sábado, 20 de janeiro de 2024

Contos e Lendas da Espanha (A pereira da Tia Miséria)

Tia Miséria era uma mulher muito pobre e já idosa, viva numa cabana nos arredores de um povoado.

Tudo o que possuía era um colchão de palha para dormir, uma velha cadeira para sentar-se e um cesto para recolher os frutos da pereira que havia no quintal. A pereira era uma árvore generosa; todos os anos dava muitos frutos, que Tia Miséria vendia. Com isso, além do que ganhava pedindo esmolas, a velha senhora conseguia se manter. 

Mas havia um problema: como as peras eram muito saborosas, os meninos do povoado vinham roubá-las, antes mesmo que amadurecessem. Assim, Tia Miséria só conseguia colher as poucas que sobravam no pé. Além do mais, como Tia Miséria era de idade avançada, não conseguia correr atrás dos meninos, por muito tempo. Tampouco podia vigiar a pereira o dia todo, pois precisava pedir esmolas e fazer os serviços da casa.

Tia Miséria também tinha um filho que se chamava Ambrosio, devido à fome que passava. Mas o rapaz já não vivia com ela. Na verdade, a velha senhora nem sabia por onde ele andava.

Tia Miséria possuía ainda um cachorro vira-latas que era sua única e fiel companhia. Às vezes, atiçava o cachorro nos meninos... Em vão, pois eles espantavam o pobre animal a pedradas.

Numa tarde de inverno, depois de uma forte tempestade de neve, um mendigo bateu à porta de Tia Miséria, que o convidou a entrar. Generosamente, dividiu com ele um pão que ganhara pela manhã. O mendigo estava muito cansado e transido de frio. Tia Miséria, penalizada, cedeu-lhe seu colchão de palha e deitou-se no chão, sobre um monte de trapos, para dormir.

Na manhã seguinte, ao ver que o mendigo se levantava para partir, ela disse:

— Espere um pouco, enquanto vou ao povoado buscar a sopa que ontem me prometeram. Assim, você poderá se alimentar, antes de ir embora. É muito ruim andar de barriga vazia.

O mendigo quis recusar, mas Tia Miséria insistiu tanto que, por fim, ele se viu obrigado a contar que na verdade era um santo do céu. E que Deus o havia enviado ao mundo para ver como as pessoas estavam praticando a solidariedade. Assim, ele viera bater à sua porta. Depois de revelar tudo isso, o mendigo disse:

— Já que você tem um coração bondoso, vou lhe conceder uma graça. Pode me pedir o que quiser.

A princípio. Tia Miséria disse que não queria nada. Mas então se lembrou de suas agruras com a pereira e decidiu:

—Já sei o que vou pedir: quem subir na minha pereira, só poderá descer quando eu autorizar.

— Assim será — respondeu o santo.

No outono do ano seguinte, quando as primeiras peras começaram a aparecer, os meninos chegaram, como sempre, para roubá-las. Subiram na árvore para colhê-las e ali ficaram, grudados, sem poder descer. Quando Tia Miséria chegou, no final do dia, deu-lhes umas boas palmadas no traseiro. E, o cachorro, umas mordidas nas pernas. Por fim Tia Miséria deixou-os ir. Os meninos fugiram apavorados.

Logo correu a notícia do que acontecia a quem ousasse subir na pereira da Tia Miséria. Desde esse dia, nenhum garoto se atreveu a roubar sequer uma pera. E, claro, como agora podia vender os frutos na época em que amadureciam, a velha senhora conseguia um dinheirinho para aliviar sua pobreza.

O tempo passou. E Tia Miséria ultrapassou os noventa anos. Um dia, bateu à sua porta um vulto que parecia ao mesmo tempo homem e mulher. Estava coberto com uma grande capa negra e trazia uma foice no ombro.

— Vamos, Miséria, que chegou sua hora — disse o vulto.

Reconhecendo a Morte, ela protestou com veemência:

— Mas, veja só! Agora que eu estava passando uns anos tranquilos, que estava vivendo tão bem com minhas quatro riquezas: a pereira, o colchão, a cadeira e o cachorro, você resolve aparecer... Francamente!

—Já chega de conversa, minha velha — disse a Morte. — Acompanhe-me, vamos.

— Mas eu não quero morrer!

Tia Miséria argumentou de todas as maneiras. Por fim, vendo que não poderia escapar, disse à Morte:

— Está bem, eu irei. Enquanto me apronto, faça-me o favor de pegar aquelas três peras que restam na pereira, pois quero levá-las na viagem.

A Morte obedeceu e subiu na árvore para colher os frutos. Mas, quando ia descer, viu que estava grudada nos galhos. Fez todos os esforços possíveis para se soltar... Em vão. Não havia como descer da pereira.

Tia Miséria, que observava tudo por trás de uma janela, disse à Morte:

— Fique aí, minha amiga, enquanto eu continuo aqui levando a vida adiante. E pode desistir de tentar, pois, sem minha permissão, você não conseguirá descer.

Alguns anos se passaram. E o mundo começou a sentir a ausência da Morte. Ninguém morria; os velhos ficavam mais velhos, os doentes ficavam mais doentes. Aqueles que, desesperados, tentavam o suicídio, acabavam apenas ficando muito feridos.

Muitos enfermos pediam aos médicos que os matassem. Os médicos, por sua vez, não davam conta de tantos pacientes e começavam a procurar um jeito para que as pessoas morressem. Nem mesmo nas guerras havia mortos.

O desespero era grande e aumentava a cada dia. Muita gente começava a odiar a vida e tentava se desfazer dela. Mas não havia como, pois a Morte estava pendurada na pereira da Tia Miséria.

Entre todos, os médicos eram os mais aflitos. Tanto, que fizeram uma reunião secreta. E então correu a notícia de que haviam decidido encontrar a Morte, custasse o que custasse.

Assim, os médicos espalharam-se pelo mundo, para procurá-la em todos os lugares plausíveis e até mesmo nos mais improváveis. Foi assim que um médico acabou passando perto da cabana de Tia Miséria, Ao vê-lo, a Morte gritou:

— Ei, doutor, venha cá!

Ele a reconheceu de imediato;

— Ora, ora, aí está você, minha cara Morte! — exclamou, louco de alegria por reencontrar aquela velha amiga.

O médico tinha motivos de sobra para tratar a Morte com tanta consideração. Pois, na verdade, muita gente já havia morrido em suas mãos. Por isso, a Morte lhe devotava uma deferência especial;

— É um prazer revê-lo, doutor.

– O prazer é todo meu. Mas por onde você andou durante esse tempo? Saiba que eu e meus colegas já percorremos meio mundo à sua procura. Agora venha comigo, pois há muito trabalho a fazer.

— Então, tire-me daqui, pois estou presa a esta pereira.

— Nem é preciso pedir duas vezes, minha amiga.

Sem hesitar, o médico subiu na pereira para ajudar a Morte a descer, mas acabou ficando preso também. Assim esteve por dias e noites, junto à Morte, até que seus familiares, que moravam por perto e estavam à sua procura, o encontraram agarrado à árvore.

Tão logo ouviram as explicações do médico, resolveram chamar outros moradores do povoado, e também o prefeito. Horas depois, uma verdadeira multidão invadiu o quintal, armada de machados, para derrubar a pereira. Nisso, Tia Miséria apareceu e gritou:

— Não me cortem esta árvore, que é o bem mais precioso que possuo no mundo!

E todos responderam;

— Teremos de fazer isso para libertar a Morte. Os doentes, velhos e feridos do mundo inteiro não aguentam mais tanto sofrimento, tanta calamidade.

— Ainda que vocês cortem a pereira, nem a Morte, nem o médico, poderão se soltar dela — disse Tia Miséria. — Portanto, eu libertarei os dois, mas com uma condição.

— Qual? — perguntou a Morte.

— Que você só venha me buscar, e a meu filho Ambrosio, quando eu chamá-la três vezes — respondeu Tia Miséria.

— De acordo — disse a Morte. — Agora me solte, de uma vez por todas.

— Está bem. — Tia Miséria deixou a Morte ir embora, junto com o médico. A multidão acompanhou-os, comemorando a volta à normalidade.

A Morte, assim que se viu livre, retomou sua função. Pessoas começaram a morrer em toda parte. Morriam aos milhares, velhos, doentes, feridos... E houve mais guerras do que nunca. A Morte quase não dava conta de tanto trabalho. Havia muito tempo que a procuravam e ela precisava atender a todos, dia e noite, sem descanso. Assim, a Morte ceifou vidas como jamais se viu antes.

Enquanto isso, Tia Miséria continuava tranquilamente em sua cabana, com sua pereira, seu colchão, sua cadeira e seu cachorro, pedindo esmolas e vendendo peras durante o outono.

E lá está, até hoje.

Tia Miséria ainda não chamou a Morte, por isso continua existindo neste mundo. Ela e seu filho Ambrosio viverão para sempre, pois não têm a menor intenção de morrer.

Fonte> Yara Maria Camillo (seleção). Contos populares espanhóis. SP: Landy, 2005.

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