você plantou
você se abriu
você sonhou
e acordou
entre suspiros
a olhar para a distância
uma vida a esperar...”
(“Cacos”, de Vander Lee)
Há exatamente dois anos, uma menina espevitada e cheia de sonhos que encontrei num parque dessa cidade, resolveu fazer parte da minha vida. Começava, ali, nosso caminho em direção ao futuro. Uma senda incerta, logicamente, cheia de precipícios e buracos negros, onde a qualquer momento poderíamos, num pequeno descuido, cair de cabeça num abismo sem volta. Como um relógio que regula o tempo, medido por estalidos produzidos por pequenas engrenagens, de repente ela se transformou nos meus ponteiros norteando os horizontes e também marcando as horas e os minutos da minha existência.
Passei, assim, no meu desvairamento, a fazer parte desse mecanismo, iludido do seu amor e do seu processo galante de cativar o mais íntimo existente dentro de meu “eu” interior. Como um ignóbil e sem razão, levado pela magia da sua pele aveludada, me entreguei à gula da sua luxuria envolvente. Foi meu mal. Ao fim de certo período, ela parou de marcar as minhas horas e, igualmente, o meu tempo. O tempo justo, o que considerava o meu maior aliado, me traiu com uma facada certeira na alma desguarnecida. Ao invés de fustigar meus ímpetos a continuarem vivendo, ou, por outra, a guiar meu ser combalido por trilhas ainda não caminhadas, essa quadra se vestiu de amarguras. Enlutado por esse derrame irreparável, morreu o que em mim havia de melhor. E eu fui de roldão.
Desde então, como um louco suicida, passei a correr atabalhoadamente ao encontro de um amanhã incerto. Esse momento babélico, a mim me parece, até agora, não ter retorno. Nesses bons anos de convivência, eu e a menina espevitada dividimos realidades. Construímos promessas e escrevemos esperanças nos regozijos de sermos um só pulsar na mesma emoção de edificarmos uma vida à dois, que parecia sem limites para nunca deixarmos de acreditar em enfados e amarumes (amargores). Por longos janeiros, nossas camisas e vestidos, sapatos e sandálias, cuecas e calcinhas, se entrelaçaram em igual espaço no mesmo guarda-roupas, bem como, na cozinha os pratos e os talheres, as xícaras e os copos se embaralharam convivendo pacificamente como bons vizinhos.
As noites que sucederam as nossas vidas no “mesmo comum,” se tornaram simples como a de outros casais, além do que tinham um toque sutil e mavioso que acima de tudo faziam resplandecer um rosário infindável de originalidades à toda prova. Na recolha do quarto, nos enroscávamos. Nos fundíamos, abraços e apertos, pernas e chamegos espocando carinhos. A volúpia da carne... nessa loucura plena, nesse abrasamento que incendiava, viajávamos acasalados ao sabor da posse, como quimeras de imensidão transcendendo o sobrenatural. Tomados pelo desejo irrefreável, manchávamos os lençóis branquinhos onde queimávamos os corpos descontrolados em desejos, os mais pecaminosos como dois tresloucados no mormaço que explodia de nossas vicissitudes nascidas do mais profundo da alma.
De repente tudo acabou. Emparelhou ao nosso lado, a desolação insegura com a sua cara fechada, os olhos negros ofuscados de destruição. A desgraça também se fez presente. Desceu o véu do desconforto e nos envolveu num agastamento sem volta. Por conta, cada um seguiu, para um lado. Foi um final sem a proteção da felicidade, sem a magia da esperança. Enfim, sem meios para se voltar a pensar em qualquer tipo de reconstrução. Hoje, passados tantos anos, ainda sinto escorrer por sobre a minha pele, o suor do fogo abrasador que nos envolvia. Ouço sons obsequiosos, os gritos dela se condensando ao meu prazer, deblaterando sem freios levando os nossos desejos a bel prazer quase às raias da neurastenia.
Ora, pois! A indagação que ficou entalada me questiona: se era bonito e eterno, por qual motivo acabou? O que interferiu no nosso conto de fadas, a ponto de deixar em cacos o melhor e o mais sublime do que conhecíamos como celestial encantamento? Custou-me um bocado a atinar com a resposta. Com o “xis da questão.” Por fim, descobri a chaga que matou o que parecia impossível chegar à óbito. Uma senhorita, uma moça sem importância. Isso mesmo! Uma ragazza que veio me prestar um favor. Pena que a minha cara metade tenha entendido de maneira errada esse gesto banal. Levada, pois, pelo clamor da leviandade o meu bem deduziu que nos entalhamentos daquele obséquio, se escondiam suspiros mais profundos.
Esses agrados se enveredaram em sua mente imaginosa pelas raias de uma suposta traição. Por consequência, a minha princesa passou as mãos em suas coisas. Transformou tudo em malas e embrulhos e ganhou a rua deserta que se abria obscura e incerta, a partir do portal da nossa intimidade. Inconformado, ainda hoje me questiono: cadê o amor? Onde ficaram as promessas, as juras, os devaneios, os momentos bonitos que vivemos? Se faz penoso e difícil para eu acreditar nesses dias todos que se esvaíram. Me é afadigado engolir a convicção de que ela tenha jogado tudo para o alto. O carinho, a amizade, o companheirismo... onde se quedou, em que lugar do nosso trajeto tudo aquilo que construímos e passamos juntos ficou no guardado do esquecido?
“Por quem você mal viu
e até chorou quando partiu
que procurou
mas estava a mil
agora esquece
essa intenção
que vida acende
o candelabro da razão”
(“Cacos”, Vander Lee)
Na verdade, eu só queria falar que hoje, por acaso, ao ligar a minha rádio na FM favorita, ouvi a nossa música. A canção do Vander Lee que num repente me fez voltar ao passado. E eu fui para ele como o pássaro que se sente atraído pelos olhos de uma serpente. Regressei ao “nosso ontem” situado num “espaço-tempo,” no qual ainda não sei quantos anos me restam para viver. Se ela pudesse me ouvir, ah, se ela pudesse me ouvir, diria sem mais delongas dos meus sentimentos mais puros. Falaria das minhas fraquezas, exporia meus medos, revelaria meus segredos e inseguranças. Berraria um “EU TE AMO” à voz solta.
Gritaria todo o meu rosário de pedidos explicitando à minha maneira de demonstrar o imorredouro amor e o meu gostar. Procuraria deixar claro a ela, que o amor, o verdadeiro, é algo mais profundo, tipo um arrimado que não se mede nem se explica. O que mantém pulsante a chama do amor sem limites é a intensidade com que os sentimentos fluem de dentro da alma. Explicaria também a ela, que apesar da idade, eu tenho uma criança em meu interior. Um ser que não cresceu, nem atingiu a maturidade. Ela é carente, baldada de deficiências, apesar dos anos vividos. Se faz frívola e ineficaz de carinho, de mãos amigas, de palavras de conforto e calor humano.
Está desejosa, na verdade, de tudo. Ela é uma beldade incompleta. Se tornou rebelde, e não só isso, se fez inconclusa, porque nunca encontrou o verdadeiro lugar, ou seja, o seu cantinho nesse mundo de loucos e débeis aloprados. Por derradeiro, observaria ao meu amor, que a sua presença em mim, é uma necessidade premente e muito importante. A falta dessa aventura se escafedeu. Virou doença desconhecida e, portanto, incurável. Em paralelo, se frutificou numa raridade psicótica em estado analto (incurável) e eu me prendi como náufrago em mar proceloso agarrado a uma tosca e grosseira tábua da salvação.
“Juntando outros lados
da mesma questão
as cartas na mesa
e as cinzas no chão
dispenso as certezas
mas presto atenção
recolho meus cacos
e deixo nos braços
da canção...”
(“Cacos”, Vander Lee)
Estou me sentindo, nesse momento, como um filho ao relento, ao acaso das intempéries. Um ser atribulado que ficou órfão de pai e mãe. Me flagro enfraquecido, me vejo desprotegido. Sem abrigo. Vazio, oco. Sem rumo, às garras do Deus-dará. Na verdade, eu só queria, no final de tudo... no fundo, no âmago do que aconteceu, eu só precisaria dizer que se ela voltasse e me desse colo para dormir no aconchego do seu calor, eu seria... eu seria o homem mais feliz na face da Terra. Contudo, reconheço, não existe a possibilidade de uma restituição, ou de uma readmissão. Preciso ser forte, sobretudo me tornar indestrutível. Darei a volta. Farei isso passando por cima... e sacudindo a poeira...
“Eu vou dar a volta
olho a minha volta
nada tem volta
volta...”
(“Cacos”, Vander Lee)
Fonte: Texto enviado pelo autor
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