perdeu-se no mundo de sonhos, trazidos pelas histórias da Tia Violeta, programa favorito do menino que não era mais.

A sujeira do chão e o cheiro de urina, naquele momento, também lhe passaram despercebidos. Estava ali, porém longe no tempo. Voltara às suas brincadeiras de criança, às correrias com os amiguinhos, à caixa de areia sem perigo de contaminação pela defecação de gatos, cães e até mesmo de ratos.

Tampouco, notou a garota, quase-menina, que veio se encostando a ele de modo insinuante. Não fosse a catarata que lhe dificultava a leitura dos jornais, talvez, tivesse lido a grande manchete, na primeira página da Tribuna — "Prostituição infantil no Parque Halfeld" — e chegado à deprimente constatação.

De repente, baixou um cansaço... Um torpor, um peso no corpo e na alma, uma tristeza que lhe fechava os olhos para tentar voltar ao sonho e não enxergar a dura realidade. Não, aquele não era mais o Parque Halfeld. Sentou-se num dos bancos empoeirados que circundavam o parque e, cabisbaixo, deparou com seus próprios braços, enrugados, ressequidos, sem viço...

— É, pensou... Meus braços, as árvores... Casca ressecada, galhos retorcidos, marcados pelo tempo... Cicatrizes, cortes profundos que atingem o tronco e o coração... O que resta do Parque Halfeld? O que resta de mim?

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Enviado pela autora

Artur de Azevedo (Contos em versos) VAGABUNDO


O Mathias, coitado,
Vive sabe Deus como, que é casado
E duzentos mil mensais apenas ganha,
Pois lhe há sido tamanha
A ingratidão dos fados desumanos,
Que ele ainda hoje tem o parco vencimento
De quando começou, há muitos anos,
Numa repartição...

Caminho lento
Percorre o funcionário
Que se mostre à mesura refratário,
E, metido consigo
De toda a gente não se faça amigo,
Nem serviços alegue
E da sorte ao capricho apático se entregue.
Era assim o Mathias,
E, passavam-se dias
Semanas, meses, anos, sem que o mundo
Lhe ouvisse a menor queixa.

De Catumby no fundo,
Numa viela que a montanha fecha,
Reside o pobretão em companhia
Da cara esposa que, fazendo balas,
Do casal as despesas auxilia,
Porque, se assim não fora, ambos decerto
Se veriam em talas.

Seria aquela casa um lindo céu aberto
Se tivesse o casal um filho, um filho ao menos,
Sim, porque, não há dúvida, os pequenos
Espancam a tristeza
E tornam suportável a pobreza
No lar mais esquecido dos favores
Da eterna deusa cega e fugitiva
Que anda sobre uma roda e que nos faz senhores,
Andar a todos numa roda viva.

No entanto, em casa havia
Um velho cão que, a bem dizer, supria
De uma criança, a falta.
Era um grande peralta
Que, se a porta da rua achava aberta,
Ia logo se embora,
E eram dias e dias pela certa,
Que ficava lá fora,
E coisas tais fazia,
Que ao regressar, trazia
Vestígios eloquentes
De haver lutado a dentes,
Disputando, talvez, uma gentil cadela
Qual cavaleiro antigo, a lança heroica em riste,
Disputaria a sua dama bella.

O cão dessas façanhas vinha triste,
Cauda e orelhas caídas, receoso
De ser mal recebido (e era muito bem feito!);
Porém bastava um gesto carinhoso,
Um sorriso fagueiro,
Uma bala roubada ao tabuleiro,
Para vê-lo de novo alegre e satisfeito.

Há dez anos o cão aparecera um dia
Ali; ninguém sabia
De onde viera. Tinha fome o bicho,
E, como lhe a matassem
E lhe dessem um nicho
Onde nem sol nem chuva o incomodassem
Foi-se ficando o maganão tranquilo
Naquele doce asilo.

Deram-lhe o nome feio
De Vagabundo, e o mesmo nome, creio
(Digo-o em seu desabono)
Lhe havia dado o primitivo dono,
Porque, à primeira vez que foi assim chamado,
Correu logo apressado.

Jamais num cão fraldeiro
Esse nome assentou com tanta propriedade;
Vagabundo, melhor do que o melhor carteiro,
Conhecia a cidade
Do Rio de Janeiro.

Ultimamente, há dias, quando a nossa
Municipalidade
A guerra declarou de morte aos cães vadios,
Mathias e a mulher tiveram calafrios
Por causa da patibular carroça
Que o bairro percorria
Engaiolando os cães, para mata-los.
Incessantes abalos
No piedoso casal o carro produzia.
Que querem? Não havia
Dinheiro para o imposto
Que podia evitar-lhes o desgosto
De verem Vagabundo engaiolado...

Um dia
A carroça fatal passou de cães repleta,
E a mulher do Mathias inquieta,
Debalde procurou por Vagabundo:
Não estava em casa, andava a correr mundo
— Quem sabe se foi preso e vai ali? — murmura,
E, fazendo tão triste conjectura,
Viu a carroça... e Vagabundo dentro!

A mulher desespera!
Em minúcias não entro,
Que é difícil pintar-vos a sincera
Dor que dela se apossa
Ao ver o cão querido na carroça,
Que lembra uma carreta
No tempo da infeliz Maria Antonieta.

Mas, eis que o velho cão sai de baixo da mesa
Agitando a sorrir a cauda tesa,
Como se tudo houvera compreendido;
Parecendo dizer: — Cá estou, não tenha medo,
Eu me havia escondido
Apenas por brinquedo.

Não era Vagabundo, o cão engaiolado,
Porém outro com ele parecido,
Que o não ser cão de raça
Tem este inconveniente
De se não distinguir de qualquer cão que passa.

A senhora ficou muito contente,
Para outro susto não sofrer, coitada,
Foi buscar onde estava bem guardada
Uma velha pulseira,
Joia numero um, do tempo de solteira,
E empenha-la mandou no Monte do Socorro,
Para pagar o imposto do cachorro.
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Nota sobre o nome do autor:
Neste livro consta Artur (sem o h), em outros é Arthur. Ainda há uns que não possuem o de antes de Azevedo. Estou publicando sem o h, como está neste livro.


Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Artur de Azevedo. Contos em verso (contos cariocas). Publicado originalmente em 1909.
Português atualizado por J.Feldman

George Abrão (Uma viagem ao passado)

Em meus devaneios e reminiscências permiti-me estar em Jaguariaíva, na Praça Dona Izabel, no crepúsculo de um dia do mês de fevereiro de 1958, data do meu aniversário de oito anos.

De frente para a Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus da Pedra Fria, a vi, majestosa e imponente em sua simplicidade externa, com uma bela imagem de Cristo, colocada no cimo e na parte frontal do seu telhado, abençoando sua cidade.

Fui até ao adro, onde havia uma grande porta central, que se encontrava fechada, e duas portas menores nas laterais, todas em madeira de lei. Dirigi-me a do lado direito e adentrei o templo. Logo à minha frente, na parede, numa pia semi-circular em mármore havia água benta onde eu, molhando os três dedos centrais da mão direita, persignei-me e dirigi-me à nave central onde quedei-me para a fazer as minhas orações. Então, como num passe de mágica, tive a impressão de ouvir, vindo do espaço reservado ao coro, atrás de mim e no alto, os cantores a entoar um cântico de louvor à Virgem Maria.

Toda a igreja encontrava-se inundada pela luz emitida por dois belos lustres de cristal que pendiam do teto, um róseo e o outro branco e bem maior, situado logo mais à frente, mesclada com os reflexos do que ainda restava da luz do dia no coloridos dos vitrais. E uma sensação de encantamento e de cumplicidade Divina invadiu o meu ser naquele final de tarde.

Nas paredes laterais da bela igreja, entre as janelas, haviam quadros em alto relevo, iniciando-se da frente do lado esquerdo e terminando à frente do lado direito, que contavam a Via-Crucis de Jesus Cristo. E de cada lado, próximos às portas laterais, havia uma joia da marcenaria: os confessionários em madeira de cedro, toda trabalhada, mandados vir de Portugal quando do final da construção da igreja. Mais à frente e ao lado esquerdo, próximo a um dos altares secundários onde se viam nichos com belíssimas imagens de santos, ficava a pia batismal em mármore, com tampo de madeira, a mesma em que eu fora batizado.

Em frente à nave, e após dois degraus, fica o presbitério, da qual era separado por balaústres  de madeira pintados como se fossem de mármore travertino, com passagem central. Nesse espaço sagrado, reservado aos padres e à equipe de liturgia, ficava a credencia, que assim como o altar-mor e os dois altares secundários, era recoberta por alvas e belas toalhas caprichosamente bordadas por dona Pequena de Barros, que também por elas zelava. E coroando toda a beleza da igreja: o Altar-Mor, esculpido em madeira, também pintado como mármore, ladeado por belas imagens de anjos portando altas luminárias, tendo ao centro e em plano inferior o Sacrário, e no alto, dentro de um nicho envidraçado, a bela imagem do Senhor Bom Jesus da Pedra Fria coberto com uma capa carmim.

Após novas orações junto ao altar, dirigi-me à lateral direita do mesmo, onde, na sua parte inferior, havia uma placa em bronze indicando que naquele local jaziam os restos mortais de Dona Izabel Branco e Silva, doadora daquela igreja à municipalidade, bem como fundadora da cidade de Jaguariaíva.

Hoje, já com setenta e seis anos de idade, resido bem longe: em Maringá. Mas a saudade e a lembrança dos meus tempos de menino, quando morava próximo ao atual Santuário do Senhor Bom Jesus da Pedra Fria, me invadem docemente a cada dia.

Fonte:
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.
Enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (A Bela e a Fera)

Contos de Fadas e Fábulas, não são estórinhas escritas somente para crianças, pois as mensagens condensadas nesse tipo de literatura nos fazem refletir sobre assuntos, sombrios, tais como: inveja, falsos amores, ambição e aparências.

No conto a Bela e a Fera,  escrito pela francesa Gabrielle-Suzanne Barbot e publicado pela primeira vez em 1740, traz a temática da aparência. Um lindo e nobre príncipe que se achava superior às outras pessoas, negou abrigo a uma senhora maltrapilha e feia que lhe ofereceu uma rosa em troca de ajuda. A velha, sentindo–se humilhada transformou-se numa linda e jovem feiticeira. Ao vislumbrar a beleza da bruxa, o jovem pede perdão, mas o arrependimento é tardio: ela o transformou numa fera horrenda, a qual as pessoas teriam medo e repulsa.

O que a feiticeira fez foi exteriorizar o interior do rapaz, que na verdade, não era belo, pois seus sentimentos não tinham nobreza. Ele era vaidoso, egoísta e fútil.

Bela, a personagem que divide a protagonista do enredo, pede ao seu pai, que parte em viagem, que lhe traga uma rosa. Passando pelo castelo, seu pai apanha a rosa e é preso pela Fera. Ao descobrir a situação de seu paizinho, ela decide libertá-lo, ficando em seu lugar.

A Fera se apaixona por Bela e, com o passar do tempo, a própria Bela começa a perceber que a Fera podia ter um bom coração. Desfecho: eles se apaixonam e, ao descobrir o amor, a Fera transforma-se num lindo príncipe. Agora belo por dentro e por fora.

Esse conto nos convida a refletir sobre o “TER e o “SER”. Muitas pessoas não se dão conta de que há uma diferença enorme em ter e ser... Ter, se refere às coisas materiais, que podem, a qualquer momento, serem arrastados pelo vento. Ser, é algo muito mais fundamentado, se refere às coisas inegociáveis: saúde, amor, amizade, alegria, fé...

De nada vale ter dinheiro, imóveis, fazer viagens, quando não se aproveita ou valoriza as verdadeiras belezas da vida. A existência é tão grandiosa, que temos por obrigação, todas as manhãs, levantar, olhar para o céu e agradecer pela oportunidade de estarmos vivos e de vivermos num mundo cheio de belezas.

A beleza e a riqueza são coisas que nascem dentro da gente e não podem ser compradas ou comparadas às coisas perecíveis.

Todos nós somos um pouco Bela e um pouco Fera, mas é agindo como Bela que descobrimos onde se escondem os tesouros do mundo.  

Fonte:
Enviado pela autora

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Izo Goldman (Buquê de Trovas) – 3 –

 

Lima Barreto (O Cedro de Teresópolis)

O eminente poeta Alberto de Oliveira, segundo informações dos jornais, está empenhado em impedir que um proprietário ganancioso derrube um cedro venerável que lhe cresce nos terrenos.

A árvore é remanescente de antigas florestas que outrora existiram para aquelas bandas e viu crescer Teresópolis já adulto.

Não conheço essa espécie de árvore, mas deve ser bela porque Alberto de Oliveira se interessa pela sua conservação.

Homem de cidade, tendo viajado unicamente de cidade para cidade, nunca me foi dado ver essas essências florestais que todos que as contemplam, se enchem de admiração e emoção superior diante dessas maravilhas naturais.

O gesto de Alberto de Oliveira é sem dúvida louvável e não há homem de mediano gosto que não o aplauda do fundo d'alma. Desejoso de conservar a relíquia florestal o grande poeta propôs comprar, ao dono, as terras onde ela crescia.

Tenho para mim que, à vista da quantia exigida por este, ela só poderá ser subscrita por gente rica, em cuja bolsa umas poucas de centenas de mil réis não façam falta. Aí é que me parece que o carro pega. Não é que tenha dúvidas sobre a generosidade da nossa gente rica; o meu ceticismo não vem daí. A minha dúvida vem do seu mau gosto, do seu desinteresse pela natureza.

Excessivamente urbana, a nossa gente abastada não povoa os arredores do Rio de Janeiro de vivendas de campo com pomares, jardins, que os figurem graciosos como a linda paisagem da maioria deles está pedindo. Os nossos arrabaldes e subúrbios são uma desolação. As casas de gente abastada têm, quando muito, um jardinzinho liliputiano de polegada e meia; e as da gente pobre não têm coisa alguma.

Antigamente, pelas vistas que ainda se encontram, parece que não era assim. Os ricos gostavam de possuir vastas chácaras, povoadas de laranjeiras, de mangueiras soberbas, de jaqueiras, dessa esquisita fruta-pão que não vejo mais e não sei há quantos anos não a como assada e untada de manteiga.

Não eram só essas árvores que a enchiam, mas muitas outras de frutas adorno, como as palmeiras soberbas, tudo isso envolvido por bambuais sombrios e sussurrantes à brisa. Onde estão os jasmineiros das cercas? Onde estão aqueles extensos tapumes de maricás que se tornam de algodão que mais é neve, em pleno estio?

Os subúrbios e arredores do Rio guardam dessas belas coisas roceiras, destroços como recordações.

A rua Barão do Bom Retiro que vem do Engenho Novo à Vila Isabel dá a quem por ela passa uma amostra disso. São restos de bambuais, de jasmineiros que se enlaçavam pelas cercas em fora; são mangueiras isoladas, tristonhas, saudosas das companheiras de alameda que morreram ou foram mortas.

Não se diga que tudo isso desapareceu para dar lugar a habitações; não, não é verdade. Há trechos e trechos grandes de terras abandonadas, onde os nossos olhos contemplam esses vestígios das velhas chácaras da gente importante de antanho que tinha esse amor fidalgo pela casa e que deve ser amor e religião para todos.

Que os pobres não possam exercer esse culto; que os médios não o possam também, vá lá! e compreende-se; mas os ricos? Qual o motivo?

Eles não amam a natureza; não têm, por lhes faltar irremediavelmente o gosto por ela, a iniciativa para escolher belos sítios, onde erguerem as suas custosas residências, e eles não faltam no Rio.

Atulham-se em dois ou três arrabaldes que já foram lindos, não pelas edificações, e não só pelas suas disposições naturais, mas também, e muito, pelas grandes chácaras que neles havia. Botafogo está neste caso. Laranjeiras, Tijuca e Gávea também.

Aos famosos melhoramentos que têm sido levados a cabo nestes últimos anos, com raras exceções, tem presidido o maior contra-senso. Os areais de Copacabana, Leme, Vidigal, etc., é que têm merecido os carinhos dos reformadores apressados.

Não se compreende que uma cidade se vá estender sobre terras combustas e estéreis e ainda por cima açoitadas pelos ventos e perseguidas as suas vias públicas pelas fúrias do mar alto.

A continuar assim, o Rio de Janeiro irá por Sepetiba, Angra dos Reis, Ubatuba, Santos, Paranaguá, sempre procurando os areais e os lugares onde o mar se possa desencadear em ressacas mais fortes.

É preciso não cessar em profligar
(destruir) tal erro; tanto mais que não há erro, o que há é especulação, jogo de terrenos, que. são comprados a baixo preço e os seus proprietários procuram valorizá-los num ápice de tempo, encaminhando para eles os melhoramentos municipais.

Todo o Rio de Janeiro paga impostos, para que tal absurdo seja posto em prática; e os panurgianos
(pessoas frívolas) ricos vão docilmente satisfazendo a cupidez de matreiros sujeitos para quem a beleza, a saúde dos homens, os interesses de uma população nada valem. É por isso que disse não me fiar muito que Alberto de Oliveira alcançasse realizar o seu desideratum.

Os ricos se afastam dos encantos e perspectivas dos sítios em que se possam casar o mais possível a arte e a natureza. Perderam a individualidade da escolha; não associam à natureza as suas emoções nem. esta lhes provoca meditações.

O estado dos arredores do Rio, abandonados, enfeitados com construções contraindicadas, cercados de terrenos baldios onde ainda crescem teimosamente algumas grandes árvores das casas de campo de antanho, faz desconfiar que os nababos de Teresópolis pouco se incomodam com o cedro que o turco quer derrubar, para fazer caixas e caixões que guardem quinquilharias e bugigangas.

Daí pode ser que não; e eu desejaria muito que tal acontecesse, pois deve ser um soberbo espetáculo contemplar a magnífica árvore, cantando e afirmando pelos tempos afora, a vitória que obteve tão-somente pela força de sua beleza e majestade.

Fonte:
Lima Barreto. Crônicas. Publicado originalmente em Bagatelas, 27 fevereiro 1920.
Disponível em Domínio Público

Marli Terezinha Andrucho Boldori (Poemas Avulsos)

ALÉM…


...toque meus dedos
Leve-me daqui,
O céu é apenas o nosso começo.
Alcemos o voo,
Vamos na busca do que nos faz bem.
Nada de impunidades ou castigos,
Apenas a distração final: seus olhos.
Talvez eu siga este caminho, pois sinto-me bem com você,
E, quando o final se aproximar, não terei medo,
Pois você estará comigo, apenas o começo,
Seus dedos entrelaçados aos meus,
Seus braços abertos,
O vento nos leva por entre as nuvens,
As estrelas brilham,
O meu melhor ainda está por vir,
As correntes foram quebradas.
Não estou mais cativa àquela cama, você me resgatou,
E me trouxe ao paraíso.
Sinto-me livre, e quero recomeçar.
Quero retomar a minha vida,
Deixada há anos,
Não há mais regras, não há mais erros nem torturas.
A vida apenas recomeçou de onde a deixei para aprender.
E agora estou de volta, meu lar, minha vida retomada.
Agora vivo em paz!
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CURITIBA

Cidade das três estações
Pela manhã, me agasalho
Casaco, guarda-chuva e cachecol
Onde coloco isso, pois agora
Surgiu o sol.
Arara azul escondeu o fruto da araucária
Em tantos lugares que perdeu a noção
E hoje Curitiba é conhecida pela altivez do pinheiro
Cidade Bendita com sua Boca Maldita
É bendita com seus bosques,
Parques  gloriosos
Repleta de cultura
Poesia, prosa e pintura
Dentro da casa das letras,
Da grandiosa Universidade
Aos cafés culturais
Do famoso sotaque do “leite quente”,
De tudo que se fala
Largo da Ordem, feirinhas coloridas
Na Curitiba atrevida!
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JARDIM DIVINO

Vislumbrei através de um portal dourado
Um jardim quase etéreo
A bruma dificultava minha visão,
Era diferente, porém sublime
Eminente, repleto de telas pintadas
Pinturas? Sim!
Eram só rosas
Pareciam celestiais,
Pincéis suspensos no céu
Caíam das nuvens
E cada um
Deslizava pingando
Suas cores
Pintando assim
As pétalas,
As folhas, o caule, espinhos
Indecifráveis,
Tons enriquecidos pelo tempo
Percebi na pintura
Um ramalhete de rosas
Multicores
Em um galho apenas
O Jardineiro Paterno
Com a tela das rosas
Deu-nos seu amor eterno.
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MULHER

A cabeça dói, a lata d’água
Dança sem equilíbrio
O cansaço lhe vence, mas precisa caminhar
Nem sabe aonde chegar
Faz o trajeto todo o dia,
O corpo reclama por cuidados
É hora de parir
Seus outros filhos a esperam
Precisa ter forças para agir
Marido foi em busca de vida melhor
Melhor para ele, pois se esqueceu de voltar
Sente-se apenas mulher, mas sem forças
Ainda há tanto para fazer, e pensa
O que pôr no prato para os filhos
A amiga veio ajudá-la
Alguém lhe pergunta: Por quê?
Porque sou mulher
Apenas Mulher!
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QUEM SOU

Sou um santuário, mas
No meu âmago a ruína cresce
Escondo dos olhos
Para que não saibam
Quem vive dentro de mim.
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VOCÊ

Eu vivo em você
respiro você,
durmo e sonho você
Sinto sua falta
Procuro por você.

Porque sou você,
minha mãe!
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Marli Terezinha Andrucho Boldori, nasceu em União da Vitória/PR. Filha de Hilário Andrucho e Catarina Mateus Andrucho. Graduou-se em Letras/Inglês e pós graduou-se em Produção de Textos, ambos pela FAFI/UNESPAR, em União da Vitória.

Acadêmica da ALVI (Academia de Letras do Vale do Iguaçu de União da Vitória); da AVIPAF (Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia).

Colunista do Jornal Caiçara, de União da Vitória/PR.

PARTICIPAÇÕES

– Livro de Antologia- Coletânea-Faces não Reveladas, organização de Sandra Mara Ferrari Radich, 2015;
– Antologia de Poesia e Prosa V Prêmio Literário do escritor Marcelo de Oliveira Souza, 2017.
– Em vários concursos de poesias, contos, crônicas, publicações em jornais, nacionais e internacionais.
– 28º Festival Poético – Cornélio Procópio, novembro 2012.
– Fez parte da comissão julgadora do 10º Concurso Internacional Poetizar o Mundo, em Curitiba/PR, abril 2015.
– Revista Carlos Zemek - Arte e Cultura, na homenagem “à palavra” na página da poesia.

Lançou em 2015 o livro,” Pensando a Vida”.

Seu conto “O Presente de Natal” foi publicado Jornal Indústria e Comércio de Curitiba, em 2012.

Seus poemas fizeram parte de exposições de Arte e Poesia no Brasil e na Argentina:
– Exposição de Artes Plásticas e Literatura – Religiões do Mundo, Curadoria de Carlos Zemek. Estação Business School, Curitiba, 2013;
– Exposição de Artes Plásticas e Literatura – Mês da Mulher. Estação Business School, Curitiba, 2013;
– Muestra de Arte y Poesia Sensaciones na cidade de Buenos Aires,Argentina, em 2015.

Possui o blog Naco de Prosa (https://nacodeprosa.blogspot.com.br)


Fonte:
Poemas e biografia enviadas por Isabel Furini.

Irmãos Grimm (As três plumas)


Era uma vez um rei que tinha três filhos, dois deles eram inteligentes e sábios, mas o terceiro não gostava de falar muito, e era muito simples, e por isso o chamavam de João Bocó. O rei estava ficando velho e fraco, e já achava que ia morrer, e não sabia quais dos seus filhos deveria herdar o reino quando isso acontecesse. Então, ele disse para os seus filhos: 
 
“— Saiam, e aquele que me trouxer o tapete mais lindo será o rei quando eu morrer.”

E para que não houvesse briga entre eles, ele os conduziu para fora do palácio, soprou três plumas no ar e disse: — “Vocês deverão seguir estas plumas!” Uma pluma voou para o oriente, a outra para o ocidente, mas a terceira subiu para o alto, mas não voou para muito longe e logo caiu no chão.

E então, um irmão foi para a direita, o outro para a esquerda, e zombaram do João Bocó, o qual foi obrigado a ficar ali onde a terceira pluma havia caído. Ele se sentou e ficou triste, então, de repente, ele percebeu que havia um pequeno alçapão perto de onde a pluma havia caído. Ele levantou o alçapão, encontrou alguns degraus, e desceu a escada, que dava para uma outra porta, bateu nela, e ouviu alguém dentro chamando:

— “Criatura pequena e verde, pulando aqui e ali, entre pela porta e você verá quem está lá.”

A porta se abriu e ele viu ali parado um sapo grande e gordo, e em volta do sapo uma multidão de pequenos sapinhos. O sapo gordo perguntou o que ele queria? Ele respondeu: — “Eu preciso conseguir o tapete mais belo e mais fino do mundo.”

Então, ele chamou um sapinho e disse para ele:

— “Criatura pequena e verde, pulando aqui e ali, pule rapidamente e me traga a Caixa Grande até aqui.”

O filhote de sapo trouxe a caixa, e o sapo gordo a abriu, e tirou da caixa um tapete que era tão lindo e maravilhoso e que fora tecido com tantos detalhes, que não havia na Terra ninguém que pudesse ter produzido uma peça tão rara.

Então, ele agradeceu ao sapo, e fez o caminho de volta. Seus dois outros irmãos, todavia, achavam que o seu irmão caçula fosse tão tolo que ele não encontraria nenhum tapete e não traria nada para o rei. — “Porque nós iríamos nos preocupar em procurar um?” disseram eles, e pegaram alguns panos sem acabamento das primeiras pastoras de porcos que eles encontraram, e levaram para o rei.

Ao mesmo tempo, João Bocó havia também voltado, e trouxe seu lindo tapete, e quando o rei viu o que ele trouxe, ele ficou admirado, e disse: “Justiça seja feita, o reino deve ficar com o caçula.”

Mas os dois outros irmãos não deram sossego para o rei, e disseram que era impossível que o João Bocó, que não passava de um pateta, fosse o rei, e insistiram para que houvesse um novo acordo entre eles.

Então, o pai disse: — “Aquele que me trouxer o anel mais valioso herdará o trono,” e conduziu os três irmãos para fora, e soprou para o ar três plumas, que eles deveriam seguir. As plumas dos filhos mais velhos novamente foram para o ocidente e para o oriente, e a pluma de João Bocó voou diretamente para o alto e caiu perto da porta a poucos passo dali.

Ele se se dirigiu novamente até onde o sapo gordo ficava, e disse ao sapo que ele precisava conseguir o anel mais valioso.

O sapo, imediatamente, mandou que uma grande caixa fosse trazida até ali e tirou da caixa um belíssimo anel, o qual reluzia de tantas joias, e era tão lindo que nenhum ourives da Terra seria capaz de fabricá-lo.

Os dois irmãos mais velhos riram de João Bocó por ele ter ido buscar um anel de outro. E não se deram ao trabalho, e arrancaram os pregos de um velho anel de argola e o levaram para o rei, mas quando João Bocó mostrou o seu anel de brilhantes todo dourado, o rei disse novamente:

— “O reino pertence a ele.”

Os dois irmãos mais velhos não paravam de atormentar o rei até que ele propôs uma terceira condição, e declarou que aquele que trouxesse a mulher mais linda para casa, ficaria com o reino. Novamente ele soprou três plumas para o alto, e elas voaram como antes.

Então, João Bocó, sem fazer nenhum alarde, desceu até a toca do sapo e disse: — “Eu preciso levar para casa a mulher mais formosa!”

— “Oh,” respondeu o sapo, “a mulher mais formosa! No momento, ela não está aqui, mas dentro em breve tu a terás.”

O sapo deu a ele um nabo amarelo totalmente oco por dentro, atrelado a seis camundongos. Então, João Bocó disse muito triste, “O que é que eu vou fazer com isso?”

O sapo respondeu: — “Coloque apenas um dos meus sapinhos dentro dessa carruagem.”

Então, ele pegou aleatoriamente um daqueles que estavam ali, e colocou dentro da carruagem amarela, mas, mal o sapinho se sentou na carruagem, e ele se transformou numa donzela maravilhosamente bela, e o nabo se transformou num cocheiro, e os seis camundongos em belíssimos cavalos. Então, ele a beijou, e se afastaram rapidamente com os cavalos, e a levou para o rei.

Seus irmãos chegaram depois, eles não haviam se dado ao trabalho de procurar belas garotas, mas haviam trazido com eles as primeiras aldeãs que tiveram a chance de encontrar.

Quando o rei viu as donzelas ele disse: — “Depois que eu morrer, o meu reino deve ficar com meu filho mais jovem.”

Mas os dois irmãos mais velhos quase deixaram surdas as orelhas do rei com seus clamores, — “Não podemos admitir que João Bocó seja o rei,” e exigiram que aquele cuja esposa conseguisse atravessar pulando um anel suspenso no meio da sala seria proclamado rei. Eles pensaram: — “As mulheres aldeãs podem fazer isso com facilidade, elas são fortes o bastante, mas a delicada donzela poderá morrer ao saltar.”

O rei que já estava velho também concordou com a ideia. Então, as duas jovens aldeãs tentaram várias vezes pular através do anel, mas elas eram tão entroncadas que elas caíram, e seus braços e pernas abrutalhados se partiram no meio. E então, a bela donzela que João Bocó havia trazido com ele, saltou várias vezes com a leveza de um cervo, e toda oposição teve de acabar. Então, ele recebeu a coroa, e reinou com sabedoria durante muito tempo.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 8)

 

Monsenhor Orivaldo Robles (Perigo Doce)

Tio Vitoriano era dono de um carro de praça. Estávamos em 1951. Nenhum de nós tinha ainda ouvido a palavra táxi. Pelas tantas, os parentes começaram a mostrar incomum preocupação com o patriarca, o vô Rogelio, que o pai chamava de “meu sogro”. Não Rogério, mas Rogelio, como se fala em espanhol. Por influência das muitas famílias italianas do lugar, nos acostumamos a dizer “nona” e “nono”, em vez de vó e vô. Que eu tivesse sabido, ele nunca saíra daquele sítio. Nem cuidara da saúde. Aos 77 anos, obeso, como se descobriu que era diabético jamais entendi. De que meios dispunham para o diagnóstico? Que laboratório tinha feito os exames? Vai lá saber. Mas o nono tinha diabetes e a coisa era antiga. Os sintomas não assustavam pela simples razão de que a família ignorava os riscos. Daí que ele ia levando a vida possível a um diabético desinformado.

Para se locomover – dentro de casa apenas – apoiava-se a uma bengala. Vinha enxergando cada vez menos. Idade, gordura, óculos de fundo de garrafa, nada impressionava. Ao contrário. Conforme a ocasião, até divertia. Uma vez, cheguei a casa enquanto ele dormia. Fui brincar com meu primo Ciro. Não o saudei nem na hora do almoço. À mesa, ouvindo meu nome, forçou os olhos sobre o meu vulto: “Ah, é o Orivaldo? Pensei que fosse um gato”. Todos rimos; ele, inclusive. Para ver quanta ignorância sobre uma vida que caminhava para o fim.

Não passou muito tempo, piorou de vez. Veio o médico. Recomendou sua remoção para Rio Preto, único centro capaz de tratá-lo. Tio Vito morava em Fernandópolis; tio Menegildo, em Jales. Ligação telefônica demorava um dia inteiro naquele tempo. Foram avisados. Havia urgência em reunir os filhos. Como numa vigília, à espera do pior. Tio Vito chegou no seu carro de praça. Um bem conservado Ford, suponho, ou de outra marca, quem lembra? As portas abriam o necessário a passageiros de compleição comum. Não sei se verdadeira ou falsa, a nós foi passada a versão de que o nono, por ser excessivamente gordo, não passou na abertura das portas do automóvel. Impossível embarcá-lo. Nem teria adiantado. A situação era muito grave. Morreu ali mesmo, em casa. Naquela noite ou na seguinte, não recordo.

Trinta anos mais tarde, internei a mãe em hospital de Maringá. Exames vistos, o médico me encarou, assustado: “Quer matar sua mãe? Ela chegou perto de um coma diabético”. Sorte que o seu anjo da guarda era o plantonista do dia. Aí é que fui saber que o diabetes é grave e pode-se herdá-lo. Passamos a cuidar. Acho que bem, porque ela chegou aos 94 anos. Morreu lúcida, junto dos filhos, dos quais um também é portador. Mas o mantemos vigiado por endócrino excelente e amigo.

Ainda sinto dificuldade de superar a doce, mas perversa, atração do açúcar. Por que é tão custoso trocar hábitos nascidos no colo materno? Quem, no passado, ensinou nossas pobres mães a adoçar todo sólido ou líquido que nos levavam à boca? Vida afora, acabamos ingerindo tanta porcaria gostosa, não pelo valor nutritivo, mas pelo sabor agradável. Na minha lembrança, e na de muita gente, continua presente a figura do saco de açúcar, lá na despensa, protegido das formigas, mas franqueado às nossas incursões. Quantas vezes nos tornamos coadjuvantes da mãe na confecção daqueles doces chavascados (
toscos), mais primorosos para nós do que os produzidos nas docerias da rainha da Inglaterra! Delícias, sim, mas perigosas.

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 15

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


Tico-tico no terreiro
quando chove não se molha.
Onde há moça solteira
pras casadas não se olha.
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Moça bonita é veneno,
mata tudo que é vivente,
Embebeda as criaturas,
tira a vergonha da gente.
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A laranja de madura
caiu na água foi ao fundo.
Triste da moça solteira
que cai na boca do mundo.
= = = = = = = = =

Quem quiser escolher moça,
deve escolher pelo andar.
Toda a moça que é faceira
pisa no chão devagar.
= = = = = = = = =
Quem quiser ter seu sossego,
case com moça faceira,
já namorou muitos homens,
não cai mais na brincadeira.
= = = = = = = = =

A pedra que muito rola,
limo não chega a criar:
A moça que ri pra todos
a nenhum consegue amar.
= = = = = = = = =

Alecrim da beira d'água
de viçoso está pendendo,
estas mocinhas de hoje
de faceiras vão morrendo.
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Se vejo moça corada
fico do amor abrasado;
Moça pálida e franzina
põe-me todo derrotado...
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A moça que não tiver
seu neném para brincar,
pode ficar na certeza
que no céu não há de achar.
= = = = = = = = =

Pescador que andas pescando
para as bandas do sul,
pescador, vê se me pescas
a moça do lenço azul.
= = = = = = = = =

Fui menina, já não sou,
achei consolo pra mágoa:
Moços não sabem amar,
pote velho dá boa água.
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Os teus olhos mais os meus
têm o mesmo parecer;
Mas os teus têm um jeitinho
que põem os meus a perder...
= = = = = = = = =

De tanto, tanto, te olhar,
com os teus, meus olhos troquei.
Como a troca se arranjou
sabes tu... pois eu não sei.
= = = = = = = = =

0 cipó no mato bravo
agarra o jacarandá,
assim menina teus olhos
agarrado me tem já.
= = = = = = = = =

Estes teus olhos, menina,
são confeitos, não se vendem;
São balas com que me atiram,
correntes com que me prendem.
= = = = = = = = =

Encontrei estes teus olhos
domingo, à hora da missa.
Arrenego* desses olhos,
prendem mais do que justiça.
= = = = = = = = = 
* Arrenego = zanga
= = = = = = = = =
As folhas da bananeira
mexem co'o sopro do vento,
estes teus olhos, menina,
mexem co’o meu pensamento.
= = = = = = = = =

Sei ler e sei escrever,
sei somar, diminuir,
só a graça dos teus olhos
nunca pude repartir.
= = = = = = = = =

Teus olhos têm tanta luz,
que não sei, por que segredo,
quando eu olho pra teus olhos,
estremeço, tenho medo.
= = = = = = = = =

Teu olhar, moça bonita,
eu sou capaz de atestar,
se o sol apagasse o mundo
servia pra alumiar...
= = = = = = = = =

Olhos prelos, olhos pardos,
olhos azuis soberanos,
essas três classes de olhos
para mim foram tiranos.
= = = = = = = = =

Entra o amor pelos olhos
vai ao peito direitinho,
se não acha resistência
vai seguindo seu caminho...
= = = = = = = = =

Os olhos dos namorados
são como cartas fechadas,
que só leem sem abrir
os olhos das namoradas.
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Quem quer bem logo se vê,
logo dá demonstração...
pelo pisquinho dos olhos,
e pelo aperto de mão.
= = = = = = = = =

Os olhos de meu benzinho
andam em leilão pela praça;
Não há dinheiro que pague
uns olhos de tanta graça.
= = = = = = = = =

Eu conheço uma menina
que é morena requebrada,
pois quando revira os olhos
põe minh'alma espedaçada.
= = = = = = = = =

A açucena quando nasce
vem abrindo, vem fechando;
Meu amor, quando me enxerga
vem todo se requebrando...

Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Disponível em Domínio Público

Clarisse da Costa (Bom dia)

Bom dia com o cheiro do melhor café e um dedinho de prosa. O que me remete ao cotidiano e a coisas antigas do meu passado remoto. Digamos que em 1996 estaria escrevendo essa prosa numa máquina de escrever e na antena da minha TV teria uma palha de aço. Minha realidade.

Mais um passo à frente eu posso dizer que o amor era apenas um coração desenhado e com versinhos bobos, mas tão sinceros, hoje é um coração com espaços a serem preenchidos com as incertezas sobre o que é o amor.  A vizinha canta uma música sertaneja bem apaixonada sem ter a noção do que é esse sentimento. Ou melhor, sem discernir o amor da paixão.  Eu como sempre sou uma eterna amante. Amo por inteiro e às vezes esqueço das pauladas que posso levar.

Voltando a 1996, a máquina ficou sem tinta. Não durou dois meses e não se vendem mais tintas. A guerreira vai pro ranchinho aqui de casa.  Cá entre nós, como é bem-vindo o século XXI! No entanto, muitas coisas antigas continuam a existir. O velho preconceito é um deles. A língua é até mais afiada que a sua. Fala feito matraca! E eu sou a romântica incondicional do bairro, amar é o meu vício!

Amo sim. Quem nunca amou e teve esperanças de viver a vida com esta pessoa?

Acho que vou quebrar muito a cara ainda até vir aquela pessoa disposta a amar também. - Pensava muito assim. Agora parei. Já quebrei muito cara, amanhã e depois vou quebrar mais o que?

É assim mesmo, dizem que quem tem amor de sobra para dar só para quando o coração entra em acordo com a razão e diz chega de sofrer. É capaz dela me dizer para ler um bom livro, e olha que em cima da cômoda tem duas antologias boas para eu ler!

Bom dia, o café me espera e eu tenho muitas coisas para fazer. E lá vem mais um Natal, é novembro, finados já passou. O tempo voa mesmo. Como se o tempo fosse um pássaro rumo ao sul. Agora preciso ir. O tempo passa e o relógio não falha.

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa

Fabiane Braga Lima (Adeus minha querida!)

Olhei  profundamente em seus olhos, então ele desviou o olhar. Parecia estar envergonhado, ou fugindo de algo, ou de alguém. E eu não sabia do que ou de quem. Foi então que percebi. E pensei: — Enzo não me ama mais, aliás, já faz tempo, que percebi a distância entre nós dois!

Infelizmente, percebi como a nossa relação, tinha esfriado, já não dormíamos juntos há muito tempo, não nos tocávamos mais e nem ao menos nos beijávamos. De repente, a campainha toca, era uma bela mulher, deveria ter uns vinte e cinco anos de idade. Alguma colega de trabalho dele, talvez.

Enzo surgiu por detrás de mim e de repente o meu mundo desabou. Eles se beijaram perdidamente, a poucos centímetros de mim.

— Lena, esta é minha namorada, queria lhe falar! — Foi a única coisa que Enzo me disse. Ele, que nunca teve tempo para me escutar. E agia como se eu não existisse

— Mentira! — Gritei alto.

— Não querida, há tempo que durmo no sofá, pois você detesta o meu cheiro. Lembra? — Disse Enzo com desprezo.

—Mentira! —  Gritei novamente, tentando me enganar, não aceitando a realidade diante de mim.

— Adeus querida! Cuide-se.
Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa

Minha Estante de Livros (A Volta de Tarzan, de Edgar Rice Burroughs)


É um romance de autoria do escritor norte-americano Edgar Rice Burroughs. Publicado em 1915, é o segundo de uma série de vinte e quatro livros sobre o personagem Tarzan.

RESUMO

Após renunciar ao título de Greystoke em Londres, um triste Tarzan retorna a Paris. Seu amigo Paul D'Arnot, convencido de que o herói não vai conseguir assimilar as leis e regras dos homens, arranja para ele um emprego no serviço secreto francês.

Em missão na Argélia, Tarzan desbarata uma rede de espiões russos e faz amizade com uma tribo de beduínos. Mas trava conhecimento, também, com Nicholas Rokoff, um feroz inimigo. Rokoff acaba por atirá-lo ao mar, na mesma costa ocidental da África onde fora criado.

O homem macaco, então, junta-se à tribo Waziri em uma viagem à procura da cidade perdida de Opar, onde são capturados pelos seus habitantes, brutamontes semelhantes a feras. A Grã-Sacerdotisa de Opar, no entanto, é uma beldade cruel e lasciva chamada La, que se apaixona por ele e, em decorrência disso, recusa-se a entregá-lo em sacrifício ao deus sol.

Tarzan consegue fugir, mas o que ele não sabe é que sua adorada Jane, seu primo - e noivo de Jane - William Cecil Clayton, e o arqui-inimigo Nicholas Rokoff - disfarçado como o gentil Monsieur Thuran - também naufragaram na costa africana. Jane e William deixam um doente Rokoff numa palhoça e partem à procura de ajuda. Contudo, voltam a correr perigo, pois são caçados pelos selvagens de Opar, que procuram novas vítimas para seus rituais pagãos.

HISTÓRIA EDITORIAL

Escrita de dezembro de 1912 a 8 de janeiro de 1913, com o título de Monsieur Tarzan, a obra foi submetida à revista pulp norte-americana New Story como The Ape Man e publicada por esta em sete números, entre junho e dezembro de 1913, já com o título definitivo.

A primeira edição em livro saiu em 10 de março de 1915, pela editora A.C. McClurg.

No Brasil, o romance foi lançado pela Companhia Editora Nacional em 1933, como o número 7 da afamada coleção Terramarear, com quinze mil exemplares. Houve reedições em 1946, 1948, 1954, 1956, 1959 e 1968, em quantidades que variaram entre quinze mil, dez mil e cinco mil exemplares.

Ainda no Brasil, romance saiu em 1959 pela CODIL - Companhia Distribuidora de Livros, dentro de um lote de doze volumes com as aventuras do homem macaco. O artista Manoel Victor Filho ilustrou a edição.

QUADRINHOS

A primeira quadrinização foi na forma de tiras diárias, entre 3 de junho e 17 de agosto de 1929, com desenhos de Rex Maxon e roteiro de R. W. Palmer.

A primeira edição para revistas em quadrinhos é de autoria do ilustrador Russ Manning e do roteirista Gaylord Du Bois, tendo sido publicada nos Estados Unidos pela Gold Key (selo da Western Publishing) em fevereiro de 1966. A adaptação, bastante condensada, omite as aventuras na Europa e tem início com Tarzan já na costa africana. No Brasil, a história foi publicada pela EBAL em 1968, na coleção Lança de Prata, e reeditada em 1986 na revista Tarzan.

Entre abril e setembro de 1973, a DC Comics publicou sua adaptação, ilustrada e roteirizada por Joe Kubert. No Brasil, a EBAL editou a história no ano seguinte, enquanto a Devir relançou-a em março de 2011, com o título alterado para A Volta do Rei das Selvas. Mais fiel ao original, a aventura começa em Paris. A editora Dynamite Entertainment adaptou livro em Lord of the Jungle #9-14, publicada entre 2012 e 2013.

Em 1936, a Withman, selo da Western Publishing publicou uma adaptação para a série de livros ilustrados Big Little Books com desenhos de Rex Maxon.

CINEMA E TV

O romance foi vagamente adaptado para o cinema em The Revenge of Tarzan, de 1920, estrelado por Gene Pollar e Karla Schramm. Segundo os produtores, o novo título, decidido às portas da estreia, "é mais forte. É mais dramático. É como um soco".

O enredo do livro foi utilizado, em parte, no seriado em quinze episódios The Adventures of Tarzan, de 1921, com Elmo Lincoln e Louise Lorraine. O roteiro era composto ainda por elementos de Tarzan and the Jewels of Opar e "muita invenção". Lincoln tornou-se o primeiro Tarzan do cinema ao estrelar Tarzan of the Apes e The Romance of Tarzan, ambos em 1918.

O livro também teve serventia esporádica para o roteiro de Tarzan's Return, o piloto da telessérie Tarzan: The Epic Adventures, produzida entre 1996 e 1997. Estrelada por Joe Lara e sem Jane, a série teve vinte e dois episódios em sua temporada única.

Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Return_of_Tarzan

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 18

 

Coelho Neto (O Relógio e o Vegete*)

*Vegete: [Gíria] Homem velho e ridículo.

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Sabia certo filósofo da vaidade de um seu amigo que, sendo septuagenário, procurava, a todo modo, fazer-se passar por moço. Pintava-se e, só para este artifício, tinha uma enorme bateria de frascos. Os cosméticos eram às dúzias e, no toucador, os bastões rolavam às pilhas e eram potes de pomadas, caixas de polvilhos, ferros, escovas, limas e tesouras. Todos os dentes postiços lembravam as imagens funerais com que, sobre os túmulos, se recordam os finados e o busto, que corcovava (
curvava), era mantido a prumo pelas lâminas de aço de um colete.

Certa manhã, procurando-o o filósofo, achou-o atarefado em remoçar-se. Afundou na primeira poltrona com um livro e, enquanto o velho reparava os estragos da velhice, fingiu-se interessado na leitura.

Um momento saiu o pachola (
vaidoso) e logo o sábio, pé ante pé, foi ao grande relógio, cujos ponteiros marcavam o meio-dia, e parou-o. Reapareceu o velho sarapintado e ajeitado em quarentão, teso e liso, os cabelos e a barba de azeviche (cor muito preta), mas os olhos ... ai! deles, já vasquejavam (tremulavam) no fundo escavado das órbitas.

Saíram para o almoço. À mesa a palestra foi longa: o velho falou de amores, referindo-se a galantes aventuras; o filósofo sorria, gabando-lhe a fortuna.

Subia o calor — não só do sol como dos vinhos e licores, que foram vários e copiosos.

Passaram ao terraço e, tão doce era o ar em tal recreio, tão cômodo era o recosto mole das poltronas, tão capitoso (
embriagante) era o perfume do jardim, que ali se ficaram os dois discreteando (discorrendo com discrição) suavemente, com cabeceios de sono que os faziam mesurar de quando em quando.

Lenta vinha vindo a tarde e o velho, que não desonrava os fingimentos, tornou à câmara a refazer, com unguentos o cosméticos, o que o suor comprometera.

Ao entrar, porém, consultando o relógio, pasmou de o ver parado.

— Parado o relógio!

– Parei-o eu. – disse serenamente o filósofo.

– Tu! Com que fim?!

— Desejando tornar mais longo o nosso convívio, não quis que os ponteiros ganissem do meio-dia.

Dobrou-se o velho a rir do que lhe parecia grande necedade (
tolice).

— Temos um novo Josué! Julgas, então, que, parando o relógio, deténs a marcha das horas?

— Não rias, porque foi contigo que aprendi tal lição.

— Comigo?

— “Sim. contigo. Infelizmente, porém, estou convencido do meu erro e peça a Deus que o mesmo lhe aconteça. Parando o relógio ao meio-dia nem por isso consegui evitar que as sombras da noite viessem sobre nós. Elas aí estão, e pesadas, apesar do estratagema. Mira-te agora ao espelho, tu. Não fazes em ti o mesmo que fiz ao relógio ?

“Olhando os ponteiros dá-se logo pela inércia da máquina, porque ninguém se engana com o tempo. Assim, quem te vir, ainda que te besuntes com todos os óleos da terra e tinjas os cabelos com todos os preparados químicos, não se iludirá com a fraude. Queres fixar a mocidade como eu quis reter o tempo, parando o relógio, que lá está imóvel no zênite sem que, por isso, refuta ao negror da noite que já o vai cercando.

“O Tempo é como o sol, meu amigo: ninguém o esconde, não há rebuços que o encubram. É meio-dia no relógio e já por aí andam a trissar (
cantar) morcegos. Assim tu — fazes-te moço, escondes a verdade e ela ressalta flagrante em todo o teu corpo. Vamos lá, meu amigo, não nos queiramos iludir opondo tropeços ao que não para. Podes enterrar um raio de sol? Foi este um sonho que Averróis (filósofo espanhol 1126 – 1198) tentou inutilmente. Deixa-te de artifícios — lava-te e aparece como és — enquanto eu vou acertar o relógio, pondo-lhe os ponteiros sobre as horas que são.”

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J. Feldman

Atílio Andrade (Poemas Avulsos)

CAMINHEIRO


Caminheiro! Abanca-te, descansa!
Depois , segue,
Teu doloroso caminho.

Olha a poeira ao longo da estrada!
É  fina... impura...
E tu vagueias por ela.

Respiras d'uma só  vez
Todo o ar da tua vida.
Agora para e sinta o deleite
Deste teu desconhecido.

E no acalanto  deste tugúrio,
Silencioso, procures  ouvir
O doce  murmúrio,
Das correntes que vozeiam:

- Não, não  vás  agora!
Primeiro encontre teu caminho,
Depois jornadeie tranquilo
Nas sendas da vida.
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MANHà DE SOL

A manhã  sorria, risonha e perfumada.
Na cascata da encosta
As águas límpidas e cristalinas...
Chicoteavam o silêncio.
As árvores balançavam, verdes e orvalhadas.
O vento enlaçava - as...
Soprando o perfume perfumado das manhãs...
Era manhã.  E por detrás da encosta
Vermelho... Vivo...
Crescia o sol.
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PORTAS

Todo dia se abrem portas.
Mas,
Portas se fecham todo dia.
Também.
Porque fechamos ou abrimos
Se nunca estiveram lá.
Nós,  é  que  colocamos
E,
Procuramos dificultar...
O acesso na avestruz "cidade"
Que povoa nossa mente
E partilhamos  o imponderável  
Que necessitamos, no controlar
Das portas de nossa vivência,
Escorada, apenas
na bengala de nosso fraquejar.
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QUEIMA

O fogo,
cor do inferno...
consumiu tudo
no inverno.

A chuva veio e,
tudo lavou e levou.
A cinza do enleio
ao pó retornou.

A sábia natureza
que nunca mente,
fez brotar a beleza
da mais profunda  "semente "

E o verde, cresceu novamente!
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VALE

Rompe  veloz  
e assassina....
A mancha da Vale
que mina.
E acima de tudo,
se foram,
os sonhos....
construidos.
Num estrondo
medonho....
A Vale que era doce
amarga o luto ,
que espelha o mundo
da vergonha repetida....
Ceifando vidas...
na lama...   
que envergonha,
a montanha,
que minera...
O homem altera,
explora...admira...
um dia a natureza,
carrancuda  e severa
a conta, espera.
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VALSA DA LUA

A lua fria e sozinha
Vagava
Valseando
No
Espaço
Vazio...
Tão  perto de nós
Tão  longe de tudo
Prateava os céus...
Brilhando sozinha
A virgem dos vates.
Por cima de tudo
Pairava
Zombando
Zombando de nós.
Incendiava olhares
Brincando nos céus...
Brilhante  prateava,
Do alto os amantes
Perplexos
Que a viam
Tão  branca
Nos céus.
E toda orgulhosa
A noiva do sol
Plácida,  serena,
Valseava nos céus.
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Atílio Andrade é  filho de Joaquim Andrade e Ema Gusso, nascido em 1949, em Tomazina/PR. Família de 12 irmãos. Em 1969, foi para Curitiba com o intuito de arrumar um trabalho e, ingressar em uma faculdade. Até então, com seus 19 anos era lavrador onde sonhava em meio aos cafezais, de Tomazina,  dias melhores. Trabalhou na Impressora Paranaense, Bamerindus, Petrobrás  Distribuidora e também foi professor  de português primeiro e segundo graus. Em 1999 aposentou-se  pela Petrobrás Distribuidora.

Em 1973 iniciou o curso de letras português na PUC,  licenciando-se em 1976. Em 1986 licenciou-se em Ciências  Contábeis.

Em 1977 publicou seu primeiro livro "Passarela", editado pelo jornal e editora Esquema Oeste de Guarapuava/PR. Participou de diversas coletâneas  e teve poemas publicados em alguns jornais, por esse Brasil afora.

Em 2015, com auxílio da filha Stely, participou dum processo seletivo da Fundação  Cultural de  Curitiba onde seus poemas foram aprovados e com o apoio financeiro da lei de inventivo  à cultura,  voltou a escrever e publicou "Passarela um novo olhar", onde a maioria dos poemas são do livro Passarela, agora, sob um novo olhar.

A chama de escrever voltou  mais forte e hoje tem  livros de poemas, contos ou crônicas  do dia a dia que pretende  em breve desengavetá - los.


Fonte:
Biografia enviada por Isabel Furini.
Poemas obtidos do livro Passarela Um novo olhar, enviados por Isabel Furini e alguns obtidos no facebook com o mesmo nome do livro.

Contos e Lendas da África (Ga’So, o professor)

(por George W. Bateman)


Certa vez viveu um homem chamado Ga’so, que ensinava as crianças a ler, não em uma escola, mas debaixo de uma cabaceira. Uma noite, Ga’so estava sentado debaixo de sua árvore, preparando as aulas para o dia seguinte, quando Paa, a gazela, subiu silenciosamente no tronco dessa mesma árvore para apanhar alguns frutos. Ao fazer isso, sacudiu um dos galhos e derrubou uma cabaça madura, que acertou a cabeça do professor e o matou.

Na manhã seguinte, os alunos encontraram o professor morto no chão e foram tomados de tristeza. Após um respeitoso funeral, concordaram em encontrar o assassino e fazê-lo pagar com sua vida.

Depois de muito discutirem, chegaram à conclusão de que o culpado era o vento do sul.

Então capturaram o vento do sul e o espancaram.

— Parem! Eu sou Koosee, o vento do sul. Por que me batem? O que eu fiz?

E os meninos responderam:

— Sabemos que você é Koosee. Foi você quem derrubou a cabaça e matou Ga’so, nosso professor. Não devia ter feito isso.

Koosee se defendeu:

— Se eu fosse tão poderoso, seria bloqueado por uma parede de barro?

Então foram até a parede de barro e a espancaram.

— Parem! Eu sou Keeyambaaza, a parede de barro! Por que me batem? O que eu fiz?

E os meninos responderam:

— Sabemos que você é Keeyambaaza. É você quem bloqueia Koosee, o vento do sul. E Koosee derrubou a cabaça e matou Ga’so, nosso professor. Não devia ter feito isso.

Keeyambaaza se defendeu:

— Se eu fosse tão poderosa, seria roída pelo rato?

Então capturaram o rato e o espancaram.

— Parem! Eu sou Paanya, o rato! Por que me batem? O que eu fiz?

E os meninos responderam:

— Sabemos que você é Paanya. É você quem rói Keeyambaaza, a parede de barro, que bloqueia Koosee, o vento do sul, que derrubou a cabaça e matou Ga’so, nosso professor. Não devia ter feito isso.

Paanya se defendeu:

— Se eu fosse tão poderoso, seria comido pelo gato?

Então capturaram o gato e o espancaram.

— Parem! Eu sou Paaka, o gato! Por que me batem? O que eu fiz?

E os meninos responderam:

— Sabemos que você é Paaka. É você quem come Paanya, o rato, que rói Keeyambaaza, a parede de barro, que bloqueia Koosee, o vento do sul, que derrubou a cabaça e matou Ga’so, nosso professor. Não devia ter feito isso.

Paaka se defendeu:

— Se eu fosse tão poderoso, seria amarrado por uma corda?

Então apanharam a corda e a espancaram.

— Parem! Eu sou Kaam’ba, a corda. Por que me batem? O que eu fiz?

E os meninos responderam:

— Sabemos que você é Kaam’ba. É você quem amarra Paaka, o gato, que come Paanya, o rato, que rói Keeyambaaza, a parede de barro, que bloqueia Koosee, o vento do sul, que derrubou a cabaça e matou Ga’so, nosso professor. Não devia ter feito isso.

Kaam’ba se defendeu:

— Se eu fosse tão poderosa, seria cortada por uma faca?

Então apanharam a faca e a espancaram.

— Parem! Eu sou Keesoo, a faca. Por que me batem? O que eu fiz?

E os meninos responderam:

— Sabemos que você é Keesoo. Você corta Kaam’ba, a corda, que amarra Paaka, o gato, que come Paanya, o rato, que rói Keeyambaaza, a parede de barro, que bloqueia Koosee, o vento do sul, que derrubou a cabaça e matou Ga’so, nosso professor. Não devia ter feito isso.

Keesoo se defendeu:

— Se eu fosse tão poderosa, seria queimada pelo fogo?

Então foram até o fogo e o espancaram.

— Parem! Eu sou Moto, o fogo. Por que me batem? O que eu fiz?

E os meninos responderam:

— Sabemos que você é Moto. Você queima Keesoo, a faca, que corta Kaam’ba, a corda, que amarra Paaka, o gato, que come Paanya, o rato, que rói Keeyambaaza, a parede de barro, que bloqueia Koosee, o vento do sul, que derrubou a cabaça e matou Ga’so, nosso professor. Não devia ter feito isso.

Moto se defendeu:

— Se eu fosse tão poderoso, seria apagado pela água?

Então foram até a água e a espancaram.

— Parem! Eu sou Maajee, a água. Por que me batem? O que eu fiz?

E os meninos responderam:

— Sabemos que você é Maajee. Você apaga Moto, o fogo, que queima Keesoo, a faca, que corta Kaam’ba, a corda, que amarra Paaka, o gato, que come Paanya, o rato, que rói Keeyambaaza, a parede de barro, que bloqueia Koosee, o vento do sul, que derrubou a cabaça e matou Ga’so, nosso professor. Não devia ter feito isso.

Maajee se defendeu:

— Se eu fosse tão poderosa, seria bebida pelo boi?

Então foram até o boi e o espancaram.

— Parem! Eu sou Ng’ombay, o boi. Por que me batem? O que eu fiz?

E os meninos responderam:

—Sabemos que você é Ng’ombay. Você bebe Maajee, a água, que apaga Moto, o fogo, que queima Keesoo, a faca, que corta Kaam’ba, a corda, que amarra Paaka, o gato, que come Paanya, o rato, que rói Keeyambaaza, a parede de barro, que bloqueia Koosee, o vento do sul, que derrubou a cabaça e matou Ga’so, nosso professor. Não devia ter feito isso.

Ng’ombay se defendeu:

— Se eu fosse tão poderoso, seria atormentado pela mosca?

Então capturaram a mosca e a espancaram.

— Parem! Eu sou Eenzee, a mosca. Por que me batem? O que eu fiz?

E os meninos responderam:

— Sabemos que você é Eenzee. Você atormenta Ng’ombay, o boi, que bebe Maajee, a água, que apaga Moto, o fogo, que queima Keesoo, a faca, que corta Kaam’ba, a corda, que amarra Paaka, o gato, que come Paanya, o rato, que rói Keeyambaaza, a parede de barro, que bloqueia Koosee, o vento do sul, que derrubou a cabaça e matou Ga’so, nosso professor. Não devia ter feito isso.

Eenzee se defendeu:

— Se eu fosse tão poderosa, seria comida pela gazela?

Então foram atrás da gazela, que foi capturada e espancada.

— Parem! Eu sou Paa, a gazela. Por que me batem? O que eu fiz?

E os meninos responderam:

— Sabemos que você é Paa. Você come Eenzee, a mosca, que atormenta Ng’ombay, o boi, que bebe Maajee, a água, que apaga Moto, o fogo, que queima Keesoo, a faca, que corta Kaam’ba, a corda, que amarra Paaka, o gato, que come Paanya, o rato, que rói Keeyambaaza, a parede de barro, que bloqueia Koosee, o vento do sul, que derrubou a cabaça e matou Ga’so, nosso professor. Não devia ter feito isso.

A gazela ficou paralisada ao perceber que havia sido descoberta e sofreria as consequências pela morte acidental do professor.

Os alunos continuaram suas acusações:

— Vejam só! Não é capaz de dizer uma palavra sequer para se defender. Foi ela mesma quem derrubou a cabaça e matou Ga’so, nosso professor. Vamos pegá-la!

E assim mataram Paa, a gazela, e vingaram a morte de seu professor.

Fonte:
Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

domingo, 11 de junho de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 30: Camuflagem

 

Caio Riter (Direito à fantasia)

Um dia fui criança. Fui. E se falo assim, no passado, apesar de um pequeno ainda habitar meu coração, é porque a infância passa e o que fica dela é a nostalgia do ter sido. Ou do não ter sido também.

Fui criança, não daquelas arteiras, levadas. Fui menino tranquilo, de não muitas peraltices, de trabalho pouco dando aos pais. Fui criança triste. Pelo menos, é o que diviso nas poucas fotos do guri que, por vezes, me olha de algum lugar do ontem.

Fui criança de imaginações. E se o fui, foi pelo pouco que a rua daquele bairro de periferia me ofertava. Eu queria algo mais. Um algo mais nutrido pelo tanto de leitura que invadia meus dias pouco diferenciados. Tudo muito igual, tudo sempre igual. Gibis, pulp fictions, fotonovelas e, depois, os livros foram me mostrando que a vida podia ser mais, bem mais. Foi me revelando que havia outros mundos possíveis, além da mesmice do meu, e que, se as condições minhas não permitiam vivenciá-los, as páginas dos livros possibilitavam que eu fosse árabe, africano, mulher, velho, cachorro, enfim o que quisesse ou pudesse. A fantasia e a imaginação me ensinando que o sonho é possível.

Fui criança de poucos amigos, fui criança de poucos dizeres, talvez mais assuntando a vida do que vivendo-a; talvez mais desejando o altero do que sendo-o.

Fui criança e, à realidade de parcos recursos, fui dando outros sentidos. Assim, um pedaço de pau podia ser o cavalo de Napoleão; uma caixa de fósforos vazia, a biga de Ben-Hur; um buraco cavado no meio do jardim, a toca do coelho que me conduziria ao País das Maravilhas.
Fui sendo.

Por isso, por vezes, me surpreende que muitas crianças hoje só consigam ser crianças rodeadas de uma parafernália tecnológica que pouco lhes oferece de fantasia. Somos mais crianças à medida que somos capazes de imaginar, de criar do nada o todo.

Fui criança e sei que a realidade é outra, que o mundo é outro, que ser criança é outra coisa para muitos. Sei de tudo isso, mas sigo crendo (talvez de forma sonhadora demais) que a criança (não, a criança não, o ser humano) necessita da fantasia para ser mais e mais humano.

Fonte:
Blog do escritor. 8 agosto 2014.
https://caioriter.blogspot.com/2014/08/fui-crianca.html

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) XXVI


Ama a escola que produz,
essência, que não se estraga;
saber, é a perpétua luz,
que acesa, jamais se apaga!
= = = = = = = = = = =  

A vida é eterna proeza;
é luz que, na caminhada,
mantém a esperança acesa
até no fim da jornada!
= = = = = = = = = = =

Contemplo na noite calma,
luzes no céu!... Logo ao vê-las...
Parece até que minha alma
sente-se repleta de estrelas!
= = = = = = = = = = =  

Da antiga praça, ainda vive,
restos, na lembrança minha,
daquela infância que eu tive
nos passeios da pracinha!
= = = = = = = = = = =  

Da infância, carrego os traços
nesses ditongos de luz,
que brilham presos nos braços
dos braços de minha cruz!
= = = = = = = = = = =  

Daquele caminho estreito,
pisoteado por nós dois,
quanta lembrança em meu peito,
já tanto tempo depois!...
= = = = = = = = = = =

Depois do fogo que passa,
deixando cinza e borralho,
a dor da planta se abraça
aos braços de cada galho!
= = = = = = = = = = =  

Dizer - eu te amo, tu dizes;
mas, por amor, tu caçoas.
Se eu perdoar teus deslizes,
sei que tu não me perdoas!
= = = = = = = = = = =  

É Natal!... Que noite linda!
Noel, esquece... afinal,
que há muita criança ainda,
sem saber o que é Natal!...
= = = = = = = = = = =  

Entendo que o outono é nobre,
bem mais que inverno e verão;
no outono é que se descobre
quanto é sábia a solidão!
= = = = = = = = = = =  

Esse orgulho que te exalta,
rouba-te a luz da razão!...
Vê, que a luz do Sol, tão alta,
é humilde, ao beijar o chão!
= = = = = = = = = = =

Na ausência, a dor, que mais cresce,
que dobra a dor que se sente,
começa com a letra "esse"
com que se escreve serpente!
= = = = = = = = = = =  

Nas covas, de um campo santo,
o que existe de verdade,
são poucas gotas de pranto,
muitos litros de saudade!!!
= = = = = = = = = = =  

No mosteiro abandonado,
um velho monge, sem trono,
ouve as preces do passado,
na voz das preces do outono!
= = = = = = = = = = =

O adeus, nem sempre, é uma afronta;
mas, se ele for displicente,
dói feito um punhal sem ponta
que fura o peito da gente!
= = = = = = = = = = =  

O arrebol, de alma secreta,
à tarde, sempre nos diz:
quem tem alma de poeta
mesmo em silêncio, é feliz!
= = = = = = = = = = =  

O mar, desperta e desvenda
que a praia, feliz se enleia,
na camisola de renda
que a espuma tece na areia!
= = = = = = = = = = =  

O pôr do sol me diz algo,
toda tarde, ao fim do dia:
- Que o Sol, é um velho fidalgo
e poeta da nostalgia!
= = = = = = = = = = =  

O tempo é um remédio santo,
para qualquer dissabor...
Cura o tédio, cura o pranto
e as cicatrizes do amor!
= = = = = = = = = = =  

Ouço, mãe, a ressonância
de tua voz tão sentida;
- bálsamo de nossa infância,
- remédio por toda a vida!
= = = = = = = = = = =  

Por favor, não te aborreças,
se me esperas tanto assim;
é bom para que tu cresças
sem te esqueceres de mim!
= = = = = = = = = = =

Quando a noite, se rebela,
e é cada vez mais escura,
a saudade me atropela
e a solidão me procura!
= = = = = = = = = = =  

Quando o tempo, em seus afãs,
nosso viver, amordaça...
A luz do Sol, das manhãs,
brilha, e aos poucos, perde a graça!
= = = = = = = = = = =  

Quem ao divino se apega
e segue a divina luz...
Esquece a cruz que carrega
E aceita o peso da cruz!
= = = = = = = = = = =  

São tantas nossas cantigas,
tornando as horas, amenas,
que velhas mágoas antigas
deixam de ser nossas penas!
= = = = = = = = = = =  

São tantas velhas lembranças
marcando o passo ao meu lado,
que na voz das horas mansas
ouço a voz do meu passado!
= = = = = = = = = = =  

Se a casa é pobre e sofrida,
mas, tem um bem de valor:
a massa do pão da vida,
feita das sobras do amor!
= = = = = = = = = = =  

Se a justiça, é cega e justa,
por que nos seus tribunais,
nas decisões, não se ajusta,
se somos todos iguais?
= = = = = = = = = = =  

Se a sorte, quando te acerta,
rouba o pouco que era teu,
tu não tens sorte, e na certa,
a sorte, nada te deu!
= = = = = = = = = = =  

Se Deus pôs tanta poesia
nas versos do sol nascente,
por que tanta nostalgia
nos poemas do sol poente?!...
= = = = = = = = = = =  

Se eu não sou livre, em verdade,
nada eu reclamo de Deus;
vivo a eterna liberdade,
nas asas dos versos meus!
= = = = = = = = = = =  

Sem saber a dimensão
desta força que me guia,
vou revestindo o meu chão
com retalhos de poesia!
= = = = = = = = = = =

Se tu tens outras propostas,
volta logo, por favor,
que há sempre sábias respostas
nos recomeços do amor!
= = = = = = = = = = =  

Sonhar contigo, me acalma;
e o sonho, que é vã quimera,
perfuma as mãos de minha alma
e quebra os laços da espera!
= = = = = = = = = = =  

Tua foto envelhecida
num silêncio, que tortura,
guarda da infância da vida
reticências de ternura!
= = = = = = = = = = =  

Uma flor sempre nos fala
de plenitude e de paz,
pelo aroma que ela exala,
ou pelo bem que nos faz!
= = = = = = = = = = =  

Um verso bom que desliza
na mente sã de um poeta,
revela o que se precisa,
na trova que se completa!

Fonte:
Enviado pelo trovador.
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.

João do Rio (Velhos Cocheiros)

Outro dia, ao saltar de um tilburi no antigo Largo do Paço, vi na boleia de um vis-à-vis pré-histórico a ventripotência (
que tem estômago forte) colossal de um velho cocheiro. As duas mãos gorduchas à altura do peito como quem vai rezar, enfiado numa roupa esverdeada, o automedonte (cocheiro) roncava. Seria uma recordação literária ou a memória de uma fisionomia de infância? Seria o cocheiro da Safo, o irmão mais velho de Simeon, ou simplesmente um velho cocheiro que eu tivesse visto na doce idade em que todas as emoções são novas? Era difícil adivinhar. Para os cérebros cheios de literatura, a verdade obumbra-se (nubla-se) tanto que é sempre preciso perguntar por ela como o fez Poncius Pilatos diante de Deus.

Fui para perto do vis-à-vis, bati na perna do velho. Estava feio. O ventre, um ventre fabuloso, parecia uma talha que lhe tivessem entalhado ao tronco; as pernas, sem movimento, pendiam como traves. Os braços, extremamente desenvolvidos, eram quase maiores que as pernas, e a cara vermelha, com tons violáceos, lembrava os carões alegres do Carnaval. Abriu, entretanto, uma das pálpebras com mau humor e resmungou:

– Pronto!

– Então você não me conhece mais?

– Eu não, senhor.

– Pois eu conheço a você desde menino.

Ele abriu de todo as pálpebras pesadas, um sorriso de alegre bondade passou-lhe pelo lábio.

– Saiba vossa senhoria que bem pode ser! Toda essa gente importante de hoje eu conheci meninos de colégio!

Não sei por que estava meio emocionado.

– E já fez ponto na Estrada de Ferro?

– Há vinte anos, eu e o Bamba.

Encostei-me à boleia do antigo vis-à-vis. Havia vinte anos sim, havia vinte anos que no passar pela estação de carros os meus olhos de criança se fixaram curiosamente na fisionomia jocunda (
alegre) de um velho, que já naquele tempo era velho e já naquele tempo gravemente roncava na boleia de um carro! Havia vinte anos.

É como lhe digo, afirmava ele. Conhece a filha do barão de Cotegipe? Eu vi aquela santa criatura menina. Conhece o filho do grande ministro João Alfredo? É meu amigo, dá-me dinheiro sempre que vem ao Rio. Olhe, há de conhecer o Dr. Fernando Mendes de Almeida e mais o irmão Dr. Cândido. Pois quando eu servia o pai, eles eram meninos de colégio. Há meses eu disse ao Dr. Fernando tudo isso e ele foi dar um passeio no meu carro e deu-me doces, vinho do Porto, dinheiro. Estava admirado e ria...

– Como se chama você?

– Braga, eu sou o Braga.

Pobre velho cocheiro a quem se dá como às crianças doces de confeitaria! Eu continuava encostado ao vis-à-vis, imensamente triste e com a mesma curiosidade de criança.

– Trabalho neste ofício desde 1870. Tinha vinte anos, quando comecei. Toda a minha mocidade foi acabada aqui.

– E não estás rico?!

– Rico?

Soltou uma gargalhada sonora que lhe balançou o ventre e avermelhou mais. Os seus olhos pequenos olhavam-me da boleia com superioridade compassiva. É difícil encontrar um cocheiro de carro que tenha feito fortuna. Enriquecem os de carroça, os de caminhões. De carro, se citam dois ou três em trinta anos. O ofício, longe de tornar ágeis os corpos, faz lesões cardíacas, atrofia as pernas, hipertrofia os braços, de modo que quinze anos de boleia, de visão elevada do mundo, ao sol e à chuva, estragam e usam um homem como a ferrugem estraga o aço mais fino. O Braga era um velho trapo encharcado. Tanto ádipo (
relativo à gordura) dava-me a impressão de que o pobre velho devia ter água nos tecidos.

Eu continuava a ouvi-lo. Naquela boleia falava um cultor do quietismo, um renanista (
relativo a Ernesto Renan) que tivesse compreendido o nirvana. Nem uma ambição, nem um ódio: apenas um sorriso de quem não se rala com a vida e vem para a rua almejando não encontrar fregueses, para dormir mais à vontade.

– Ah! Este carro! – murmurei. – Quanta história podia você contar. Quantas cenas de amor, quantos beijos, quantas angústias e quantos crimes!

– Este carro não; outros, ou antes, eu. Fui de cocheira, fui de casa particular e trabalhei por minha conta. Quando caiu o ministério João Alfredo fui eu quem o levou ao Paço. Agora essas coisas de beijos – noutro tempo era nas berlindas.

– Tinha vontade de saber a sua opinião.

Ele arregalou muito os olhos.

– A respeito de beijos? Sei lá!

– Não, a respeito da Monarquia e da República.

Ele sorriu, pensou.

– A Monarquia tinha as suas vantagens. Era mais bonito, era mais solene. Não vá talvez pensar que eu sou inimigo da República. Mas recorde por exemplo um dia de audiência pública do imperador. Que bonito! Até era um garbo levar os fregueses lá. Ó Braga, onde estiveste? Fui à Boa Vista! Hoje todo o mundo entra no palácio do Catete. Não tem importância... É verdade que o Obá entrava no Paço. Mas era príncipe. E então para conhecer homens importantes! Não precisava saber-lhes o nome. Os ministros tinham uma farda bonita, o imperador saía de papo de tucano. Bom tempo aquele! Hoje a gente tem de suar para conhecer um ministro. Parecem-se todos com os outros homens.

– Talvez não sejam, Braga.

– Quanto às capacidades não digo nada...Mas veja. Por estar perto da secretaria é que conheço o Müller, um magro, que reforma a cidade. E de todo o ministério só ele. Se isso era possível em 1880! Depois, quer saber? A República trouxe a Bolsa, uma porção de cocheiros estrangeiros, uns gringos e ingleses de cara raspada, com uns carros que até nem eu lhes sabia o nome!

Despegou as mãos de sobre o peito.

– E vão morrendo todas as pessoas notáveis, já não há mais ninguém notável. Só restam o sr. visconde de Barbacena, o sr. marquês de Paranaguá e mais dois outros.

Houve uma longa pausa. Como este cocheiro estava do outro lado da vida! Quinze anos apenas tinham levado o seu mundo e o seu carro para a velha poeira da história! Ele falava como um eco, e estava ali, olhando o boulevard reformado, pensando nos bons tempos das missas na catedral e das moradas reais, hoje ocupadas pela burocracia republicana.

– O Braga é o mais velho cocheiro do Rio?

– Não senhor; é o Bamba, que começou em 1864.

Neste momento, outros cocheiros moços, limpos, de grandes calças abombachadas foram aproximando os carros, com vontade de saber o que retinha um cavalheiro tanto tempo a prosar com o velho. Logo se fez um barulho de rodas e de vozes.

– Ó Braga, ó velho, despacha o freguês! Tem aqui um carro bom, vossa senhoria! O Braga, posso servir?

Braga cruzou outra vez as mãos no peito, com um sereno olhar indiferente. Que dor o havia de trespassar! Murmurei com pena:

– Bom, adeus, meu Braga. E onde para o Bamba?

– Na Estrada, para na Estrada. Às ordens do menino, respondeu ele do alto.

Já agora era impossível deixar de ver o outro, de conhecer o mais antigo cocheiro do Rio! Tomei um bonde da Central. A tarde morria em lento e vermelho crepúsculo. No céu brilhava a primeira estrela trêmula e luminosa, e os combustores (
postes de iluminação pública)  acendiam a sua luz azul quando saltei na Praça da Aclamação. E foi um grande trabalho. Eu ia de carro em carro.

– Pode informar onde para o Bamba?

Uns diziam que o Bamba caíra e fora para o hospital, outros, os moços, riam de que se fosse procurar um cocheiro inútil como o Bamba, outros asseguravam que o velho não trabalhava mais. Afinal, quase defronte da porta do Quartel, encontrei um landau (
Carruagem de quatro rodas, que tem no interior dois bancos frente a frente) empoeirado, desses que parecem arcas e acomodam à vontade seis pessoas.

Da boleia um mulato velho falava para um gordo ancião, muito gordo, muito estragado...

– Sabe você dizer quem é e onde está o Bamba?

O mulato riu.

– É este, patrão...

O gorducho abriu a boca, onde faltavam os dentes.

– Já não trabalho de noite: tenho 70 anos. Não vejo. Desde 1864 que estou no serviço. Outro dia quase morro; caí da boleia. Tenho as pernas duras.

– Bamba, meu velho...

– Sou o primeiro cocheiro, o mais velho, não há nenhum mais velho...

Eu voltei-me para o mulato, interroguei-o quase em segredo:

– Mas que diabo vem ele fazer aqui, assim?

O mulato sorriu com tristeza.

– Sei lá! É o cheiro, vossa senhoria, é o cheiro! Quando a gente começa nesta vida, não pode viver sem ela...É o cheiro.

A praça vibrava numa estrepitosa animação, os combustores reverberavam em iluminações fantásticas, e, só, no céu calmo, como uma hóstia de tristeza, a velha lua esticava a triste foice do seu crescente.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. Publicado originalmente em 1908.