domingo, 14 de janeiro de 2024

Caldeirão Poético LXXVI


Cid Silveira 
São Vicente/SP, 1910 – ????

CAIS

Na faina do porto gemia o guindaste,
jogando no pátio de pedras, de chofre,
a mercadoria pendendo-lhe da haste,
dezenas de sacos de pedra de enxofre.

Os trabalhadores das docas, externos,
não usam camisa, mas faixa na ilharga.
Trabalham nas furnas do pior dos infernos,
porões tenebrosos dos buques de carga.

O ar a empestado, sufoca; dá nojo
o pó amarelo, pesado, que dança
por cima dos homens que arrancam do bojo
do barco esse enxofre que ao porto se lança.

E o porto, ressoante de silvos, é teatro
de cenas medonhas, protestos, clamores!
Mas como o cargueiro sairá logo às quatro,
prossegue o trabalho dos estivadores.

Gaivotas inquietas esvoaçam à tona
das águas oleosas do estuário parado.
E finda o serviço só quando, com a lona,
se cobre o profundo porão esvaziado.

Mas logo no dia seguinte, de novo
começa o trabalho, com pragas e cantos.
É heroica a existência dos homens do povo,
dos trabalhadores das docas de Santos.
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Dorothy Jansson Moretti
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

POETA

… reconheceram a canção que cantariam,
se soubessem cantar .
Helena Kolody

Nunca lhe falta a sensibilidade,
a sutileza, o dom de transferir
às palavras toda a expressividade
na alegria ou na mágoa do sentir.

O poeta é assim, é versatilidade…
Seja o que for que intente traduzir,
mergulha em vida, em sonho, em realidade,
faz de uma noite a aurora reflorir.

Transcende as dores de um mundo sofrido,
pisa os mistérios do desconhecido,
traz as estrelas para o nosso chão.

E quem o escuta, exclama, fascinado:
“Era assim que eu queria ter cantado,
se soubesse escrever minha canção!”
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Francisco José Pessoa 
(Francisco José Pessoa de Andrade Reis)
Fortaleza/CE, 1949 – 2020

EXCESSO DE BAGAGEM

Se promessas são dívidas ou não
Eis-me aqui, são e salvo neste frio,
Vindo do norte de um calor bravio
Para provar a minha gratidão.
Pus poesia no meu matulão*
Mandei o Haroldo* reservar passagem
Viemos juntos para esta viagem
Trazendo tanto, tanto, tanto amor
Que no check-in, acredite o senhor,
Foi registrado EXCESSO DE BAGAGEM.

Mas eu paguei feliz o tal imposto
E pagaria tudo uma outra vez
Só pelo fato de estar com vocês
E poder abraçá-los rosto a rosto.
Falar ao vivo tem um outro gosto 
Participar dessa camaradagem
Amizade fiel, sem maquiagem,
E de tanta afeição, tenho certeza
No check-in ao voltar pra Fortaleza,
Vou pagar outro EXCESSO DE BAGAGEM!
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* Matulão: Saco onde os retirantes nordestinos carregavam seus pertences.
** Haroldo a que o poeta se refere, é outro poeta, Haroldo Lyra.
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Lucas Munhoz
Indaiatuba/SP

O ESPELHO DO MAR

Olha-me, pelo espelho... Os meus poderes!
Lembro-me, se cessar os teus fulgores;
Lembro-me, ao meu olhar dos ditadores
Ao luar poderoso, sem tolheres!...

 D´água que chora o Deus, pelos colheres!
 A lua primorosa, e os teus rigores
 Dos ares perfumosos, pelas flores
 Tens os entes perfeitos dos cozeres.

 Quanto a ti, pelos sonhos desejáveis!
 Lua, e os meus corações que me conheces
 São os deuses amáveis e adoráveis.

 Ao mar dos corações, pelo carinho!
 Amo-te, agora foste o mar que teces...
 Olho-te, pelo véu limpo, sozinho.
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Vicente de Carvalho 
(Vicente Augusto de Carvalho)
Santos/SP, 1866 – 1924

SONETO DA DEFENSIVA

Enganei-me supondo que, de altiva,
Desdenhosa, tu vias sem receio
Desabrochar de um simples galanteio
A agreste flor desta paixão tão viva.

Era segredo teu? Adivinhei-o;
Hoje sei tudo: alerta, em defensiva,
O coração que eu tento e se me esquiva
Treme, treme de susto no teu seio.

Errou quem disse que as paixões são cegas;
Veem... Deixam-se ver... Debalde insistes;
Que mais defendes, se tu'alma entregas?

Bem vejo (vejo-o nos teus olhos tristes)
Que tu, negando o amor que em vão me negas,
Mais a ti mesma do que a mim resistes.

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