sábado, 20 de janeiro de 2024

Filemon Martins (Aquarela de Trovas) 28

 

Mensagem na Garrafa – 85 -

Oração Celta

Que jamais, em tempo algum, o teu coração acalente ódio.

Que o canto da maturidade jamais asfixie a tua criança interior.

Que o teu sorriso seja sempre verdadeiro.

Que as perdas do teu caminho sejam sempre encaradas como lições de vida.

Que a música seja tua companheira de momentos secretos contigo mesmo.

Que os teus momentos de amor contenham a magia da tua alma eterna em cada beijo.

Que os teus olhos sejam dois sóis olhando a luz da vida em cada amanhecer.

Que cada dia seja um novo recomeço, onde tua alma dance na luz.

Que em cada passo teu fiquem marcas luminosas de tua passagem em cada coração.

Que em cada amigo o teu coração faça festa, que celebre o canto da amizade profunda que liga as almas afins.

Que em teus momentos de solidão e cansaço, esteja sempre presente em teu coração a lembrança de que tudo passa e se transforma, quando a alma é grande e generosa.

Que o teu coração voe contente nas asas da espiritualidade consciente, para que tu percebas a ternura invisível, tocando o centro do teu ser eterno.

Que um suave olhar te acompanhe, na terra ou no espaço, e por onde quer que o imanente invisível leve o teu viver.

Que o teu coração sinta a presença secreta do inefável!

Que os teus pensamentos e os teus amores, o teu viver e a tua passagem pela vida, sejam sempre abençoados por aquele amor que ama sem nome.
Aquele amor que não se explica, só se sente.

Que esse amor seja o teu acalento secreto, viajando eternamente no centro do teu ser.

Que este amor transforme os teus dramas em luz, a tua tristeza em celebração e os teus passos cansados em alegres passos de dança renovadora.

Que jamais, em tempo algum, tu esqueças da Presença que está em ti e em todos os seres.

Que o teu viver seja pleno de Paz e Luz!

Isabel Furini (Esse bêbado!!!)

Maria foi visitar sua prima Cláudia, que morava em um prédio de esquina de uma avenida movimentada. Na porta do prédio havia um bêbado sentado nos degraus. Maria sentiu medo dele e voltou para sua casa.

À tarde, foi ministrar aulas de pintura. Na saída falou sobre o bêbado com Cidinha, a mulher da limpeza, que estava passando o esfregão pela escada. Cidinha disse:

– Meu pai era bêbado...lembro-me de que chegava em casa cambaleando.... falando sozinho, sem nexo. Minha mãe gritava. Tenho trauma da época de infância.

– Entendo – compadeceu-se Maria – deve ser terrível ter um pai bêbado. Você deve guardar recordações terríveis dele.

Recordações ruins de meu pai? Não! Você não está entendendo, Maria, meu pai era maravilhoso... Eu tenho recordações ruins é de minha mãe.

Maria, com os olhos esbugalhados, ficou olhando a mulher da limpeza.

– Sim, meu pai era bêbado, falava demais... só isso. Eu tenho recordações terríveis de minha mãe. Ela gritava, xingava, reclamava. Era uma mulher insuportável...

Maria chegou à sua casa um pouco confusa. Era uma mulher preconceituosa e sempre havia odiado bêbados. Mas, e agora?…

Fonte> https://isabelfurini.blogspot.com/search/label/Cr%C3%B4nica

Luiz Damo (Trovas do Sul) LV


A mão que o jardim permeia
lança olor sem avareza.
Sensitiva, a alma o semeia,
com brio, brilho e beleza.
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A música seduz a alma
e o cantar o ser sublima,
cada som a dor acalma
sendo de Deus obra prima.
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A ave presa, só cantava,
para esconder a tristeza,
se falasse suplicava:
– Me solte na natureza.
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Ao se constatar um crime
o autor deve ser punido,
que à justiça o mundo prime
dele o mal seja banido.
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Com lisura e probidade
no exercício do poder,
possa toda autoridade
ao cargo corresponder.
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Do âmago das convicções,
às razões das confidências,
sempre há rastros de ilusões
por detrás das evidências.
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É no aconchego materno
que Deus vem se revelar,
o amor nunca é subalterno
mas força sempre a velar.
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No sorriso da criança
qual flor a desabrochar,
ressurge toda esperança
para o mundo perfumar.
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No vigor da juventude
espinhos parecem flores,
na velhice, só a virtude,
pode compensar as dores.
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Numa singular bravura
os pais lutam sem parar,
dando aos filhos com ternura
o melhor para o seu lar.
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O amor puro e verdadeiro
não se humilha nem se abate,
segue firme o tempo inteiro
'combatendo o bom combate'.
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O céu sorri, com certeza,
para nós a todo instante,
se cuidarmos da beleza
deste mundo palpitante.
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O céu tão distante está.
Na terra estamos, daí?...
Pra podermos chegar lá
temos que partir daqui.
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O encontro gera sinais
de amizade e entrosamento,
assim foram nossos pais
do namoro ao casamento.
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O homem repete alguns ritos
na maior monotonia.
Triste e falso só vê mitos
deixando a alma mais vazia.
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O operário se encaminha
pelos campos a plantar,
planta luz quando caminha
colhe sombras ao voltar.
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O pernalta quero-quero
cumpre bem sua missão,
nele não tem lero-lero,
dos pampas é guardião.
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Para manter seus caprichos
o homem se torna um "felino"
e o cativeiro dos bichos
passa a ser o seu destino.
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Pela palavra 'saudade',
podemos dimensionar,
o grau de profundidade
do sublime verbo amar.
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Quando acontece a colheita
nos campos da solidão,
o fruto que mais deleita
talvez, seja a gratidão.
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Que a chuva não seja escassa
nem faça a terra inundar,
mas possa dar quando passa
a graça à vida abundar.
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Se a dor não sensibiliza
esta inquieta humanidade,
talvez o que mais precisa
seja a solidariedade.
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Sempre tem uma surpresa
para o fraco e para o forte,
a mais dura, com certeza,
são os estigmas da morte.
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Tantos bens acumulados
com um sucesso brilhante,
não suprem os dons selados
pelo amor ao semelhante.
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Tantos ninhos construídos
nos ramos ou rente o chão,
jamais sejam destruídos
por maldade ou diversão.
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Tudo na vida tem custo
mesmo a forma de falar,
tanto pode dar um susto
quanto pode se assustar.

Fontes> – Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021. Enviado pelo trovador.
– Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014. Enviado pelo trovador.

Contos e Lendas da Espanha (A pereira da Tia Miséria)

Tia Miséria era uma mulher muito pobre e já idosa, viva numa cabana nos arredores de um povoado.

Tudo o que possuía era um colchão de palha para dormir, uma velha cadeira para sentar-se e um cesto para recolher os frutos da pereira que havia no quintal. A pereira era uma árvore generosa; todos os anos dava muitos frutos, que Tia Miséria vendia. Com isso, além do que ganhava pedindo esmolas, a velha senhora conseguia se manter. 

Mas havia um problema: como as peras eram muito saborosas, os meninos do povoado vinham roubá-las, antes mesmo que amadurecessem. Assim, Tia Miséria só conseguia colher as poucas que sobravam no pé. Além do mais, como Tia Miséria era de idade avançada, não conseguia correr atrás dos meninos, por muito tempo. Tampouco podia vigiar a pereira o dia todo, pois precisava pedir esmolas e fazer os serviços da casa.

Tia Miséria também tinha um filho que se chamava Ambrosio, devido à fome que passava. Mas o rapaz já não vivia com ela. Na verdade, a velha senhora nem sabia por onde ele andava.

Tia Miséria possuía ainda um cachorro vira-latas que era sua única e fiel companhia. Às vezes, atiçava o cachorro nos meninos... Em vão, pois eles espantavam o pobre animal a pedradas.

Numa tarde de inverno, depois de uma forte tempestade de neve, um mendigo bateu à porta de Tia Miséria, que o convidou a entrar. Generosamente, dividiu com ele um pão que ganhara pela manhã. O mendigo estava muito cansado e transido de frio. Tia Miséria, penalizada, cedeu-lhe seu colchão de palha e deitou-se no chão, sobre um monte de trapos, para dormir.

Na manhã seguinte, ao ver que o mendigo se levantava para partir, ela disse:

— Espere um pouco, enquanto vou ao povoado buscar a sopa que ontem me prometeram. Assim, você poderá se alimentar, antes de ir embora. É muito ruim andar de barriga vazia.

O mendigo quis recusar, mas Tia Miséria insistiu tanto que, por fim, ele se viu obrigado a contar que na verdade era um santo do céu. E que Deus o havia enviado ao mundo para ver como as pessoas estavam praticando a solidariedade. Assim, ele viera bater à sua porta. Depois de revelar tudo isso, o mendigo disse:

— Já que você tem um coração bondoso, vou lhe conceder uma graça. Pode me pedir o que quiser.

A princípio. Tia Miséria disse que não queria nada. Mas então se lembrou de suas agruras com a pereira e decidiu:

—Já sei o que vou pedir: quem subir na minha pereira, só poderá descer quando eu autorizar.

— Assim será — respondeu o santo.

No outono do ano seguinte, quando as primeiras peras começaram a aparecer, os meninos chegaram, como sempre, para roubá-las. Subiram na árvore para colhê-las e ali ficaram, grudados, sem poder descer. Quando Tia Miséria chegou, no final do dia, deu-lhes umas boas palmadas no traseiro. E, o cachorro, umas mordidas nas pernas. Por fim Tia Miséria deixou-os ir. Os meninos fugiram apavorados.

Logo correu a notícia do que acontecia a quem ousasse subir na pereira da Tia Miséria. Desde esse dia, nenhum garoto se atreveu a roubar sequer uma pera. E, claro, como agora podia vender os frutos na época em que amadureciam, a velha senhora conseguia um dinheirinho para aliviar sua pobreza.

O tempo passou. E Tia Miséria ultrapassou os noventa anos. Um dia, bateu à sua porta um vulto que parecia ao mesmo tempo homem e mulher. Estava coberto com uma grande capa negra e trazia uma foice no ombro.

— Vamos, Miséria, que chegou sua hora — disse o vulto.

Reconhecendo a Morte, ela protestou com veemência:

— Mas, veja só! Agora que eu estava passando uns anos tranquilos, que estava vivendo tão bem com minhas quatro riquezas: a pereira, o colchão, a cadeira e o cachorro, você resolve aparecer... Francamente!

—Já chega de conversa, minha velha — disse a Morte. — Acompanhe-me, vamos.

— Mas eu não quero morrer!

Tia Miséria argumentou de todas as maneiras. Por fim, vendo que não poderia escapar, disse à Morte:

— Está bem, eu irei. Enquanto me apronto, faça-me o favor de pegar aquelas três peras que restam na pereira, pois quero levá-las na viagem.

A Morte obedeceu e subiu na árvore para colher os frutos. Mas, quando ia descer, viu que estava grudada nos galhos. Fez todos os esforços possíveis para se soltar... Em vão. Não havia como descer da pereira.

Tia Miséria, que observava tudo por trás de uma janela, disse à Morte:

— Fique aí, minha amiga, enquanto eu continuo aqui levando a vida adiante. E pode desistir de tentar, pois, sem minha permissão, você não conseguirá descer.

Alguns anos se passaram. E o mundo começou a sentir a ausência da Morte. Ninguém morria; os velhos ficavam mais velhos, os doentes ficavam mais doentes. Aqueles que, desesperados, tentavam o suicídio, acabavam apenas ficando muito feridos.

Muitos enfermos pediam aos médicos que os matassem. Os médicos, por sua vez, não davam conta de tantos pacientes e começavam a procurar um jeito para que as pessoas morressem. Nem mesmo nas guerras havia mortos.

O desespero era grande e aumentava a cada dia. Muita gente começava a odiar a vida e tentava se desfazer dela. Mas não havia como, pois a Morte estava pendurada na pereira da Tia Miséria.

Entre todos, os médicos eram os mais aflitos. Tanto, que fizeram uma reunião secreta. E então correu a notícia de que haviam decidido encontrar a Morte, custasse o que custasse.

Assim, os médicos espalharam-se pelo mundo, para procurá-la em todos os lugares plausíveis e até mesmo nos mais improváveis. Foi assim que um médico acabou passando perto da cabana de Tia Miséria, Ao vê-lo, a Morte gritou:

— Ei, doutor, venha cá!

Ele a reconheceu de imediato;

— Ora, ora, aí está você, minha cara Morte! — exclamou, louco de alegria por reencontrar aquela velha amiga.

O médico tinha motivos de sobra para tratar a Morte com tanta consideração. Pois, na verdade, muita gente já havia morrido em suas mãos. Por isso, a Morte lhe devotava uma deferência especial;

— É um prazer revê-lo, doutor.

– O prazer é todo meu. Mas por onde você andou durante esse tempo? Saiba que eu e meus colegas já percorremos meio mundo à sua procura. Agora venha comigo, pois há muito trabalho a fazer.

— Então, tire-me daqui, pois estou presa a esta pereira.

— Nem é preciso pedir duas vezes, minha amiga.

Sem hesitar, o médico subiu na pereira para ajudar a Morte a descer, mas acabou ficando preso também. Assim esteve por dias e noites, junto à Morte, até que seus familiares, que moravam por perto e estavam à sua procura, o encontraram agarrado à árvore.

Tão logo ouviram as explicações do médico, resolveram chamar outros moradores do povoado, e também o prefeito. Horas depois, uma verdadeira multidão invadiu o quintal, armada de machados, para derrubar a pereira. Nisso, Tia Miséria apareceu e gritou:

— Não me cortem esta árvore, que é o bem mais precioso que possuo no mundo!

E todos responderam;

— Teremos de fazer isso para libertar a Morte. Os doentes, velhos e feridos do mundo inteiro não aguentam mais tanto sofrimento, tanta calamidade.

— Ainda que vocês cortem a pereira, nem a Morte, nem o médico, poderão se soltar dela — disse Tia Miséria. — Portanto, eu libertarei os dois, mas com uma condição.

— Qual? — perguntou a Morte.

— Que você só venha me buscar, e a meu filho Ambrosio, quando eu chamá-la três vezes — respondeu Tia Miséria.

— De acordo — disse a Morte. — Agora me solte, de uma vez por todas.

— Está bem. — Tia Miséria deixou a Morte ir embora, junto com o médico. A multidão acompanhou-os, comemorando a volta à normalidade.

A Morte, assim que se viu livre, retomou sua função. Pessoas começaram a morrer em toda parte. Morriam aos milhares, velhos, doentes, feridos... E houve mais guerras do que nunca. A Morte quase não dava conta de tanto trabalho. Havia muito tempo que a procuravam e ela precisava atender a todos, dia e noite, sem descanso. Assim, a Morte ceifou vidas como jamais se viu antes.

Enquanto isso, Tia Miséria continuava tranquilamente em sua cabana, com sua pereira, seu colchão, sua cadeira e seu cachorro, pedindo esmolas e vendendo peras durante o outono.

E lá está, até hoje.

Tia Miséria ainda não chamou a Morte, por isso continua existindo neste mundo. Ela e seu filho Ambrosio viverão para sempre, pois não têm a menor intenção de morrer.

Fonte> Yara Maria Camillo (seleção). Contos populares espanhóis. SP: Landy, 2005.

Hinos de Cidades Brasileiras (São Vicente/SP)


Letra: Luiz Meirelles Araújo

Foi num cenário vivo de beleza
de encantos mil, de eterna luz e graça,
que a mão de Deus, brindando a natureza,
plantou o marco forte de uma raça.

E aquela terra virgem, vislumbrando
o seu porvir no céu estrelado,
ergueu o porte e altiva caminhando,
seguiu o rumo já por Deus traçado.

Assim aureolada,
na luz alvissareira,
surgiu predestinada
a célula primeira.

No verde da esperança,
no ouro da riqueza,
no azul, céu da bonança,
no branco de pureza.

O teu passado é, ó São Vicente
um monumento, altar cheio de glória,
perante o qual se curva, reverente,
um povo que conhece a tua História.

Viste o Brasil nascer, crescer gigante,
acalentando em teu amor profundo,
e transformar-se belo, radiante,
iluminado ao Sol do Novo-Mundo

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 28: Um velório confuso

O senhor Antônio se aproxima devagar, do corpo da mulher, acaricia seus cabelos e chora de maneira descompensada.

Juca e o padre pedem licença para acomodar a falecida no caixão ao centro da sala. 

Empregados da fazenda e vizinhos, lamentam profundamente a perda de uma pessoa pacífica e amável como poucas. 

- Onde tá Isadora? - pergunta o viúvo ao genro. 

- Sumiu. 

- Sumiu como? 

- Quebrou a casa toda e fugiu. 

- E não foi atrás dela, por quê? 

- Não é hora de pedir ou dar satisfações. A guria deve estar desabando sua dor com alguém. Daqui a pouco estará de volta. Podemos começar o velório? – perguntou o padre.

O senhor Antônio fez sinal afirmativo.

- Que o Deus dos vivos e dos mortos, em sua infinita misericórdia, receba a alma desta mulher, que em vida, foi um magnífico exemplo de esposa e mãe...

Enquanto o padre Orestes seguia com suas preces à beira do caixão, alguns se deixaram desconcentrar pelo cenário da casa, arrasado pela fúria de Isadora. Havia porta-retratos atirados no chão... O vidro da janela que dava da sala para a varanda, estava quebrado, e panelas com comida derramada à porta da cozinha... Uma delas inundou o ambiente com aroma de feijão. 

Fábio, constrangido, parecia colado à parede ao fundo do cômodo.  Não sabia se chorava, se falava algo, se corria atrás da mulher ou se cavava um buraco no chão para desaparecer de vez. 

O clima era de completo caos: uma morta, uma turbulenta tempestade lá fora... Tudo fora do lugar e Isadora sumida. Percebendo o clima desconfortável e os olhares, Amélia foi preparar um café.

Discretamente, Simão seguiu seus passos, e sozinhos ficaram a conversar na cozinha. Juca deu falta da esposa, e pela primeira vez sentiu o sangue ferver de ciúmes ao encontrar Amélia parecendo muito próxima e íntima do amigo. Recuou e ficou a imaginar uma suposta traição.  

Em seguida o café foi servido. E cada um acomodou-se onde pode. 

O Senhor Antônio andava de um lado ao outro, parecendo meio inconsciente do fato. E o padre, afetuoso, não saiu do lado caixão, observando tudo e a todos. 

As horas foram passando. A tempestade foi embora. Um novo dia se anunciou cheio de sol e calor. E Isadora permaneceu sumida. 

- “Arguém” tem que dá um jeito de achar minha “fia”. Como "vamo" pro cemitério sem ela? 

Fábio e Juca não a encontraram...  Nem dentro e nem fora da fazenda. E o enterro de dona Ana foi realizado sem a presença da filha.
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continua...

Fonte>Enviado pela autora

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Adega de Versos 118: Raymundo Salles (Salvador/BA)

 

Mensagem na Garrafa = 84 =

Autor Desconhecido

A AMIZADE

Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade. 

Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. 

Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta. Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. 

Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. 

Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. 

Não quero amigos adultos, nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice. Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto, e velhos, para que nunca tenham pressa. 

Tenho amigos para saber quem eu sou, pois vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão boba e estéril.

Antonio Brás Constante (As brigas conjugais através de um jogo de xadrez)

 
Se para alguns o casamento é um jogo de cartas marcadas, poderíamos descrever as brigas conjugais como os movimentos das peças de um jogo de xadrez. As desavenças podem ter seu princípio quando uma rainha resolve atacar o rei (algumas vezes se referindo a problemas envolvendo um cheque ou o contra-cheque), ou ainda por causa de um rei egocêntrico, que gosta de se achar a peça mais importante da partida, sacrificando a felicidade da própria rainha em nome de seu bem-estar egoísta.

As brigas têm etapas de certa forma definidas, mas pouco definitivas. Podem começar com um silêncio ensurdecedor. Os jogadores (marido e mulher) quase nem se olham nos olhos. Ficam esperando o melhor momento para dar o lance inicial, até que um deles resolve mover o primeiro peão da troca de palavras, numa tentativa de avançar rumo à guerra ou de se chegar a um ponto de paz.

Logo se armam as torres, como muralhas de ódio entre os dois, e cuja visão que só enxerga em linha reta. Um ataque direto. Cego para as nuances em sua volta. A função da torre nas brigas é impedir qualquer aproximação, esconder sentimentos, isolando os amantes em casulos de solidão.

A partir deste estágio surgem os cavalos, dando coices e patadas mortais em qualquer relacionamento. A discussão assume um andar torpe, que ataca pulando por cima de qualquer chance de proteção, lançando-se de forma suicida feito um animal ensandecido. Os cavalos deveriam ser chamados de cobras, pois parecem sempre prontos para dar o bote. Esmagando e pisoteando qualquer tentativa de dialogo. Movendo-se como peças loucas pelo tabuleiro da vida.

O jogo vai piorando a cada instante. Então surgem os bispos, correndo de lado, fulminando com olhares atravessados, em seus movimentos eternamente separados, sem se tocar. Eles transpassam todas as defesas, e sem qualquer sinal de piedade, buscam atingir sempre o coração. Muitas vezes, tudo termina em meio ao movimentar intransigente destas peças, deslocadas através do rancor, dúvidas e decepção.

Mas é quando a poeira baixa e todas as demais peças caem, que enfim podem ficar frente-a-frente rei e rainha, faces opostas de uma mesma moeda. Neste momento, se o amor falar mais forte que o desafeto, talvez ambos percebam o quanto estavam errados ao tentar tomar o espaço do outro no tabuleiro. Quem sabe até entendam que não são rivais mortais, e sim parceiros em busca de um mesmo objetivo. A partir deste momento um novo jogo tem início, agora com o rei e sua rainha andando lado-a-lado, cercados de outras regras, forjadas com promessas repletas de felicidade. Assim a partida termina e a união recomeça, selada com um beijo declarando a vitória no empate. XEQUE-MATE.

Daniel Maurício (Poemininos) – 3

Ao
Precipitar-se
Sobre
A teia,
A senhora
Neblina
Arrebentou
Seu
Colar
De pérolas.
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Cansado
De ser folha,
Foi asa...
Voou com o vento
Descortinando
Novas paisagens.
Exausta,
Rodopiou mansinho
Sonhando
Que o redemoinho
Era uma antiga
Canção de ninar.
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Domingo...
Na sombra
Improvisada
Os patos
Batem papo
Esperando
O sol
A se banhar.
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Encantamento...
Ao toque
Do amor,
A alma
Dança
Leve
De
Contente.
= = = = = = = = = 

Entre
Os cachos
Da
Bougainville*
Reservo
Meus beijos
No teu olhar.
= = = = = = = = = 

Formosura..
A espera
Do noivo,
Com véu
E grinalda
A árvore
Se olha
No espelho
Do rio.
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Guiando estrelas,
O pequeno draco
Esqueceu
De voltar
Pra casa.
Ficou
Eternamente
Na constelação
Do coração
Da sua amada.
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Não importa
A cor das asas
O importante
É querer voar.
Sem bagagens
Sem
Preconceitos,
Porque o sonho
Logo ali
Pode estar.
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Na tarde
De inverno
Ao arar
O céu
O sol
Deixou
Pra trás
Pequenas
Flocos
De algodão.
= = = = = = = = = 

Ponteando
Sonhos
Com os fios
Do destino,
A aranha
Ágil
Desenha
A sua
Própria
Mandala.
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Pureza...
A alma
De tão pura,
Não cabia
Dentro do espelho
Mas, o "eu posso"
De todos os dias,
Faz
O pequeno
Estufar
O peito.
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Um céu
De flores
Encanta
A borboleta
Que
Ao perceber
Meus olhos
Enamorados,
Esquece
De voar.
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Um navegador, escritor e matemático francês no século 18 percorria mares e continentes à procura de riquezas para o seu reino. Ouro, prata, pedras preciosas, alimentos e plantas eram o alvo de sua pesquisa. Junto com ele, viajava uma comitiva que o apoiava em tudo. Como membro desse grupo, estava um grande botânico que tinha o dom especial de encontrar plantas que seriam sucesso na Europa e em outros locais do mundo afora.

E assim foi que por volta de 1767, esses navegadores chegaram ao Brasil motivados pela rota de novidades da época. O sensível botânico logo descobriu, em pleno Rio de Janeiro, uma linda planta com flores de cor forte, que duravam muito tempo. Quase de imediato, ele mostrou a planta para o amigo matemático que ficou simplesmente encantado pelo vigor daquele vegetal. O nome desse navegador era Louis Antoine de Bougainville e em sua homenagem, o botânico batizou a planta. (Trapp. Clube da Jardinagem)

Fonte: Daniel Maurício. Poemininos. Curitiba/PR: Ed. do Autor, 2021. Enviado pelo poeta.

Hinos de Cidades Brasileiras (Taubaté/SP)


letra por Péricles Nogueira Santos

Taubaté das Bandeiras - que ousaram
desbravar ínvias selvas, com glória.
Taubaté, cujos filhos não param,
sempre em marcha nas asas da História.
Taubaté das Moções, na erradia
epopeia por rios e lapas,
qual titã a fazer Geografia,
implantando fronteiras nos mapas!

A louvar-te, com ânsia,
tanjam todos os sinos...
Vens de longa distância,
vais a altos destinos.

Quando outrora o café, soberano,
todo em ouro, qual Midas, floria
alto nível o clã taubateano,
de riqueza, se alteando, atingia.
E tal é o poder, que então goza
(decantado, na época, em aulo)
que a cidade chegou poderosa,
a se sombrear com a própria São Paulo!

A louvar-te, com ânsia,
tanjam todos os sinos...
Vens de longa distância,
vais a altos destinos.

E hoje, rica e industrial, o esplendor
a ostentar de moderna cidade,
tens no ensino tal vulto e labor
que és, inteira, uma só faculdade!
Mas, sem ti o progresso se espalma
e em concreto te elevas, heril,
és a mesma cidade com alma
que nasceu no alvorar do Brasil!

Contos e Lendas da África (O tambor mágico)


por Robert Hamill Nassau

PERSONAGENS
Kudu (Cágado)
Rei Maseni (homem)
Njâ (Leopardo)
Ngâmâ (tambor mágico)

PREFÁCIO
Este conto explica a razão pela qual a tribo dos cágados vive somente na água.
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Antigamente, a humanidade e todas as tribos de animais viviam juntos em uma única nação. Construíam suas aldeias e moravam todos no mesmo lugar. No país do Rei Maseni, o Cágado e o Leopardo ocupavam a mesma cidade; cada um em uma extremidade da rua.

O Leopardo tinha duas esposas e o Cágado também.

Aquela região do país sofria com escassez de comida. A fome castigava todas as tribos. O Rei Maseni estabeleceu uma lei dizendo que toda caça ou comida encontradas deveriam ser levadas até ele — para que assim fossem divididas igualmente. Também colocou soldados para vigiar todo o país. 

A fome só aumentava. As pessoas, sem esperança, não sabiam o que fazer e muitos morriam de fome. Assim como hoje, esse é um mal que aflige os povos pobres, não somente da África, mas também nas terras do Manga-Manĕne (terra dos homens brancos).

Os dias se passavam sem que ninguém encontrasse uma solução. Certo dia, o Cágado saiu cedo de sua casa e adentrou a selva, procurando um tipo especial de alimento: cogumelos.

— Vou seguir pela praia na direção sul — avisou à sua esposa.

Caminhou até encontrar um grande rio, com quilômetros de largura. Havia um coqueiro em uma das margens e, quando o Cágado se aproximou para examinar melhor, viu que estava repleto de cocos.

— Estou morto de fome, vou subir pelo tronco e apanhar os frutos — disse a si mesmo.

Colocou sua bolsa de viagem no chão e imediatamente subiu na árvore. Colheu dois e os jogou ao chão. O terceiro escorregou de sua mão e caiu no rio que corria ao lado.

— Com a fome que tenho, não deixarei um coco se perder na água! — exclamou o Cágado. — Vou mergulhar atrás dele.

E saltou para a água — tchibum! Afundou no local onde o coco havia caído, mas ambos foram apanhados pela correnteza e levados por uma boa distância até chegarem a uma curva na qual o leito se alargava criando uma praia. Mais adiante havia um vilarejo desconhecido onde erguia-se uma grande casa. Haviam pessoas ao redor e dentro dela. As que estavam fora chamaram o Cágado, e ele pôde ouvir alguém gritando lá de dentro:

— Leve-me! Leve-me!

(Era um tambor falante.)

Uma mulher dava banho em uma criança na beira do rio e perguntou:

— O que o traz aqui, Kudu? E para onde está indo?

— Minha cidade está sofrendo com a escassez — explicou o Cágado. — Por isso fui à floresta procurar cogumelos. Subi em um coqueiro. Comecei a colher os cocos e deixei um cair no rio. Pulei atrás dele e cheguei aqui.

— Então você encontrou sua salvação, Kudu! — respondeu a mulher. — Vá até aquela casa. Lá você vai encontrar uma coisa. É um tambor. Vá pegá-lo agora.

Uma das pessoas do povoado acrescentou:

— Você verá várias dessas coisas lá dentro. Não pegue o tambor que fica dizendo “Leve-me, leve-me”. Você deve escolher o que não diz nada o que apenas emite o som “wo-wo-wo”. Leve-o com você e amarre-o no tronco do coqueiro. Então diga a ele: “Ngâmâ! Faça como lhe mandaram!”.

O Cágado seguiu essas instruções. Entrou na casa, apanhou o tambor e levou-o à beira do rio onde a mulher estava.

— Faça um teste primeiro, para aprender a usá-lo. Bata! — instruiu ela. 

Quando o Cágado fez isso, instantaneamente surgiu uma mesa com vários tipos de comida. Após comer, disse ao tambor:

— Guarde!

E a mesa desapareceu.

O Cágado levou o tambor diretamente para o coqueiro. Amarrou-o ao tronco com uma corda de fibra e então ordenou:

— Ngâmâ! Faça como lhe mandaram!

No mesmo instante, do tambor surgiu uma longa mesa, com vários tipos de comida. O Cágado ficou muito feliz com toda aquela abundância. Comeu até se fartar e repetiu a ordem:

— Ngâmâ! Faça como lhe mandaram!

O tambor recolheu a mesa, mas deixou um pouco de comida ao pé do coqueiro. Depois, voltou para as mãos do Cágado. Kudu colocou os alimentos em sua bolsa, junto com os cocos que havia apanhado de manhã, e tomou o caminho de volta para casa. Parou quando estava quase chegando à cidade. Estava tão encantado com os poderes do tambor que fez mais um teste. Bateu no instrumento outra vez. Novamente uma grande mesa cheia de comida apareceu. O Cágado comeu uma vez mais e guardou mais um pouco em sua bolsa. Virou-se para uma árvore que havia o lado e ordenou:

— Curve-se!

A árvore obedeceu e ele amarrou o tambor em um galho. Ao chegar na cidade, deu os cocos e cogumelos a suas esposas e filhos. Quando entraram todos em casa, sua esposa principal perguntou:

— Onde você esteve todo esse tempo?

— Fui até a praia tentar colher cocos — justificou-se ele. — E encontrei muitas coisas boas. Veja!

Abriu a bolsa e tirou batatas, arroz e carne.

— Podemos comer, mas Njâ não deve saber disso.

Então ele, suas esposas e filhos fizeram uma grande refeição. O dia escureceu logo e foram todos dormir. O novo dia não tardaria. Ao amanhecer, o Cágado voltou ao lugar onde havia deixado o tambor. Logo que chegou à árvore, ordenou:

— Ngâmâ! Faça como lhe mandaram!

O tambor rapidamente desceu ao chão e fez aparecer uma mesa farta. O Cágado comeu parte da comida até matar sua fome, depois colocou o restante em sua bolsa. Então deu outra ordem:

— Guarde tudo!

O tambor recolheu as coisas e voltou ao galho. No dia seguinte, ao amanhecer, o Cágado retornou à árvore e repetiu suas ordens. Alguns dias mais tarde, enquanto se dirigia para o esconderijo do tambor, seu filho mais velho o seguiu, pois estava curioso para saber como o pai conseguia tanta comida. Quando o Cágado chegou à árvore, seu filho se escondeu e ficou imóvel, observando. Kudu deu o comando novamente:

— Curve-se!

E a árvore obedeceu. O jovem testemunhou tudo, a forma como seu pai apanhou o tambor, bateu e ordenou “Faça como lhe mandaram”.

A mesa surgiu mais uma vez e Kudu sentou-se para comer. Ao terminar, mandou a árvore se curvar e amarrou o tambor no galho. O tronco então se endireitou novamente.

Aquilo continuou por mais alguns dias. O Cágado ia até a árvore, repetia o mesmo processo, comia e voltava para casa, sempre levando comida para sua família. Seu filho, de tanto observar escondido, já sabia o que seu pai fazia. Então foi sozinho até a árvore e disse:

— Curve-se!

E a árvore dobrou seu tronco. O jovem repetiu os comandos de seu pai e o tambor fez surgir a mesa. Depois de comer, ordenou:

— Guarde tudo!

A mesa desapareceu. O rapaz apanhou o tambor e, em vez de amarrá-lo no galho, levou-o escondido para sua casa. Sem que seu pai soubesse, chamou todos os outros membros da família. Juntaram-se todos na casa e ele repetiu os comandos ao tambor. A comida surgiu e, terminada a refeição, o jovem ordenou ao instrumento que guardasse tudo de volta.

Naquele dia, o Cágado tinha ido à floresta procurar pelos cogumelos de que ele e sua família tanto gostavam.

— Antes de voltar à cidade, vou passar no esconderijo para comer — pensou em voz alta.

Ao se aproximar da árvore, ainda a uma certa distância, viu que ela estava reta como de costume, mas o tambor havia sumido.

— Será que esta árvore está me pregando uma peça? — exclamou.

Então foi até ela, e de fato o tambor não estava mais lá. Ainda tentou dar seu comando:

— Curve-se!

Mas nada aconteceu. Voltou à cidade, apanhou seu machado e voltou ao local.

— Curve-se ou cortarei você! — ameaçou.

A árvore permaneceu imóvel. O Cágado começou a golpeá-la com seu machado até que ela caiu ao chão com um estrondo.

— Me dê o tambor ou farei você em pedaços!

Cortou a árvore em diversas partes, mas não encontrou o tambor. Decidiu voltar à cidade e, ao caminhar, pensava ansioso, “Quem terá feito isso?’

Chegou em casa tão desgostoso que não quis falar com ninguém. Então seu filho mais velho foi até ele e disse:

— Meu pai, por que está tão calado? O que aconteceu na floresta?

— Não quero conversar — respondeu Kudu.

— Você nos trouxe cogumelos, mas ficava mais feliz quando trazia comida para nós. Fui eu que peguei o tambor.

— Meu filho, traga-o aqui agora! — mandou o Cágado.

O jovem foi pegá-lo em um quarto dos fundos e depois chamou os outros membros da família. Reuniram-se todos na casa e deram ordens ao tambor. A mesa apareceu como sempre e todos comeram. Os filhos menores estavam tão animados que, ignorando o pedido de seu pai, levaram sobras de batata e carne para comer na rua. Outras crianças viram e pediram um pouco. Entre elas estavam os filhos do Leopardo, que foram mostrar a comida ao pai. Na mesma hora, o Leopardo foi até a casa do Cágado e encontrou toda a família a se fartar.

— Amigo! O que você está fazendo é errado! — acusou o felino. — Minha família passa fome enquanto vocês se fartam.

— Não temos mais nada hoje, mas volte amanhã e dividiremos com você — respondeu Kudu.

O Leopardo então voltou para sua casa.

A noite logo veio e todos se deitaram para dormir. Na manhã seguinte, bem cedo, o Cágado saiu à rua e anunciou:

— Ninguém, seja da família de Njâ ou da minha, irá à floresta hoje. Comeremos aqui juntos!

E foi sozinho até o coqueiro (onde, durante a noite, havia levado o tambor sem que ninguém visse). Quis fazer um teste para confirmar que o instrumento não havia perdido seu poder por ter sido usado na cidade. Então deu os comandos de sempre, que foram prontamente atendidos. Voltou para a cidade com o tambor nos ombros, à vista de todos, e foi direto à casa do Leopardo.

— Chame toda sua família! — pediu Kudu.

Todos foram à casa, inclusive os familiares do Cágado. Sob as mesmas ordens, o tambor fez aparecer uma mesa com abundância de comida. Depois de todos comerem, a mesa foi recolhida. O tambor ficou na casa do Leopardo por duas semanas. Usavam-no de maneira tão excessiva que o instrumento se aborreceu e, exaurido, não produzia mais nenhuma comida.

O Leopardo então foi falar com o Cágado:

— O tambor não faz mais comida. Arranje outro.

Kudu ficou irritado com o mau uso de seu tambor, mas ainda assim o pegou e o guardou em sua casa.

Os soldados do rei ouviram rumores de que o Leopardo escondia comida em sua casa e foram interrogá-lo:

— De onde vieram os alimentos que suas crianças estão comendo?

— Pegaram com os filhos de Kudu — respondeu o Leopardo.

Os vigias voltaram imediatamente ao palácio do Rei Maseni e relataram:

— Encontramos uma pessoa que guarda comida.

— Quem? — perguntou o rei.

— Kudu.

O soberano mandou chamá-lo. Os soldados foram até a casa do Cágado e anunciaram:

— O rei exige sua presença.

— O que eu fiz para que o rei me chamasse? Desde que moramos neste país, ele nunca quis falar comigo.

Mesmo assim, Kudu resignou-se e foi até o palácio real.

— Você anda estocando comida enquanto todas as famílias passam fome? — o rei esbravejou. — Traga tudo o que tiver para cá!

— Peço perdão, majestade, mas não conseguirei trazer hoje — desculpou-se o Cágado. — Convoque todas as famílias amanhã.

Na manhã seguinte, o rei mandou tocar o sino e anunciar que qualquer pessoa, de qualquer idade, deveria ir até o palácio para um banquete. Todos os animais foram até a cidade do rei, inclusive o Cágado, levando seu tambor. Seus parentes distantes, sem saber da existência e poderes do tambor, perguntaram se haveria dança.

Dentro do palácio real, o Cágado ergueu o tambor e, com uma forte batida, ordenou:

— Que apareçam todos os tipos de comida!

E assim aconteceu. Surgiu uma mesa que se estendia por toda a cidade, com uma imensa variedade de pratos. Todos os animais comeram o quanto conseguiram e depois foram embora. O Cágado guardou seu tambor e voltou para casa. Ao chegar, pediu para que sua família se reunisse. Bateu novamente no tambor. Não houve nenhum som e nada saiu dele. Bateu novamente. Nada. O instrumento sentia-se ofendido por ter sido tocado por outras mãos que não as de Kudu. A família passou a noite sem comer.

No dia seguinte, o Cágado correu até o coqueiro, escalou-o, apanhou dois cocos e jogou um terceiro no rio. Pulou na água e seguiu o coco pela correnteza, como havia feito antes. Chegou ao remoto vilarejo e contou à mulher sobre o que havia acontecido com o tambor. Ela respondeu que já esperava aquilo e mandou-o pegar um novo tambor. Kudu voltou à grande casa e reencontrou as mesmas pessoas de antes:

— Kudu! Para onde vai?

— Vocês já sabem. Vim atrás do meu coco.

— Não! Deixe o coco e leve um tambor — disseram.

E como da primeira vez, aconselharam-no a pegar um tambor que não falasse. Kudu entrou na sala dos tambores e alguns deles gritaram:

— Leve-me! Leve-me!

“Acho que desta vez vou levar um tambor falante”, pensou o Cágado. 

E assim fez. Ao sair da casa, informou a todos que havia escolhido um tambor e que voltaria para sua casa.

Subiu o rio até o coqueiro. Amarrou o tambor no tronco, como antes, e com uma batida ordenou:

— Ngâmâ! Faça como sempre!

No mesmo instante surgiu uma grande mesa, mas sobre ela, em vez de comida, havia chicotes. O Cágado ficou surpreso e repetiu:

— Como sempre!

O tambor pegou um dos chicotes e golpeou Kudu, que gritou de dor.

— Agora, faça como sempre. Guarde tudo!

E o instrumento recolheu a mesa e os chicotes.

“Bem que me avisaram para não pegar um tambor falante”, pensou o Cágado, arrependido. “Minha curiosidade custou caro.”

Apesar disso, Kudu logo bolou um plano para se vingar do Leopardo e do rei pelos problemas que causaram.

Levou o tambor até sua cidade e foi à casa do Leopardo.

— Vamos com nossas famílias visitar o rei amanhã — convidou o Cágado. 

O Leopardo alegrou-se ao ver o tambor de comida.

No dia seguinte, foram até a capital e Kudu disse ao Rei Maseni:

— Trouxe a comida que encontrei, conforme suas ordens. Convoque todos amanhã.

Na manhã seguinte, o rei fez soarem os sinos e toda sua corte dirigiu-se ao palácio, juntamente com as famílias do Cágado e do Leopardo. Kudu disse a seus familiares que não entrassem na mansão do rei, mas que esperassem do lado de fora na janela.

— A refeição que trago hoje só poderá ser comida dentro do palácio — anunciou o Cágado.

Após todos os familiares do rei e do Leopardo entrarem, Kudu acrescentou:

— Só poderemos comer quando as janelas e portas estiverem fechadas. E todas foram fechadas, exceto uma que Kudu manteve aberta próxima de si. O Cágado bateu em seu tambor e ordenou:

— Faça como te mandaram.

Surgiram várias mesas cheias de chicotes.

— O que significa isso? — perguntaram alguns. — Por que esses chicotes?

Kudu se posicionou perto da janela aberta e deu o comando:

— Faça como sempre!

No mesmo instante os chicotes começaram a voar pela sala, açoitando a todos, inclusive o rei. Njâ foi um dos que mais sofreu golpes. Foi uma grande surra. A família do Leopardo gritava de dor. Seus corpos ficaram cobertos de cortes e arranhões.

O Cágado saltou pela janela logo depois de dar a ordem ao tambor. Lá fora, depois de algum tempo, gritou novamente:

— Ngâmâ! Guarde tudo!

O tambor recolheu todas as mesas e chicotes, pondo fim ao castigo. Kudu sabia que os açoitados iriam atrás dele para matá-lo, por isso fugiu com sua família para o rio. Pularam todos na água e se espalharam, escondendo-se atrás de raízes e troncos submersos. O Leopardo, vendo o Cágado sumir na água, gritou ainda:

— Para sua sorte, é bom que não nos vejamos mais! Se eu o encontrar novamente, vou matá-lo!

Fonte: texto por Robert Hamill Nassau, in Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.