sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Contos e Lendas da África (O tambor mágico)


por Robert Hamill Nassau

PERSONAGENS
Kudu (Cágado)
Rei Maseni (homem)
Njâ (Leopardo)
Ngâmâ (tambor mágico)

PREFÁCIO
Este conto explica a razão pela qual a tribo dos cágados vive somente na água.
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Antigamente, a humanidade e todas as tribos de animais viviam juntos em uma única nação. Construíam suas aldeias e moravam todos no mesmo lugar. No país do Rei Maseni, o Cágado e o Leopardo ocupavam a mesma cidade; cada um em uma extremidade da rua.

O Leopardo tinha duas esposas e o Cágado também.

Aquela região do país sofria com escassez de comida. A fome castigava todas as tribos. O Rei Maseni estabeleceu uma lei dizendo que toda caça ou comida encontradas deveriam ser levadas até ele — para que assim fossem divididas igualmente. Também colocou soldados para vigiar todo o país. 

A fome só aumentava. As pessoas, sem esperança, não sabiam o que fazer e muitos morriam de fome. Assim como hoje, esse é um mal que aflige os povos pobres, não somente da África, mas também nas terras do Manga-Manĕne (terra dos homens brancos).

Os dias se passavam sem que ninguém encontrasse uma solução. Certo dia, o Cágado saiu cedo de sua casa e adentrou a selva, procurando um tipo especial de alimento: cogumelos.

— Vou seguir pela praia na direção sul — avisou à sua esposa.

Caminhou até encontrar um grande rio, com quilômetros de largura. Havia um coqueiro em uma das margens e, quando o Cágado se aproximou para examinar melhor, viu que estava repleto de cocos.

— Estou morto de fome, vou subir pelo tronco e apanhar os frutos — disse a si mesmo.

Colocou sua bolsa de viagem no chão e imediatamente subiu na árvore. Colheu dois e os jogou ao chão. O terceiro escorregou de sua mão e caiu no rio que corria ao lado.

— Com a fome que tenho, não deixarei um coco se perder na água! — exclamou o Cágado. — Vou mergulhar atrás dele.

E saltou para a água — tchibum! Afundou no local onde o coco havia caído, mas ambos foram apanhados pela correnteza e levados por uma boa distância até chegarem a uma curva na qual o leito se alargava criando uma praia. Mais adiante havia um vilarejo desconhecido onde erguia-se uma grande casa. Haviam pessoas ao redor e dentro dela. As que estavam fora chamaram o Cágado, e ele pôde ouvir alguém gritando lá de dentro:

— Leve-me! Leve-me!

(Era um tambor falante.)

Uma mulher dava banho em uma criança na beira do rio e perguntou:

— O que o traz aqui, Kudu? E para onde está indo?

— Minha cidade está sofrendo com a escassez — explicou o Cágado. — Por isso fui à floresta procurar cogumelos. Subi em um coqueiro. Comecei a colher os cocos e deixei um cair no rio. Pulei atrás dele e cheguei aqui.

— Então você encontrou sua salvação, Kudu! — respondeu a mulher. — Vá até aquela casa. Lá você vai encontrar uma coisa. É um tambor. Vá pegá-lo agora.

Uma das pessoas do povoado acrescentou:

— Você verá várias dessas coisas lá dentro. Não pegue o tambor que fica dizendo “Leve-me, leve-me”. Você deve escolher o que não diz nada o que apenas emite o som “wo-wo-wo”. Leve-o com você e amarre-o no tronco do coqueiro. Então diga a ele: “Ngâmâ! Faça como lhe mandaram!”.

O Cágado seguiu essas instruções. Entrou na casa, apanhou o tambor e levou-o à beira do rio onde a mulher estava.

— Faça um teste primeiro, para aprender a usá-lo. Bata! — instruiu ela. 

Quando o Cágado fez isso, instantaneamente surgiu uma mesa com vários tipos de comida. Após comer, disse ao tambor:

— Guarde!

E a mesa desapareceu.

O Cágado levou o tambor diretamente para o coqueiro. Amarrou-o ao tronco com uma corda de fibra e então ordenou:

— Ngâmâ! Faça como lhe mandaram!

No mesmo instante, do tambor surgiu uma longa mesa, com vários tipos de comida. O Cágado ficou muito feliz com toda aquela abundância. Comeu até se fartar e repetiu a ordem:

— Ngâmâ! Faça como lhe mandaram!

O tambor recolheu a mesa, mas deixou um pouco de comida ao pé do coqueiro. Depois, voltou para as mãos do Cágado. Kudu colocou os alimentos em sua bolsa, junto com os cocos que havia apanhado de manhã, e tomou o caminho de volta para casa. Parou quando estava quase chegando à cidade. Estava tão encantado com os poderes do tambor que fez mais um teste. Bateu no instrumento outra vez. Novamente uma grande mesa cheia de comida apareceu. O Cágado comeu uma vez mais e guardou mais um pouco em sua bolsa. Virou-se para uma árvore que havia o lado e ordenou:

— Curve-se!

A árvore obedeceu e ele amarrou o tambor em um galho. Ao chegar na cidade, deu os cocos e cogumelos a suas esposas e filhos. Quando entraram todos em casa, sua esposa principal perguntou:

— Onde você esteve todo esse tempo?

— Fui até a praia tentar colher cocos — justificou-se ele. — E encontrei muitas coisas boas. Veja!

Abriu a bolsa e tirou batatas, arroz e carne.

— Podemos comer, mas Njâ não deve saber disso.

Então ele, suas esposas e filhos fizeram uma grande refeição. O dia escureceu logo e foram todos dormir. O novo dia não tardaria. Ao amanhecer, o Cágado voltou ao lugar onde havia deixado o tambor. Logo que chegou à árvore, ordenou:

— Ngâmâ! Faça como lhe mandaram!

O tambor rapidamente desceu ao chão e fez aparecer uma mesa farta. O Cágado comeu parte da comida até matar sua fome, depois colocou o restante em sua bolsa. Então deu outra ordem:

— Guarde tudo!

O tambor recolheu as coisas e voltou ao galho. No dia seguinte, ao amanhecer, o Cágado retornou à árvore e repetiu suas ordens. Alguns dias mais tarde, enquanto se dirigia para o esconderijo do tambor, seu filho mais velho o seguiu, pois estava curioso para saber como o pai conseguia tanta comida. Quando o Cágado chegou à árvore, seu filho se escondeu e ficou imóvel, observando. Kudu deu o comando novamente:

— Curve-se!

E a árvore obedeceu. O jovem testemunhou tudo, a forma como seu pai apanhou o tambor, bateu e ordenou “Faça como lhe mandaram”.

A mesa surgiu mais uma vez e Kudu sentou-se para comer. Ao terminar, mandou a árvore se curvar e amarrou o tambor no galho. O tronco então se endireitou novamente.

Aquilo continuou por mais alguns dias. O Cágado ia até a árvore, repetia o mesmo processo, comia e voltava para casa, sempre levando comida para sua família. Seu filho, de tanto observar escondido, já sabia o que seu pai fazia. Então foi sozinho até a árvore e disse:

— Curve-se!

E a árvore dobrou seu tronco. O jovem repetiu os comandos de seu pai e o tambor fez surgir a mesa. Depois de comer, ordenou:

— Guarde tudo!

A mesa desapareceu. O rapaz apanhou o tambor e, em vez de amarrá-lo no galho, levou-o escondido para sua casa. Sem que seu pai soubesse, chamou todos os outros membros da família. Juntaram-se todos na casa e ele repetiu os comandos ao tambor. A comida surgiu e, terminada a refeição, o jovem ordenou ao instrumento que guardasse tudo de volta.

Naquele dia, o Cágado tinha ido à floresta procurar pelos cogumelos de que ele e sua família tanto gostavam.

— Antes de voltar à cidade, vou passar no esconderijo para comer — pensou em voz alta.

Ao se aproximar da árvore, ainda a uma certa distância, viu que ela estava reta como de costume, mas o tambor havia sumido.

— Será que esta árvore está me pregando uma peça? — exclamou.

Então foi até ela, e de fato o tambor não estava mais lá. Ainda tentou dar seu comando:

— Curve-se!

Mas nada aconteceu. Voltou à cidade, apanhou seu machado e voltou ao local.

— Curve-se ou cortarei você! — ameaçou.

A árvore permaneceu imóvel. O Cágado começou a golpeá-la com seu machado até que ela caiu ao chão com um estrondo.

— Me dê o tambor ou farei você em pedaços!

Cortou a árvore em diversas partes, mas não encontrou o tambor. Decidiu voltar à cidade e, ao caminhar, pensava ansioso, “Quem terá feito isso?’

Chegou em casa tão desgostoso que não quis falar com ninguém. Então seu filho mais velho foi até ele e disse:

— Meu pai, por que está tão calado? O que aconteceu na floresta?

— Não quero conversar — respondeu Kudu.

— Você nos trouxe cogumelos, mas ficava mais feliz quando trazia comida para nós. Fui eu que peguei o tambor.

— Meu filho, traga-o aqui agora! — mandou o Cágado.

O jovem foi pegá-lo em um quarto dos fundos e depois chamou os outros membros da família. Reuniram-se todos na casa e deram ordens ao tambor. A mesa apareceu como sempre e todos comeram. Os filhos menores estavam tão animados que, ignorando o pedido de seu pai, levaram sobras de batata e carne para comer na rua. Outras crianças viram e pediram um pouco. Entre elas estavam os filhos do Leopardo, que foram mostrar a comida ao pai. Na mesma hora, o Leopardo foi até a casa do Cágado e encontrou toda a família a se fartar.

— Amigo! O que você está fazendo é errado! — acusou o felino. — Minha família passa fome enquanto vocês se fartam.

— Não temos mais nada hoje, mas volte amanhã e dividiremos com você — respondeu Kudu.

O Leopardo então voltou para sua casa.

A noite logo veio e todos se deitaram para dormir. Na manhã seguinte, bem cedo, o Cágado saiu à rua e anunciou:

— Ninguém, seja da família de Njâ ou da minha, irá à floresta hoje. Comeremos aqui juntos!

E foi sozinho até o coqueiro (onde, durante a noite, havia levado o tambor sem que ninguém visse). Quis fazer um teste para confirmar que o instrumento não havia perdido seu poder por ter sido usado na cidade. Então deu os comandos de sempre, que foram prontamente atendidos. Voltou para a cidade com o tambor nos ombros, à vista de todos, e foi direto à casa do Leopardo.

— Chame toda sua família! — pediu Kudu.

Todos foram à casa, inclusive os familiares do Cágado. Sob as mesmas ordens, o tambor fez aparecer uma mesa com abundância de comida. Depois de todos comerem, a mesa foi recolhida. O tambor ficou na casa do Leopardo por duas semanas. Usavam-no de maneira tão excessiva que o instrumento se aborreceu e, exaurido, não produzia mais nenhuma comida.

O Leopardo então foi falar com o Cágado:

— O tambor não faz mais comida. Arranje outro.

Kudu ficou irritado com o mau uso de seu tambor, mas ainda assim o pegou e o guardou em sua casa.

Os soldados do rei ouviram rumores de que o Leopardo escondia comida em sua casa e foram interrogá-lo:

— De onde vieram os alimentos que suas crianças estão comendo?

— Pegaram com os filhos de Kudu — respondeu o Leopardo.

Os vigias voltaram imediatamente ao palácio do Rei Maseni e relataram:

— Encontramos uma pessoa que guarda comida.

— Quem? — perguntou o rei.

— Kudu.

O soberano mandou chamá-lo. Os soldados foram até a casa do Cágado e anunciaram:

— O rei exige sua presença.

— O que eu fiz para que o rei me chamasse? Desde que moramos neste país, ele nunca quis falar comigo.

Mesmo assim, Kudu resignou-se e foi até o palácio real.

— Você anda estocando comida enquanto todas as famílias passam fome? — o rei esbravejou. — Traga tudo o que tiver para cá!

— Peço perdão, majestade, mas não conseguirei trazer hoje — desculpou-se o Cágado. — Convoque todas as famílias amanhã.

Na manhã seguinte, o rei mandou tocar o sino e anunciar que qualquer pessoa, de qualquer idade, deveria ir até o palácio para um banquete. Todos os animais foram até a cidade do rei, inclusive o Cágado, levando seu tambor. Seus parentes distantes, sem saber da existência e poderes do tambor, perguntaram se haveria dança.

Dentro do palácio real, o Cágado ergueu o tambor e, com uma forte batida, ordenou:

— Que apareçam todos os tipos de comida!

E assim aconteceu. Surgiu uma mesa que se estendia por toda a cidade, com uma imensa variedade de pratos. Todos os animais comeram o quanto conseguiram e depois foram embora. O Cágado guardou seu tambor e voltou para casa. Ao chegar, pediu para que sua família se reunisse. Bateu novamente no tambor. Não houve nenhum som e nada saiu dele. Bateu novamente. Nada. O instrumento sentia-se ofendido por ter sido tocado por outras mãos que não as de Kudu. A família passou a noite sem comer.

No dia seguinte, o Cágado correu até o coqueiro, escalou-o, apanhou dois cocos e jogou um terceiro no rio. Pulou na água e seguiu o coco pela correnteza, como havia feito antes. Chegou ao remoto vilarejo e contou à mulher sobre o que havia acontecido com o tambor. Ela respondeu que já esperava aquilo e mandou-o pegar um novo tambor. Kudu voltou à grande casa e reencontrou as mesmas pessoas de antes:

— Kudu! Para onde vai?

— Vocês já sabem. Vim atrás do meu coco.

— Não! Deixe o coco e leve um tambor — disseram.

E como da primeira vez, aconselharam-no a pegar um tambor que não falasse. Kudu entrou na sala dos tambores e alguns deles gritaram:

— Leve-me! Leve-me!

“Acho que desta vez vou levar um tambor falante”, pensou o Cágado. 

E assim fez. Ao sair da casa, informou a todos que havia escolhido um tambor e que voltaria para sua casa.

Subiu o rio até o coqueiro. Amarrou o tambor no tronco, como antes, e com uma batida ordenou:

— Ngâmâ! Faça como sempre!

No mesmo instante surgiu uma grande mesa, mas sobre ela, em vez de comida, havia chicotes. O Cágado ficou surpreso e repetiu:

— Como sempre!

O tambor pegou um dos chicotes e golpeou Kudu, que gritou de dor.

— Agora, faça como sempre. Guarde tudo!

E o instrumento recolheu a mesa e os chicotes.

“Bem que me avisaram para não pegar um tambor falante”, pensou o Cágado, arrependido. “Minha curiosidade custou caro.”

Apesar disso, Kudu logo bolou um plano para se vingar do Leopardo e do rei pelos problemas que causaram.

Levou o tambor até sua cidade e foi à casa do Leopardo.

— Vamos com nossas famílias visitar o rei amanhã — convidou o Cágado. 

O Leopardo alegrou-se ao ver o tambor de comida.

No dia seguinte, foram até a capital e Kudu disse ao Rei Maseni:

— Trouxe a comida que encontrei, conforme suas ordens. Convoque todos amanhã.

Na manhã seguinte, o rei fez soarem os sinos e toda sua corte dirigiu-se ao palácio, juntamente com as famílias do Cágado e do Leopardo. Kudu disse a seus familiares que não entrassem na mansão do rei, mas que esperassem do lado de fora na janela.

— A refeição que trago hoje só poderá ser comida dentro do palácio — anunciou o Cágado.

Após todos os familiares do rei e do Leopardo entrarem, Kudu acrescentou:

— Só poderemos comer quando as janelas e portas estiverem fechadas. E todas foram fechadas, exceto uma que Kudu manteve aberta próxima de si. O Cágado bateu em seu tambor e ordenou:

— Faça como te mandaram.

Surgiram várias mesas cheias de chicotes.

— O que significa isso? — perguntaram alguns. — Por que esses chicotes?

Kudu se posicionou perto da janela aberta e deu o comando:

— Faça como sempre!

No mesmo instante os chicotes começaram a voar pela sala, açoitando a todos, inclusive o rei. Njâ foi um dos que mais sofreu golpes. Foi uma grande surra. A família do Leopardo gritava de dor. Seus corpos ficaram cobertos de cortes e arranhões.

O Cágado saltou pela janela logo depois de dar a ordem ao tambor. Lá fora, depois de algum tempo, gritou novamente:

— Ngâmâ! Guarde tudo!

O tambor recolheu todas as mesas e chicotes, pondo fim ao castigo. Kudu sabia que os açoitados iriam atrás dele para matá-lo, por isso fugiu com sua família para o rio. Pularam todos na água e se espalharam, escondendo-se atrás de raízes e troncos submersos. O Leopardo, vendo o Cágado sumir na água, gritou ainda:

— Para sua sorte, é bom que não nos vejamos mais! Se eu o encontrar novamente, vou matá-lo!

Fonte: texto por Robert Hamill Nassau, in Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

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