quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Newton Sampaio (Família)

| I |

Minha rica mulherzinha, que atende por este nome impossível: Eglantina Exupério Leão (na intimidade eu a chamo de Eglezinha. Nesse passo, ela se põe integralmente derretida...), é um amor de esposa. Não que a Eglantina seja dessas beldades afrodisíacas. Não são fatais os olhos seus, nem nunca o foram, em tempo algum. Seu sorriso não chega a criar pecados no cérebro dos franciscanos menos austeros. Seu corpo jamais executou, com perfeição, a sinfonia das curvas. Em predicados sinfônicos, até, minha rica mulherzinha não vai além do dueto do busto (um dueto, aliás, não muito forte, como convém às mulheres honestas...

O rosto sequer serve a sugerir longas fermatas a decadentes tenores napolitanos). Não, meus senhores. A Eglantina não é mulher que justifique, pela presença, a imensa asneira do casamento. E se eu — cidadão atacado de spleen, em pleno despertar dos trinta anos; eu, que não hei feito outra coisa senão torturar-me à procura da perfeição na forma e no ritmo, através de esculturas que fizeram meu renome de artista genuíno; eu — implacável no detalhe de um músculo, incansável no acabamento das expressões fugidias; se eu, apesar de tudo, recebi no altar, com todas as exigências sacramentais, a pessoa de Eglantina Exupério Leão, é porque encontrei na Eglezinha (ela se põe integralmente derretida, neste passo...) um predicado, comuníssimo nas mulheres, é bem verdade, mas não com a intensidade presente em minha esposa: a ignorância.

Eglantina, meus prezados amigos, é oceanicamente ignorante. Eglantina mal sabe assinar o nome, lê com extrema dificuldade, tropeçando, indagando, soletrando, e surpreende qualquer pessoa com o desconhecimento absoluto, absolutíssimo, que tem das coisas deste mundo.

Eglantina é um amor de esposa. Por isso eu a tornei como modelo à obra-prima que me incumbe realizar na escultura antes de morrer.

| II |

Minha sogra (que tem um nome farmacológico, assaz parecido com o de minha esposa: Ergotina) é o ideal das sogras, Dona Ergotina é muda. Dona Ergotina Exupério é completamente muda. E talvez fique surda no próximo ano, segundo prometeu o físico (especialista em otologia) que a examinou.

| III |

Minha cunhada mais velha é digna irmã de Eglantina e digna filha de Ergotina. Não aprendeu em tempo a sinfonia das curvas (um adepto de Schubert diria que ela é uma sinfonia inacabada. Mas eu não digo. Não digo porque acho muito besta essa piada).

| IV |

A cunhada número dois (eu tenho uma coleção delas) é flor que cresce em um monturo. Eis que sua beleza alucina todos os moçoilos válidos do bairro. Por causa dela, só por causa dela, a Assistência trabalhou onze vezes na rua dos Pássaros. Isto sugeriu a um vizinho — futebolista inveterado, torcedor do Vasco e muito crente de ser homem de espírito —, a constituição de um time: o time dos suicídios. 

Cuido que a ideia vingou. Se não vingou por completo, permitiu ao menos um novo bloco carnavalesco na rua dos Pássaros. O que é um grande acontecimento.

| V |

A terceira irmã de Eglantina é metida a moderna. Vê, nos cinemas, as donzelas americanas morando em apartamentos, correndo nos automóveis dos amiguinhos, tomando whisky (coquetel), “abrideiras” etc., e quer agir como as donzelas de Tio Sam. Eu acho isso ridículo. Acho que a irmã de Eglantina tem sobre os ombros várias toneladas de preconceitos e sobre si pesa a cretinice de várias gerações anônimas. Ela quer ser moderna, quer ser sabida. Mas não consegue ser outra coisa que não uma recalcada.

| VI |

O outro membro da família não é mulher. É homem. Tem uma vintena de anos. E, como a maioria dos rapazes da cidade, leu, por descuido, uns vagos livros de sociologia, tomou umas vagas noções de economia ou direito e já se propôs a salvar o Brasil. Imaginem que ele quer, à viva força, tirar o país do caos. Fala mal da liberdade-democracia, chama o Sr. Vargas de nomes muito feios, diz não compreender o metafísico Sr. Gustavo (o tal do Ministério da Cultura), afirma, com o grito de quem descobriu a pólvora ou encontrou um novo continente, que o Brasil é uma colônia de banqueiros. E anda por aí, levantando o braço em saudações obscenas.

| VII |

O membro número cinco também quer salvar o Brasil. Faz, porém, o gesto oposto do irmão (afinal de contas, tudo vai dar numa questão de gestos). E andou, até bem pouco, pichando as paredes, defendendo um capitão sem compostura (um capitão que não tem sequer o talento do poeta do mesmo nome), escrevendo em jornais sem conceito, berrando em comícios terroristas. Hoje, o membro número cinco não pode mais salvar o Brasil (o que deploro...). E sem ser qualquer Marquesa de Santos, está passando uma temporada sobre o Pedro I... Dessa temporada poderá advir não uma duquesinha de Goiás, mas um libelo contra os opressores de consciências...

| VIII |

Neste ponto, o garoto que Eglantina me deu: Eutrópio (reminiscência dos meus estudos de latim), entra no escritório. Lê essas coisas que eu ando escrevendo e diz, com a liberdade que caracteriza as crianças hodiernas:

— Papai. Tu és uma besta, não achas?

Então eu compreendo que a Eglantina deu um gênio à família. Eis que o meu filho Eutrópio tem a intuição profunda das coisas…

(Publicado originalmente em O Dia, Curitiba, 01/02/1936)

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

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