(António Tomás Botto)
Concavada/Abrantes, 1897 – 1959, Rio de Janeiro/RJ/Brasil
A Julieta do Beco das Cruzes
Aos arrancos, lá vai ela
Despedir-se do amante
Nesta manhã de Janeiro!
Coitada, morre por ele!
- Foi o seu primeiro amor
E será o derradeiro.
Todas as tardes, risonha,
Ela falava com ele
Num beco escuro de Alfama.
Era ali que ela morava;
- Até que uma noite foram
Pernoitar na mesma cama.
Estou a vê-la!, cingida
Ao corpo delgado e quente
Desse esbelto carpinteiro!
E vejo-a, dias depois,
nervosa, afastar-se dele
Chamando-lhe: trapaceiro.
Mais tarde ia procurá-lo
À oficina e chorosa
Seguia-o sem que ele a visse;
E naquela perdição
Adoeceu porque um dia
Com outra o viu, - mas, sorriu-se...
Soube-lhe bem ser «mulher»
Do homem que apenas teve
Um desejo passageiro!
Mas, agora, - cruel preço!
Dos olhos fez duas fontes
E do amor um cativeiro.
Adoeceu gravemente.
Nunca mais saiu à rua,
Sempre a tossir e a sofrer...
E era a mãe que, mendigando,
De porta em porta arranjava
Qualquer coisa pra viver.
Hoje, constou-lhe que a Guerra
O chamara para as linhas
Do combate, - e combalida,
Vai ao embarque levar-lhe
No silêncio de um olhar
Os restos da sua vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
ANTÓNIO GEDEÃO
(Rómulo Vasco da Gama de Carvalho)
Lisboa, 1906 – 1997
Poema da malta das naus
Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.
Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.
Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias
arreneguei, roguei pragas,
mordi pelouros e zagaias.
Chamusquei o pelo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me a gengivas,
apodreci de escorbuto.
Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.
Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.
Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.
Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.
O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
FERNANDO NAMORA
Condeixa-a-Nova, 1919 – 1989, Lisboa
Poema para Iludir a Vida
Tudo na vida está em esquecer o dia que passa.
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raízes,
ou asa de anjo
caída num paul.
O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos portos.
Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje o fim
e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje é o dia de amanhã.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
FLORBELA ESPANCA
(Florbela de Alma da Conceição Espanca)
Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos
Tarde no Mar
A tarde é de ouro rútilo: esbraseia
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,
Pousa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia.
Desenha mãos sangrentas de assassino!
Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar...
E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa, 1919 – 2004, Porto
O Anjo
O Anjo que em meu redor passa e me espia
E cruel me combate, nesse dia
Veio sentar-se ao lado do meu leito
E embalou-me, cantando, no seu peito.
Ele que indiferente olha e me escuta
Sofrer, ou que, feroz comigo luta,
Ele que me entregara à solidão,
Pousava a sua mão na minha mão.
E foi como se tudo se extinguisse,
Como se o mundo inteiro se calasse,
e o meu ser liberto enfim florisse,
e um perfeito silêncio me embalasse.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Nenhum comentário:
Postar um comentário