sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Geraldo Pereira (Manhã de Domingo)

Bucólica manhã esta de um domingo qualquer, em tudo tropical. Mês de maio, mês das noivas, das mães e dos ventos, dos terços e das novenas. Velhas fruteiras do Rosarinho, mangueiras antigas de boas mangas, jambeiros e oitizeiros que se juntam e abrem os galhos em sincrônicos movimentos das despedidas medidas, nunca pedidas, de um final de semana gostoso, saboroso até. Na minúscula praça em frente os peões da construção estão fiando conversa, matando o tempo do lazer fora de casa. Ocupam os três únicos bancos, mas cedem lugar à figurante feminina que chega, se aconchega e vem compor a cena desse espetáculo sem roteiros. De longos cabelos pretos, estirados e viçosos, penteados a óleo, faz as vezes de interprete da sedução nessa encenação de ocasião. O moço que passa com a gaiola na mão aprisiona sonhos ou vai encarcerando devaneios e assim, com o imaginário contido, restringe as fantasias e inibe as divagações.

O vagabundo aproxima-se da praça a passos lentos, como se estivesse calculando distâncias, mesmo conhecendo na palma da mão esses entornos. Escolheu um dos bancos e estendeu no encosto o paletó surrado, sentando-se em seguida, não sem antes acomodar ao seu lado a caixa de leite cheia de revistas. Deslocou, então, um dos peões que assim fiavam conversa! Abriu uma dessas e passou rapidamente as páginas, detendo-se, aqui e ali, numa foto qualquer, sem que lhe importassem os textos.

Retratos da sensualidade feminina à vista de um homem como outro qualquer, diferenciado, apenas, pela condição humilhante do analfabetismo, que impede a cidadania. O cão ajeitou-se no chão, abriu a boca preguiçoso, fechou as pálpebras jurando fidelidade que tantos não conhecem e quase ronca. O passante, que empurrava a carroça repleta de latinhas usadas, com o filho a lhe ajudar no ofício, decidiu parar e descansar. Tirar um deforete, diriam os antigos!

Cumprimentaram-se e um diálogo nasceu! O nômade falava e gesticulava, argumentando com segurança, explicando as suas ideias e os seus ideais, talvez. O interlocutor de ocasião retrucava o quanto podia, discordando do pensamento alheio. A criança, absorta, acompanhava os dois na conversa, sem compreender bem de que falavam e o que discutiam.

Não houve acordo e o moço forasteiro se levantou, virou-se para o menino e fez o gesto universal, tocando a têmpora com o indicador da mão direita: “É doido!” E seguiu em frente, voltou à faina da reciclagem do alumínio, garantindo a féria. Outra vez o homem errante abriu uma revista, folheou com a mesma rapidez e se deteve na visão da nudez! O menino de rua, cheirando cola quase senta no banco, não fossem os latidos do cachorro. O cavalo que passou pachorrento, como cabe ser aos equídeos,  nem ligou para os dois, mas por pouco não provocou um acidente grave, não fosse a precisão dos freios.

O prédio em frente vai se compondo aos poucos, tijolo por tijolo, parede por parede e andar por andar. Acolhe no quarto pavimento os peões do interior, tangidos da cana-de-açúcar, largados da bagaceira. Embaixo, o vigia vem atender à porta a mulher que bate e toca a sineta. É a esposa a conferir destinos? Não se abraçam e nem se tocam, não há afagos e nem afetos, somente a troca de palavras, que se tornam inaudíveis nos ares da rua. No edifício ao lado a festa já começou, os músicos tocam saudosos acordes de orquestras românticas, mas fazem em seguida outra opção. Há uma cantora entre os presentes, mulher cinquentona, como parece, a entoar “Bandeira branca/Amor/Eu quero mais/Pela saudade...”, para depois preencher o mundo com a maviosa letra que Nelson Gonçalves consagrou: “Minha normalista linda/Rapidamente conquista/Meu coração sem amor...” Resgate, por certo, de perdidos e já encantados tempos!

E a hora vai passando, porque o tempo não para, sequer em momentos assim, de enlevo d’alma! Os ponteiros se abraçam e despedem a manhã, comemoram o nascer da tarde e anunciam que a noite vai chegar e outro dia surgirá, recomeçando o tudo. O doidinho da rua há de voltar e declamar a agourenta rima, para desespero dos peões: “Se você cair!/Não vai se ferir!/Nem ficar em pedaços!/Estarei aqui para segurá-lo nos braços!” Ouvirá o que não quer e outra vez gritará a plenos pulmões: “Se você cair!...”
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∗ Inspirações paridas em certas manhãs de domingo. Cenas que foram vistas da varanda de casa em momentos distintos, em mais de um final de semana.

Fonte> Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

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