sábado, 3 de novembro de 2018

Olivaldo Júnior (O Caçador de Passarinhos)

Para Higor

Liberta, que serás também.

Era uma vez um homem que gostava de caçar. Não caçava borboletas, nem caçava encrenca por aí. Era uma vez um homem que gostava mesmo era de caçar passarinhos.

Assim, dia a dia, ele deixava arapucas pelo caminho, que era sempre o mesmo caminho de sempre, sem qualquer, sem nenhuma novidade.

Porém, o que esse homem não sabia era que, para caçar qualquer pardal, qualquer canário, qualquer tipo de passarinho, era preciso ter primeiro uma gaiola, algum lugar de onde esse pássaro nunca mais pudesse sair. E o homem, coitado, não tinha nenhuma gaiola.

Foi que, um dia, ele achou por bem fazer uma gaiola. Não tinha muita, ou quase nenhuma experiência com esse tipo de trabalho, então, o que saísse de suas mãos de poeta e de funcionário público municipal que se julga menor, já seria um grande (e)feito para ele.

Gaiola pronta, tratou de espalhar suas arapucas novamente. O mar parecia estar para peixe, mesmo que a intenção fosse pegar pássaros.

Não é que, como quem não quer nada, quase à noitinha, um passarinho muito lindo entrou na arapuca do homem, que, se aproveitando da distração momentânea do pardal, tratou de pegá-lo logo e trancafiá-lo em sua nova gaiola?...

O homem, porém, não era um caçador de passarinhos de verdade. Estava mais para um ornitólogo do que para um caçador. Mas, como havia adorado aquele pardalzinho que pegara, quis que ele ficasse para sempre em sua nova casa.

O pardal, por sua vez, já tinha seu ninho à vista, e o homem até sabia disso. Mas, como era o seu pardal de estimação, não queria libertá-lo.

Assim, desde o momento em que o pegou, ficou vigiando para ver se ele não fugia, não deixava a gaiola. E foi ficando cada vez mais infeliz.

Um dia, por um cochilo do homem, o pardal saiu das grades que o aprisionavam. Indignado com seu descuido, o homem se culpara pelo acontecido, sem ter sequer se dado conta de que a porta da gaiola nunca, jamais tinha existido.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Irmãos Grimm (Os Seis Criados)


Em tempos muito remotos, existiu uma velha rainha, que era feiticeira e a filha dela era a criatura mais bela do mundo.

A velha rainha só se preocupava em atrair os homens para prejudicá-los. Todo pretendente que aparecia, ela informava-o de que, se quisesse casar com a filha, devia antes decifrar uma adivinhação, se não o conseguisse, teria de morrer.

Muitos jovens, seduzidos pela beleza deslumbrante da princesa, arriscavam-se, mas nenhum conseguia acertar a adivinhação imposta. Então, sem a menor piedade, fazia-os ajoelhar e, no mesmo instante, mandava decepar-lhes a cabeça.

Um belo príncipe, ouvindo falar na beleza radiosa da princesa, disse ao rei seu pai:

- Deixai-me partir, meu pai; quero obter a mão dessa princesa.

- Jamais! - respondeu o rei - se lá fores irás ao encontro da morte.

Não se conformando com isso, o moço adoeceu gravemente, ficando entre a vida e a morte durante sete anos, sem que médico algum pudesse curá-lo. Vendo que não tinha mais esperanças, o pai disse-lhe com profunda tristeza:

- Podes ir tentar a sorte. Não encontrando o que te possa curar, e se tens mesmo que morrer, faço-te a vontade.

Ouvindo essas palavras, o moço levantou-se completamente bom e, alguns dias depois, pôs-se alegremente a caminho.

Sucedeu-lhe ter de atravessar a cavalo uma grande planície e, de longe, avistou enorme pilha de feno. Aproximando-se, observou que nada mais era do que a barriga de um homem deitado, a qual, à distância, parecia um montinho.

O gordão, quando viu o cavaleiro, levantou-se e disse:

- Se tendes necessidade de um criado, tomai-me ao vosso serviço.

- Que vou fazer com um homem tão desajeitado? - disse o príncipe.

- Oh, isto não quer dizer nada, - disse o gordão - se me espicho todo, sou três mil vezes mais gordo ainda.

- Se é assim, talvez me possas ser útil. Vem comigo! - disse o príncipe.

O gordão acompanhou-o e não demorou muito encontraram um indivíduo deitado no chão, com o ouvido encostado na relva.

- Que estás fazendo aí? - perguntou-lhe o príncipe.

O homem respondeu:

- Escuto.

- E que é que escutas tão atentamente?

- Estou justamente escutando o que vai pelo mundo, porque nada escapa ao meu ouvido. Chego a ouvir até a erva crescer.

Um tanto admirado, o príncipe perguntou-lhe:

- Dize-me, então: o que ouves na corte daquela velha rainha que tem uma filha maravilhosa?

O orelhudo respondeu:

- Ouço o sibilar da espada cortando a cabeça de um infeliz pretendente.

O príncipe, então, disse:

- Tu poderás ser-me útil, vem daí comigo.

E os três continuaram juntos o caminho. Pouco mais além, viram no chão dois pés e um bocado de pernas e não viram o resto. Depois de andar bastante, viram um tronco e finalmente a cabeça.

- Alô! - disse o príncipe - como és comprido!

- Isso não é nada, - respondeu o outro - se me estico bem, fico três mil vezes mais comprido ainda. Sou mais alto que a mais alta montanha do mundo. Se precisais de mim, seguir-vos-ei com muito gosto.

- Vem! - disse o príncipe - Poderás ser-me útil.

E foram andando.;Pouco depois encontraram um tal, sentado à margem da estrada com os olhos vendados. O príncipe perguntou-lhe:

- Sofres da vista, que não suportas a luz?

- Não! - respondeu o homem - Não posso tirar a venda, pois tamanha força possuem meus olhos, que despedaçam qualquer coisa em que pousam. Se puder ser-vos útil, disponde de mim.

- Vem comigo! - disse o príncipe - Talvez me sejas útil.

E todos juntos continuaram andando. Mais adiante, encontraram um homem deitado ao sol abrasador, tremendo de frio como uma vara verde.

- Como é possível que sintas tanto frio, com um sol tão quente? - perguntou o príncipe.

- Ah, eu sou de natureza diversa da dos outros. Quanto mais calor, mais frio sinto e o gelo me penetra na medula dos ossos. Quanto mais frio, mais calor eu sinto. No meio do gelo não aguento o calor e no meio do fogo, não aguento o frio.

- És um tipo interessante! - disse o príncipe - Se queres servir-me, acompanha-me.

Continuaram juntos o caminho e, mais além, avistaram um homem que espichava imensamente o pescoço e olhava por cima das montanhas e bosques. Intrigado, o príncipe perguntou-lhe:

- Que estás olhando com tanto interesse?

O homem respondeu:

- A minha vista é tão aguda, que alcança além das montanhas e vales, podendo ver o que se passa no mundo.

O príncipe então disse-lhe:

- Vem comigo! Faltava-me justamente um tipo como tu!

Assim, acompanhado pelos seis criados, o príncipe chegou à cidade habitada pela velha rainha. Apresentou-se diante dela, sem revelar a identidade, e declarou:

- Se me concedeis a mão de vossa filha, farei tudo o que me impuserdes.

A rainha feiticeira alegrou-se por lhe ter caído nas garras um tão belo rapaz, e disse-lhe:

- Três vezes eu te darei uma empreitada. Se de cada vez a levares a termo conforme meu desejo, serás senhor e esposo de minha filha.

- Qual é a primeira? - perguntou o príncipe.

- Quero que me tragas o anel que deixei cair no fundo do Mar Vermelho.

O príncipe foi ter com os criados e disse-lhes:

- A primeira empreitada não é nada fácil. Temos de pescar o anel que a rainha perdeu no Mar Vermelho. Aconselhai-me o que devo fazer.

Então Olhos de lince falou:

- Quero antes ver onde está.

Foi olhar para as profundezas do Mar e, depois, disse:

- Está lá no fundo, espetado na ponta de uma rocha.

O compridão levou todos até junto do Mar, e disse:

- Eu bem poderia pescá-lo, se pudesse vê-lo.

- Não seja essa a dificuldade! - disse o gordão.

E deitou-se com a boca na água, as ondas despejavam-se-lhe dentro como absorvidas por um abismo. Em breve ele bebeu toda a água do mar, deixando-o seco como um prado.

O compridão curvou-se, um pouco, e apanhou o anel. Cheio de alegria, o príncipe correu a entregá-lo à rainha. Ela ficou pasma. Depois disse:

- Sim, é mesmo esse o anel. Executaste bem a primeira empreitada, agora tens a segunda. Olha, naquele campo, em frente ao meu castelo, há trezentos bois pastando, todos muito gordos. Tens de os comer todos, inclusive o couro, os chifres e os ossos. E na adega há trezentos barris de vinho, tens de beber tudo. Se sobrar um pelo que seja de um boi, ou uma gotinha de vinho, perderás tua bela cabeça.

O príncipe perguntou:

- Não posso convidar alguns comensais? Sem uma boa companhia, não tem graça comer!

A velha sorriu, ironicamente, e disse:

- Se queres ter companhia, podes convidar um apenas, e não mais.

O príncipe foi ter com os criados e disse ao Gordão:

- Hoje, convido-te a almoçar; uma vez pelo menos, comerás até te fartares.

O Gordão aceitou o convite e foi-se esticando sempre mais e comeu os trezentos bois sem deixar um pelo sequer, perguntando ainda se não havia mais nada para sobremesa. Para beber o vinho não teve necessidade de copo, bebeu-o todo mesmo pelos barris, lambendo a última gotinha que lhe caíra no dedo.

Finda a refeição, o príncipe chamou a velha, mostrando-lhe que nada havia sobrado. A segunda empreitada estava concluída. Ela ficou enormemente admirada e disse:

- Ninguém jamais conseguiu fazer isso. Tens. porém, de realizar a terceira.

Consigo mesma ia pensando: "Desta não me escaparás e não salvarás a tua cabeça."

- Hoje à noite, - disse ela - levarei minha filha ao teu quarto. Tu tens de abraçá-la, mas livra-te de ferrar no sono enquanto estais abraçados. Eu chegarei à meia-noite em ponto. Se ela não estiver em teus braços, estás perdido.

O príncipe refletiu: "Esta empreitada é muito fácil. É claro que ficarei com os olhos abertos." Contudo, chamou os criados e expôs-lhes a exigência da velha, dizendo:

- Quem sabe lá que cilada se esconde atrás disto? É preciso ser prudente. Ficai de guarda à porta e prestai muita atenção para que a princesa não saia do quarto.

Ao anoitecer, chegou a velha com a filha. Empurrou esta para os braços do príncipe e saiu. O compridão deitou-se fazendo um círculo em volta deles e o Gordão postou-se diante da porta, de maneira a não deixar sair ninguém.

Assim ficaram os dois abraçadinhos e a moça não proferia palavra. A lua, filtrando através da janela, iluminava-lhe o semblante e o príncipe pôde ver-lhe deslumbrante beleza. Ficava a olhar embevecido para ela, apaixonado e feliz, e seus olhos não cansavam de contemplá-la. Isso durou até às onze horas, aí então a velha lançou um sortilégio sobre todos eles, fazendo-os dormir. Imediatamente a moça desapareceu.

Eles dormiram até meia-noite menos um quarto, quando cessou o efeito do sortilégio e todos acordaram.

- Oh, que desgraça, - exclamou o príncipe - estou perdido, estou perdido!

Os fiéis criados também lastimavam-se, mas Ouvidofino disse:

- Calem-se! Quero ouvir.

Escutou um instante, depois exclamou:

- Ela está sentada num rochedo distante trezentas horas daqui, e está chorando a sua sina. Isso agora é contigo, Compridão. Se te esticas todo, com dois passos chegarás até lá.

- Esta bem, - respondeu Compridão - mas Olhosderaio tem de me acompanhar para dar cabo do rochedo.

Assim dizendo, carregou nas costas o homem dos olhos vendados e, num relâmpago, acharam-se diante do rochedo encantado. Imediatamente Compridão tirou a venda dos olhos do companheiro e este, pousando-os sobre o rochedo, fê-lo quebrar-se em mil pedaços.

Compridão tomou a princesa nos braços e num instante levou-a ao castelo. Em seguida, rápido como um raio, voltou a buscar o companheiro. Antes que soassem as doze badaladas da meia-noite, estavam todos no castelo, alegres e felizes.

Ao último toque da meia-noite, chegou a velha, devagarinho, devagarinho, com um sorriso de mofa nos lábios, a significar:

- Ah, agora é meu! Não me escapará! - julgando que a filha estivesse no rochedo a trezentas horas daí.

Quando entrou no quarto e viu-a entre os braços do príncipe, ficou espavorida e exclamou:

- Eis aí um que sabe mais do que eu!

Mas não tinha o que dizer e foi obrigada a conceder- lhe a mão da filha. Entretanto, sussurrou-lhe ao ouvido:

- Que humilhação para ti, teres de obedecer a uma pessoa ordinária! E não poderes escolher um marido digno de ti!

No íntimo do coração, a princesa orgulhosa revoltou-se e encheu-se de ira, então premeditou uma grande vingança.

No dia seguinte, ela mandou amontoar trezentas carroças de lenha, dizendo ao príncipe que, embora tivesse cumprido as três empreitadas, ela só se casaria com ele se, pondo-se no meio daquela lenha, fosse capaz de resistir ao fogo.

Ela julgava que nenhum dos criados se deixaria queimar por ele. Por amor a ela, o príncipe se submeteria ao sacrifício e a deixaria livre de uma vez por todas. Mas os criados disseram:

- Todos nós já fizemos alguma coisa; agora cumpre ao Friorento fazer o que lhe toca.

Colocaram-no no meio da lenha e atearam-lhe fogo. As labaredas subiram para o céu durante três dias, até queimar toda a lenha e, quando a fogueira se apagou, Friorento estava lá no meio das cinzas tremendo como uma vara verde.

- Nunca sofri tanto frio na minha vida! - disse ele - Se esta fogueira durasse mais um pouco, eu acabaria morrendo enregelado.

Não havia mais escapatória. A bela princesa foi obrigada a casar-se com o jovem desconhecido. A caminho da igreja, a velha lamentou-se:

- Não posso suportar esta vergonha!

E mandou o exército ao seu encalço, com ordens de estraçalhar quem encontrassem pela frente e trazer- lhe de volta a filha.

Mas Ouvidofino, que ficara a escutar, ao ter conhecimento desta ordem secreta da velha, disse ao Gordão:

- Que faremos?

Este não teve um minuto de hesitação, vomitou atrás da carruagem dos noivos a água do mar que havia engolido, formando um grande lago, onde os soldados se precipitaram e morreram afogados.

Ao saber disso, a feiticeira expediu os seus couraceiros, mas Ouvidofino ouvira a ordem e, em seguida, o barulho das armas, então tirou a venda dos olhos do companheiro e este com o olhar fulminou todos os inimigos, espatifando-os como se fossem de vidro.

Os noivos, então, puderam seguir para diante sem dificuldades e, quando receberam a bênção nupcial na igreja, os criados despediram-se deles, dizendo ao príncipe:

- Estão cumpridos os vossos desejos. Já não precisais de nós. Agora vamos pelo mundo em busca da felicidade.

A uma meia hora antes do castelo, havia uma aldeia e lá estava um guardador de porcos vigiando a vara. Quando chegaram lá, o príncipe disse à mulher:

- Sabes quem sou? Não sou um príncipe, mas sim um guardador de porcos. Aquele que aí está é meu pai. Nós devemos ajudá-lo no trabalho e guardar os seus porcos.

Apearam da carruagem diante de uma hospedaria e o príncipe segredou aos hospedeiros que, durante a noite, levassem os trajes suntuosos da princesa e os escondessem.

Pela manhã, quando a princesa despertou, nada encontrou para vestir, então a hospedeira deu-lhe um vestido velho e um par de meias de lã estragadas, com o ar de quem estava a fazer um presente régio, dizendo:

- Se não fosse pelo vosso marido, eu não vos daria nada.

A princesa acreditou, realmente, ter-se casado com um guarda-porcos. Passou a ser guardadora juntamente com o marido, mas ia pensando: "Bem mereci tudo isto, por causa da minha soberba e presunção!."

Essa situação durou oito dias e ela já não podia mais, porque estava com os pés tremendamente feridos. Ao cabo dos oito dias, apareceram uns desconhecidos, que lhe perguntaram se sabia quem era seu marido.

- Sei, sim! - respondeu ela - É um guarda-porcos! Acaba justamente de sair para ir vender umas correias e algumas fitas.

Os desconhecidos, então, disseram-lhe:

- Vem conosco, vamos para onde está teu marido.

E levaram-na para o castelo. Quando ela entrou no salão de honra, deu com o marido ricamente ataviado com os trajes reais. Assim, de momento, não o reconheceu, até que o príncipe, tomando-a nos braços e beijando-a lhe disse:

- Sofri muito por tua causa, por isso tiveste que sofrer um pouco por mim.

Depois disso, prepararam uma grandiosa festa para celebrar as núpcias e, quem esta história contou, bem quisera ter estado lá.

Fonte:
Contos de Grimm

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Caldeirão Poético XIV



A BOCA 

A boca,
onde o fogo 
de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?) 
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.

Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser 
se a luz é tanta,
como se pode morrer?


DEFICIÊNCIA "VISUAL"

Um sujeito apaixonado
Parece não enxergar
Com distinção e clareza;
Pois diz ser uma “beleza”
A "feia", que tem no lar.

Ao meu oftalmologista
Pedi uma explicação:
Doutor, me dê uma pista;
Será que tem jeito a "vista"
Do apaixonado em questão?

Respondeu meu oculista,
Que da visão é doutor:
No caso particular,
Não vejo como explicar
Esta "cegueira de amor"!

Aos olhos da medicina
Não vejo uma explicação
Porém dou o meu palpite:
Deve ser uma "neurite"
Nos olhos do coração!


ACORDAR TARDE

tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia


PODER

Posso indicar o mar como consolo
a vista como alcance e a companhia
como distração. Mentir amizades
e razões. Dialogar palavras
de desengano.

Posso ficar no silêncio
de escuros quartos. Desdenhar
o esquecimento e omitir
fatos desenhados.

Posso refazer as paredes
e entre tábuas enxergar
o lado de fora.


AMIGO

Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!

Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!


S I L Ê N C I O

Quando eu pensei que tudo estava certo...
eis que você, na calma de serpente,
virou meu mundo assim tão de repente
numa miragem plena de um deserto.

Meu pensamento sóbrio, tão presente,
não alertou-me como estava perto
um coração fechado... e bem aberto
à pequenez de um sopro tão latente!

Me refazendo aos poucos, fui olhando
nas passarelas de um mundo nefando
desfiles frágeis, quem olha e não vê.

Hoje agradeço sua insensatez
silenciando o vazio de vez
feliz por mim e triste por você!


ANJO ÉS

Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher.

Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua frente anuviada
Não vejo a c'roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
Vela os mistérios d'amor.
Teus olhos têm negra a cor,
cor de noite sem estrela;
A chama é vivaz e é bela,
Mas luz não tem. - Que anjo és tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?

Não respondes - e em teus braços
Com frenéticos abraços
Me tens apertado, estreito!...
Isto que me cai no peito
Que foi?... Lágrima? - Escaldou-me...
Queima, abrasa, ulcera... Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De onde?
Em que mistérios se esconde
Teu fatal, estranho ser!
Anjo és tu ou és mulher?


APENAS VI DO DIA A LUZ BRILHANTE

Apenas vi do dia a luz brilhante
Lá em Setúbal no empório celebrado,
Em sanguíneo caráter foi marcado
Pelos Destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros a morte doravante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
Segui Marte depois, e em fim meu fado
Dos irmãos e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da pátria, longe da ventura,
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.


COM CERTEZA!

Meus amigos de infância e de folguedos, 
já não os vejo há mais de uns oitenta anos;
se foram..., e até deixaram os seus brinquedos...
Será que carregaram os desenganos?

Meus colegas de escola e seus enredos
de amor, de sonhos e de lindos planos
sumiram todos com os seus segredos...
Nem gosto de saber..., me causa danos!

Quem nem chegou à aposentadoria,
também sumiu!  Que coisa! Que agonia!
Quase ninguém ficou..., mas que tristeza!

Sinto  saudades, em Dois de Novembro,
de quase todos eles eu me lembro...
- Mas no Céu nos veremos, com certeza!

Vinicius de Moraes (De Pombos e de Gatos)


Um dos meus grandes encantos em Florença, onde, em 1952, passei cerca de um mês, era ver da janela do meu quinto andar, no Hotel Nazionale, a madrugada toscana romper sobre a Piazza Santa Maria Novella. Habituei-me de tal modo a isso que, nos meus hábitos de noctâmbulo, esticava a noite até o amanhecer, só pelo prazer de ver a luz rósea do sol florentino descobrir e incendiar os mármores da fachada da igreja de Santa Maria Novella, bem como o claustro verde que fica à sua esquerda e as elegantes arcadas do fundo, onde existem as terracotas de Andrea e Giovanni della Robbia. Mas o prazer desse minuto de luz acabaria por resultar monótono, não se lhe seguisse um dos mais extraordinários divertissements a que já me foi dado assistir, misto de balé, cinema e circo romano, sem falar que cheio de ensinamentos sobre a vida e arte de viver perigosamente. 

O caso é que, aos primeiros vestígios de luz, começava-se a ouvir por ali em torno um brando ruflar de asas que, com o despontar do Sol, crescia num espesso burburinho ao qual vinham se unir doces arrulhos. E o ambiente, em suas cores rosa, verde, laranja e terracota, adquiria uma maciez de plumas, e logo asas brancas e trigueiras começavam a tatalar em largos voos e algumas desciam em voos rasantes, e toda uma população de pombos, habitantes daqueles mil escaninhos, como só pode proporcionar à arquitetura antiga, vinha pousar na praça. 

A coisa ficava assim por uns poucos minutos, e em breve apareciam, infalivelmente, no belo logradouro, três padres e cinco gatos. Cabe dizer, em nome da verdade, que os padres chegavam bem menos sorrateiramente que os gatos e, estou certo, com intenções muito menos maléficas, pois se vinham os padres para se aquecer um pouco ao sol e ler seus breviários, os gatos surgiam, esgueirando-se das ruas laterais, para cumprir uma fatalidade do seu destino, que é de comer pombos. E com a malícia que lhes é peculiar, colocavam-se pacientemente em posições estratégicas, sob automóveis encostados ao meio-fio, à espera do momento azado para o bote. 

Deus sabe que, entre gatos e pombos, eu sou francamente pela primeira espécie. Acho os pombos um povo horrivelmente burguês, com o seu ar bem-disposto e contente da vida, sem falar na baixeza de certas características de sua condição, qual seja a de, eventualmente, se entredevorarem quando engaiolados. Mas no caso especial da piazza de Santa Maria Novella, devo confessar que era torcida incondicional dos pombos, e só passei a torcer pelos gatos no final, quando, defrontado com a realidade de sua terrível humilhação, e provável neurose subsequente, achei que não faria nenhuma falta à comunidade o desaparecimento de uma meia dúzia de columbinos, em beneficio do sistema nervoso dos pobres gatos. Pois era quase doloroso ver o fracasso constante de suas desesperadas tentativas de caçar um pombinho que fosse. E garanto que eles empregavam todas as técnicas tradicionais dos gatos, desde a paciente emboscada, até a carreira às cegas, com saltos desordenados para todos os lados. 

Tudo em vão. Porque, a cada arremetida, os pombos limitavam-se a dar pequenos voos que criavam verdadeiros túneis para os gatos, que os percorriam em furiosas e inúteis investidas. E o pior é que cada pombo, passado o rojão, pousava como se nada tivesse havido, e continuava na sua estúpida ciscação do chão da praça, na mais total indiferença diante de seu velho inimigo. Coisa que, positivamente, devia deixar os gatos loucos. Haja visto um que um dia eu vi, depois de numerosos ataques frustrados, a morder como um possesso o pneu de um Chevrolet, e por cuja sanidade mental não poria da maneira alguma a mão na Bíblia.

Fonte:

Gerson Cesar Souza (Poemas DiVersos)


DONA DO MEU CORAÇÃO

1. Onde o Brasil é mais Sul,
Onde o vento sopra frio
Onde o céu é mais azul
Onde o Sol encontra o Rio
Onde as noites duram mais
Há uma Cidade formosa
Que é Leal e Valorosa
Porto eterno dos Casais.

Porto Alerta, Porto Certo,
Porto de Início e de Fim
Para o mundo um Porto Aberto
Porto Alegre para mim.

2. Onde a praia virou Rua
E a Usina virou cultura
Onde a história continua
Na tradição que perdura
Há um Porto onde a paixão
Me faz ficar ancorado
Capital do meu Estado
Dona do meu coração.

MELODIA

Os filhos são quais notas musicais
de uma canção que na vida tocamos.
Mas como os sons, depois que os libertamos
não há maneira de prendê-los mais.

E quando vão ao mundo, é que notamos
que nossa “afinação” deixa sinais,
os filhos são espelhos de seus pais,
nos bons e maus exemplos que ora damos.

Por isso o nosso orgulho mais profundo
é ver um filho, nos “palcos” do mundo
viver sua “canção” com harmonia.

Sempre que um filho, em sua caminhada,
escolhe a trilha honesta e afinada
a nossa vida ganha melodia.

FILHO PRÓDIGO

Um dia resolvi ganhar a estrada...
Ardia em mim uma revolta interna,
busquei nas ruas a vida moderna,
andei sem rumo, sem rota traçada...

E em cada noite, no bar, na taberna,
uma amizade falsa era encontrada.
Fui enganado... e ao ficar sem nada
restou-me o rumo da casa paterna.

E ao encontrar, justo ao abrir a porta,
o beijo doce, o abraço que conforta,
fui entendendo, após andar demais:

Mesmo que os filhos vivam a vagar
eles somente vão chamar de “LAR”
a casa onde reside o amor dos pais!

LEGADO

Das coisas que ficaram na distância
Eu lembro bem, que lá na minha infância
Meu pai abria livros para mim...
Com lobos, com porquinhos e com fadas
Eram histórias simples e engraçadas
E todo mundo era feliz no fim!

Os livros eram sempre amarelados
Por serem tanto velhos quanto usados,
Trocados por centavos... Coisa assim...
Porém, em cada livro que eu pegava,
A minha mente livre viajava!
Meu pai abria livros para mim...

Passou o tempo... E a força do destino
Deixou pra trás os livros de menino
Me transformando em um homem maduro.
Porém, agora, entendo o seu legado,
Meu pai, abrindo livros no passado,
Abriu pra mim as PORTAS DO FUTURO.

POEMA PARA MINHA MÃE

Queria dar-te o que é teu por direito:
a poesia bem metrificada
feita com rima rica e rebuscada
e que outra igual, jamais se tenha feito.

Queria dar-te o verso mais perfeito,
criar aquela estrofe iluminada
que fosse bela, simples e inspirada
nesta emoção que mora no meu peito.

Mas sabes, mãe, nenhuma poesia
vai conseguir dizer o que eu queria,
porque este sentimento que é tão meu

somente o coração pode guardar.
E o coração eu não posso te dar...
Não posso dar-te o que sempre foi teu!

CAMINHOS

Eu vivo andando em diversos caminhos
estradas longas, num país gigante.
Eu busco o novo a cada novo instante,
enfrento a dor e destinos mesquinhos.

Se a vida impõe o rumo dos sozinhos,
busco um amigo em cada alma errante,
como uma flor, que encontra o viajante
ao caminhar entre as pedras e espinhos.

Colhendo amigos, planto o meu futuro,
descubro neles o porto seguro
para ancorar as dores da saudade.

Quem tem as malas prontas pra partida
será feliz ao navegar na vida
quando encontrar o cais de uma amizade.

Fonte:
Gérson César Souza. Dons DiVersos. 
Cachoeirinha/RS: Texto Certo.