domingo, 28 de janeiro de 2024

Coelho Neto (O pescador e as sereias)

Reunidas em conselho sobre as sirtes
(recifes), onde o mar quebrava desfeito em branca e fervente espuma, comentavam as sereias a indiferença do pescador. E dizia a mais velha, uma das que cantaram a Ulisses:

— Sem dúvida algum Deus o protege. Outros mais atilados, navegadores dos mares largos, que têm visto as grandes belezas do mundo e têm gozado os seus múltiplos encantos, esquecendo o governo dos navios pelas canções com que os atraímos, aqui têm vindo naufragar. Quantas galeras jazem no fundo do pélago e naus de alto bordo e veleiros de guerra! Para que o pescador, que diariamente cruza estes mares, passe sem voltar o rosto ao nosso apelo é preciso que um poderoso Deus o guie e o aconselhe contra nós. Sendo assim é melhor desistirmos de perdê-lo.

Concordaram todas com a mais Velha e já se dispunham a afundar, esquecendo o pescador, quando a mais nova, erguendo-se das espumas, nua e deslumbrante na refulgência dos cabelos que a iluminavam, disse:

— Sou capaz de atrair o pescador e aposto tantas pérolas quantos são os fios dos meus cabelos.

— Envelheceremos e contá-los, se perderes; disse uma das filhas do mar.

Foi aceita a proposta e ficou decidido que a encantadora esperasse sozinha nas sirtes, dando-se-lhe a harpa de coral mais sonora do abismo.

Assim foi.

Caía a tarde em desmaio, estrelava-se o céu pálido, o mar começava a lampejar em fagulhas. Um barco — a vela bojada, o pescador ao leme, — aparecem roçando a vaga.

Travou a sereia da harpa e, ao som das cordas, desferiu a voz. Alciones que esvoaçavam bateram lestas (ágeis) as asas largas e vieram pousar nas sirtes, as ondas calavam o seu marulho, o mar cobriu-se de estrelas, a lua, redonda e branca como um escudo de prata, boiou nas águas. Dir-se-ia que os próprios astros haviam baixado do céu seduzidos pela voz deliciosa.

Entretanto o barco singrava com o favor do vento e o pescador, ao leme, derreado sobre os cotovelos, de olhos perdidos, lá ia. Passou e rastreando tão de perto o perigo que a raareta* do seu barco rolou e desfez-se nas sirtes. Revoltou-se a sereia e, vendo-o longe, despeitada, rebentou, frenética, as cordas da harpa arrojando-a ao mar.

Afluíram à tona todas as sereias e, rindo em galhofa, logo reclamaram o preço da aposta.

— Tens que trabalhar! disseram.

— Levarás toda a vida a procurar tantas pérolas quantos são os fios dos teus cabelos.

— E talvez não bastem as pérolas todas do mar.

Riam quando um feio tritão, emergindo das águas, coroado de limo, coberto de escamas de prata, disse:

— Revoltai-vos contra a indiferença do pescador que não veio pelo vosso canto. Os que perecem nos abrolhos chegam trazidos pela sedução dos vossos cantares. Aquele, porém, não cairá em ciladas.

— Será, porventura, surdo!? gracejou uma das cavaleiras da vaga.

— Por enquanto... é como se fosse.

Logo, lançando mão do búzio que trazia à bandoleira, encheu-o no mar até as bordas e, oferecendo-o a uma das sereias, disse:

— Toma nas tuas pequeninas mãos algumas gotas d'agua e põe-nas aqui.

Obedeceu a intimada, mas toda a água transbordou:

— Nem uma gota ficou, tudo que era demais esvaiu-se. Assim como se deu com a água e o búzio, dá-se com o vosso canto, sereias, e o moço pescador. Naquele coração, cheio do amor da noiva, não cabem outros encantos. Cantai! E cantareis em vão. Haveis de vê-lo passar, como hoje passou — sentado ao leme, os olhos ao longe, vendo, através da névoa da distância, a ilha em que vive aquela que o seduz. Não desanimeis, porém; tende paciência e fiai-vos no tempo. Assim como, se deixardes este búzio exposto ao sol, em breve toda esta água que o enche terá desaparecido evaporada, podendo vós enchê-lo, porque o achareis vazio, assim também, um mês depois das bodas do pescador, cantai e vê-lo-eis dirigir o barco rumo às sirtes.

Com tais palavras despediu-se o tritão mergulhando de chofre. E as sereias ficaram trebelhando e rindo sobre as espumas vivas que o luar prateava.
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* Raareta = não encontrei o significado em nenhum lugar. 

Fonte> Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.

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