domingo, 21 de janeiro de 2024

Carolina Ramos (Começar de novo…)

Deixou um punhado de terra escapar devagarinho por entre os dedos. Valera a pena?!…

O estardalhaço dos jornais esquecidos pelo patrão e lidos a duras penas acendera o pavio. A bomba explodira, em seguida, fragmentando uma vida inteira! Vida de um simples, até ali, pacata e sem maiores ambições.

Serra Pelada! O que dela se dizia era para virar a cabeça de qualquer um!

O fascínio da aventura e a perspectiva de um sucesso rápido arrastaram aquele moço... não, propriamente, até Serra Pelada, inviável pela distância, mas até o garimpo mais próximo dele. Não tão próximo... nem tão distante, que não coubesse no sonho que já atraía gente de todos os lados.

Levara com ele a família completa, mulher e filho, de quatro anos - Serelepe, para quem ria com suas travessuras... e apenas Serê, para os pais.

Sentira saudade daquele pequeno pedaço de chão fértil, que até parecia seu e que havia trocado pela terra do garimpo, seca, fugida por entre os dedos. Custara a dividir com a mulher aquele sonho inquietante e doido. Doido... e doído... muito doído, sim! - acrescentava isto agora!

Naquele tempo, o sonho era apenas instigante. A mulher aceitara a ideia com inquietação e alguns protestos - embora por motivos opostos.

- Serra Pelada?! Virge!... Ocê tá loco, home?!

- Num tô loco, não, amô! Num é Serra Pelada, não, Dorinha, é bem mais perto! E é pur uns seis méis só! Um ano tarveis... no máximo! Garanto qui vortamo rico! Vô peão... e vorto patrão! Juro que vorto!

Sem lograr convencer a mulher, ele insistira: - Nosso fio vai tê um ané de dotô no dedo! E é lá que eu vô achá o ôro desse ané. Carece só chegá... metê os braço no trabaio... i enche as mão di ôro!

Voltando ao presente, afastou os pensamentos, como quem espanta uma vespa incômoda. Encheu novamente a mão de terra... Valera a pena?!...

Não liberado para viajar sozinho, carregara, teimoso, mulher e filho a tiracolo, na garupa do baio.

Viagem dura! Estirão de alguns dias! E Serê insistindo de quando em vez: - Faiz pocotó, pai, faiz... E o pai, explicando paciente:

- Nem pensá... minino! Galopeá agora é num querê chegá... ou intão querê chegá di a pé! O baio nun guenta, não! Vamu cum carma, moleque!

Não gostara do que vira logo à chegada. Algo no ar, pesado, o deixara inseguro. Sentiu ter entrado em terreiro altamente competitivo, onde a cobiça, a esperteza e o oportunismo eram elementos prioritários, é o que cedo constatara ao tentar fazer amigos à sua moda.

Forrar os bolsos... dar o fora o mais cedo possível e quanto menos notado era o que todo mundo pretendia. Fartar-se e desaparecer - quanto mais rápido, melhor... E, também... mais seguro!

Outra coisa importante logo aprendera e bem amargamente: – Mulher... feia ou bonita... no meio de um garimpo é mais do que uma tocha acesa! Incendeia mesmo! É farol deste tamanho, que não passa despercebido nunca! Mesmo tendo dono!

Dorinha não era de se jogar fora. Acendeu logo um farolão que iluminou os dias daquele mundão de homens de pele cor de terra, curtida pelo sal do suor e coração tostado, quase churrasqueado, pelo braseiro do sol que a lenha da saudade alimentava!

Sem demora e bastante preocupado, João captara a concupiscência sequer velada, naqueles olhares, que nem chegavam a ser fortuitos. Sentiu-se não só invejado... como indesejado também.

O oposto acontecia com sua mulher, logo alertada:

- Ói qui, Dorinha... presta atenção. Enquanto eu estivé fora, nun fala... e nun recebe ninguém aqui no barraco! Ninguém mêmo!... E ôio no Serê!...

Serê!... Quem primeiro demonstrara os danos e deméritos da aventura fora mesmo o garoto. Chegado, acordara febril. Pouco a pouco, perdera a vivacidade. Não era mais aquele moleque. Já nem fazia jus ao apelido. Ranheta...choramingas... estranhava tudo!

Logo depois da chegada, acontecera o roubo do cavalo. Naquela noite, a lua ia alta, velada pelas nuvens. João acordara assustado com o tropel suspeito. Levantado de um salto, pudera ver o baio sumir na noite, engolido pela escuridão.

– Bandido! Ladrão mardito! Devorve o meu baio!...

João voltara ao leito furioso, ruminando a raiva.. Ficara ainda mais pobre, sem a montaria!

De retorno ao presente, aquele homem rude tentou por fim às más lembranças, atirando longe o punhado de terra, a concluir, revoltado: - Num valeu apena, não! Mai num valeu memo!

Todavia, o pensamento teimoso, ainda preso ao garimpo, foi adiante e os remorsos levaram-no até aquela tarde terrível em que, derreado pelo trabalho, voltara para a família e a mulher esperava por ele à  porta,

- E o Serê... cumo é qui tá?- indagara apreensivo a Dorinha, que não escondia a preocupação.

- Num vai bem, não... num vai nada bem!

João procurou o filho com ansiedade. Serê dormia. Magrelo. Carnes flácidas, pegajosas. Olhos secos, fundos, semiabertos. Apalpou-lhe o ventre tumefato que se desfazia em água fétida. A testa ardia. Apavorou-se:

- Num morre não, Serê. Num morre, não, meu fio... que eu nunca mais vô me perdoá! Deus, nun dexa meu fio morrê! Num dexa, não, pur favô! Num quero mais ôro ninhum! Juro qui devorvo tudo qui achei! Ôro é mêmo coisa ruim... do dêmo! Si fosse coisa boa. Tu num teria escondido ele no fundo da terra!

Correu para fora do barraco... que Dorinha não visse as suas lágrimas cor de barro.

No dia seguinte, ao voltar mais cedo do garimpo, desconhecera a mulher submissa, que lhe abonara os passos! A mulher com quem partilhara aquele sonho doido - agora abominado! Não era a sua Dorinha aquela que o recebia à porta, de olhos vermelhos, afogados em lágrimas, rosto convulsionado! A mulher, que tinha à frente, nem parecia mulher! Era uma fêmea eriçada! Uma fera frustrada e enfurecida, a atirar-se sobre ele, em desespero, sentindo perdida a cria!

- Serê?!... balbuciou João, quase num sopro, sem coragem para ouvir a resposta.

- Vai lá... Vai lá vê teu fio! Teu fio morto! Morto, sim... de zóio aberto i seco! Zóio aberto... pra dizê pro pai dele o que a boca não pode mais dizê!... Vai lá!…

Na cova pequenina, por ele mesmo cavada, um homem abatido e inconsolável acomodara o filho envolto em panos. Alimentava o solo árido com a própria semente, sabendo que não germinaria jamais.

De que lhe valera o maldito metal amarelo, conquistado a duras penas, se nem caixão pudera comprar para o filho?! Maldito ouro que Deus escondia e que os homens se matavam para encontrar!

João penitenciava-se. Matara seu próprio filho! Perdera o amor da mulher amada! Nem todo o ouro do mundo pagaria tamanho prejuízo!!

Procurara uma flor naquela secura sangrada pelos homens cor de terra e não achara uma sequer! Cruzara dois gravetos, espetando-os... na cabeceira da cova! Sobre a cruz, uma pequena bota furada no dedão e, na sola, o nome traçado irregularmente em letra de forma: - SERÊ.

Voltara para a companheira, derrotado. Dorinha, de olhos secos, o recebera hostil e agressiva, enquanto fazia a trouxa.

- Vô mimbora!...

- Qui é isso, Dorinha! Vamu cunversá!

- Num quero cunversá coisa ninhuma! Num tem cunversa, não! Vô mimbora mêmo! Tô indo!...

João sentira a decisão. Não discutira e nem regateara. Decidira-se!

- Ispera, Dora, ispera... eu vô c'ocê tamém!

Pela primeira vez, não chamara a mulher pelo diminutivo. O instante não dava espaço para carinhos. Determinado, juntando ao acaso algumas roupas e trecos, fechava o episódio como quem fecha com decisão um livro triste, que jamais será relido.

Partira sem olhar para trás, levando às costas a trouxa, agora de peso aliviado. Em compensação, a alma, encharcada de culpas, pesava o dobro!

A meio caminho, João lembrara-se do ouro, até ali esquecido. Tão pouco! Algumas poucas pepitas sem expressão, mais nada! Meros grãos de esperança, enterrados para maior segurança sob a caminha improvisada do Serê. Que ficassem por lá! Nem que fossem as maiores pepitas do mundo! Quem, em tais circunstâncias, seria capaz de lembrar-se de algo mais, a não ser do peso daquela dor chumbada que lhe esmagava o peito?!

Sem o baio, a viagem de volta, paradoxalmente, acabara por ser mais rápida. Boa parte na base da carona de caminhão. 

Chegaram de volta ao velho sítio, alguns dias depois, junto com o Sol, numa certa manhã azul.

Nada parecia mudado. Da casa sede vinham os latidos fortes mas sempre amigos, do cão de cara feia e coração de melão. Taramela ao pescoço, a salvaguardar danos à roça, a cabra malhada também saudou-lhes a chegada, badalando o úbere pejado de leite, fuçado, ao menor descuido, por um cabrito travesso e guloso. Lá embaixo, junto ao bambual que delimitava a propriedade, duas porcas "banhudas", deixadas prenhes, deveriam ter enchido o "chiquêro" de leitões rotundos e barulhentos. João corrigiu os próprios pensamentos, "chiquêro", não, pocílga.”– como queria o patrão.

Lá no pasto... o relincho do baio... marchador dos bons!

- Faiz pocotó, pai...faiz!... Quanto galope gostoso... pocotó, pocotó, pocotó... o garoto firme à  garupa, agarrado à sua cintura, feliz... feliz!...

Sentiu a vista nublar-se... caindo em si, logo em seguida: - O quê?! O baio no pasto?... Cavalinho danado!... Sem vergonha!... Êta, fujão dos diabo... vortô sozinho pra casa... e eu de bobo xingando os ladrão, qui nem existiam!...

Reconsiderou: - Êta cavalinho sabido, isto sim! O baio é qui tava certo! Burro mêmo é quem chama os bicho de irracioná! Burro só eu mêmo, qui num vortei junto co baio! Exaltou-se: - Burro, sim... sô mais burro que o mais burro dos burro!!!

Apesar da qualificação negativa, João reconhecia que ali no sítio era quase doutor! Mêmo sem diproma, mêmo sem aner, sô capaiz de curar bichêra de gado, praga de carrapato, gôgo e pivide de galinha. Sei cumo tratá dor de barriga, sarampo, catapora, i tamen papêra da criançada vizinha. Já tinha sido inté "partero"... não de muié, mais... si perciso fosse, era inté capaiz de arriscá...

A gabolice calava-se ante a verdade nua - ...Pesá de tudo, não pude sequé sarvá a vida do meu própro fio!... o meu Serê!

Angustiado, João estalou um tapa na testa, a espantar pensamentos como quem espanta aquela vespa pronta para atacar.

Tinha - lá no roçado - ao pé da casa aconchegante que ocupavam, um canteirinho de ervas, remédio pronto pra cada "causo". Trabalho da Dorinha. Ali, os dois eram gente importante! Ali... era o lugar verdadeiro dele e da companheira! Nunca deveria ter posto o pé fora de lá!

E o patrão? Lembrava-se de como temera encontrá-lo ao retornar. Teria coragem de olhá-lo de frente? Quando se despedira, com voz amiga, ele o avisara: - Vais quebrar a cara, João! Olha que a vida lá fora não é nadinha fácil... seu moço!

Apalpou o nariz. A cara não estava quebrada. Mas o coração... este, sim, estava aos pedaços! E dentre esses pedaços, faltava um pedacinho de nada... tão pequenino... mas que pedacinho importante era aquele! Enxugou a lágrima com as costas da mão.

- Bem... num dianta nada chorá adispois do leite derramado... agora, o importante mêmo era sabê que a porta não tinha sido fechada...

Num dianta mostrá cara triste. Coração partido é coisa que nenhum patrão... por mais sabido qui seje, num inxerga, mêmo! Ô intão, faiz qui nem vê!

...Era hora di entocá a sodade no peito... i tocá a vida pra frente.... cumo si nada tivesse acuntecido.

Um galo clarinou boas vindas. A brisa beijou-lhe o rosto. E aquele homem sofrido aspirou bem fundo o ar puro da manhã, perfumado pelo aroma daquelas plantas viçosas cuja maioria ajudara a plantar. Era como se estivesse determinado a expulsar de si toda poeira nociva que lhe impregnava os pulmões.

Embebeu o olhar no ouro do sol. O açude faiscava. Pepitas de ouro adornavam o laranjal.

Só agora João reconhecia o tamanho do tesouro trocado por um vago sonho!

- Sonho?! Pesadelo dos brabo.., isto sim!

Apanhou novo punhado de terra, beijando-o com ternura: – Isto, sim, é qui é ôro puro!... Não brilha, não... mas vale mais du qui uma Serra Pelada intêrinha!

Uma última lembrança pacificou o ânimo daquele homem. 

Alguns dias após o retomo, deixando para trás, enterrados em definitivo, os despojos de um pesadelo, João notara na mulher o leve esboço de um sorriso embora triste. Arriscara um carinho quase tímido!.., Não fora repelido. Encorajado, chamara a companheira ao peito... gaguejando-lhe ao ouvido:

- Dorinha... meu amô... me perdoa... Me perdoa pelo amô di Deus! Vamo cumeçá tudinho ôtra veiz... vamo?!...

Mais tranquilo... aquele João, que a duras penas voltava a ser alguém, firmou o passo e rumou decidido para o lar...

O baio lá de longe relinchou... a saudá-lo... como se nada de grave houvesse acontecido entre eles.

Alguns meses depois, o corpo arredondado de Dorinha mostrava que o segundo capítulo daquela história começara a ser escrito.

Fonte> Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021. Enviado pela autora.

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