segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Humberto de Campos (A Baronesa)

Um médico ilustre, de incontestável influência no seio da família carioca, está utilizando, ultimamente, o seu prestígio pessoal para que as senhoras eliminem, de uma vez, o hábito de pintar os cabelos. Acha ele que uma cabeça alva, ou, pelo menos. polvilhada de prata, é um sinal de insubstituível respeitabilidade, que se não pode, de modo nenhum, esconder ou disfarçar. E tamanho tem sido o resultado dessa campanha metódica, persistente, silenciosa, contra a vaidade feminina, que sobem a dezenas, já, as senhoras que se reconciliaram com o destino, conformando-se com as consequências inevitáveis da idade.

Esse costume de mudar a cor dos cabelos não é, entretanto, um vício dos nossos tempos. As atenienses conheceram-no, conheceram-no as mulheres de Veneza, criadoras do "louro veneziano", e não houve corte europeia posterior à Renascença em que não se procurasse um processo de ocultar à curiosidade do mundo, sempre impiedoso, a neve que nos avisa, alvejando-nos a cabeça, que é chegado, enfim, o triste inverno da vida... Há trinta anos, ainda, era isso em voga no Rio de janeiro. E era sobre isso mesmo que eu meditava, uma destas tardes, ao despedir-me da minha veneranda amiga a Sra. Baronesa de Caçapava, cujos oitenta e seis anos constituem, em nossos dias, uma das relíquias mais preciosas da mais alta sociedade do Império.

Estendida na sua "chaise-longue" (cadeira longa para esticar as pernas), com os pés, pequeninos e engelhados como duas flores murchas, abrigados sob uma delicada toalha de seda, a boníssima titular sorria, carinhosa, com a sua boca muito pequena, escondida em um dos vales do rosto recortado de rugas, quando eu lhe falei nos inícios do nosso conhecimento.

- O senhor andava pelos trinta anos; não era, conselheiro?

Eu fiz as contas, mentalmente, embaraçando-me nos algarismos.

- Não estou certo, Sra. Baronesa; não estou certo - respondi. - Recordo-me, porém, que, certa vez, ao vê-la, fiquei impressionadíssimo com a sua figura. A Sra. Baronesa, nesse tempo, lembro-me bem, tinha o rosto ainda moço, mas apresentava na cabeça, já acentuando a sua beleza, numerosos fios de prata.

- Foi em 1871, - confirmou a velha fidalga, sorrindo benevolamente com a sua boquinha de criança, encolhida e funda, privada de todos os dentes. - Foi em 1871; eu tinha, então, trinta e sete anos.

- De outra vez que a vi, - tornei, - o que mais me impressionou foi, ainda, a beleza do seu cabelo. A sua cabeleira, sempre farta, abundante, maravilhosa, era, ainda, inteiramente negra.

A Baronesa olhou-me novamente, com um sorriso de saudade, que era um doce perdão para nós ambos, e acentuou, bondosa:

- Foi em 1880; eu tinha quarenta e seis...

E, olhando-me significativamente, pediu-me, com a vergonha brilhando, como uma brasa, na cinza fria dos olhos:

- Cubra-me os pés, conselheiro; sim?

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

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