quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Geraldo Pereira (Tampa-de-Chaleira)

Nos meus inícios na Faculdade de Medicina, na fase em que estudava o esqueleto humano, colega meu dos bancos acadêmicos, visto, distraidamente, de olhos fechados, quase, passando a mão, levemente, numa tíbia, apoiada entre o seu próprio queixo e a mesa de dissecação, não se livrou do cognome para o resto da vida: Chupa Osso. Na realidade, fazia ali, daquela forma e daquele jeito, o necessário exercício no aprendizado dos segredos da Anatomia, percorrendo com o tato as saliências e as reentrâncias ou identificando orifícios por onde emergiram ou imergiram nervos, veias e artérias. Afinal, sabia da importância dessas bases morfológicas para o mister hipocrático e não podia descuidar dos esforços paternos, com os quais se sustentava, oriundo como era dos contrafortes da Borborema.

Muitos anos depois, em congresso importante, outro colega me indaga: “Como é o nome, mesmo, de Chupa-Osso?” Não podia, com certeza, tratar o companheiro daqueles anos pelo apelido, simplesmente, em ambiente assim, de ciência e de pesquisa. E não tratou, porque do prenome, pelo menos, eu sabia.

Os apelidos foram, realmente, a tônica daqueles convívios. Por qualquer motivo, que fosse, surgia um cognome a mais e de pronto a turma toda – 165 alunos, se pouco – adotava essa imposição de um batismo improvisado e até desavisado. Fosse rapaz ou fosse moça, dado a bincadeiras ou sisudo, na forma da lei, cada qual carregava um e ainda hoje, nas reuniões de aniversário dos anos de formado, assina-se uma lista, parecida com a do passado e de quebra se acrescenta o nome dessas eras. Alguns, todavia, são de todo impublicáveis, mas outros, francamente, despregam as bandeiras, socializando o riso. 

Como esquecer do nosso Fofa, do Defunto ou do Gia, do Velho e de Bico de Ouro, conterrâneos, esses dois, amigos até na morte? E a morte levou Cachorrão e carregou, do mesmo jeito, o caríssimo Timbu. A outros levou, também, roubando, de todos nós, a chance desses convívios. Ou ainda, como não lembrar de Todo Feio, virado hoje e muito bem, num poeta de boa rima, prosador dos melhores? Esquecer de Mongrô, é atentar contra a paz, a serenidade e os bons costumes. Pior do velho Barney? E o Pluto, vejam só?

O maior de todos os cognomes dessa turma, na emergência já dos trinta anos de formada, não poderia ser outro, senão o de Tampa-de-Chaleira. Ora que o homem, chovesse ou fizesse sol, estivesse na sala de aula ou nos laboratórios, nas ruas do Recife ou nos anfiteatros de Anatomia, suava feito um desadorado. Molhava a camisa em grandes rodas e chegava, até, a umedecer o pano das calças, dizia!

Certa vez, o velho Tampa, chegando a um representante farmacêutico, acompanhando um périplo de estudantes, numa romaria em busca de amostra grátis, sem saber que remédio pedir, perguntou ao colega mais próximo o nome de um produto qualquer. E o companheiro, irreverente como era, não titubeou, lembrou-se da recepcionista, mulher quarentona e viçosa, de ancas mais do que largas e busto considerável, com prenome diferente e recomendou que pedisse Fulana. O Tampa, na inocência do gesto, ainda insistiu mais, indagando se pedia em comprimidos ou em pó, em xarope ou injetável.

Quase apanha da figura! Queria, de qualquer forma, aquela farmacêutica fórmula e não entendeu a mulher, que raivosa e impiedosa, sustentando-lhe pela breca, perguntava-lhe, em voz alta: “Como se chama a sua mãe?”

Guardei o necessário sigilo das relações biunívocas, sempre, entre o apelido e o nome. Não vou, agora, apontar colegas que na prática do dia-a-dia são expoentes da ciência, pelo cognome, então. E tampouco dizer o meu próprio, escrito aí por cima. Guardei também para mim, apenas, os demais apelidos, aqueles atribuídos às moças, por hesitação da consciência. Mas desses, pode crer o leitor, há alguns que são deliciosos, simplesmente. E por aí vai.

Fonte> Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público

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