quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Maria Amália Vaz de Carvalho (A propósito de um livro)

Há momentos em que eu não posso deixar de me sentir desconsolada. Parece-me nesses momentos que a humanidade está passando por uma das crises mais graves da sua vida de tantos séculos.

E quem terá forças para conservar-se espectador indiferente dessa dolorosa tragédia de que é teatro o mundo inteiro!

Teorias que se atropelam e se contradizem, sistemas políticos que mutuamente se combatem, opiniões tão variadas, acerca das coisas graves e das coisas insignificantes, que não nos resta meio algum de descortinar a verdade em meio de tão babilônica confusão.

Na prática o desmentido formal e permanente a todas as doutrinas que se pregam e se propagam!

Celebra-se a apoteose da família, e a família decadente, desnorteada, desunida, apresenta o reflexo fiel desta quadra de desalento e de incerteza!

Enquanto os sonhadores erguem um altar à justiça, como a deusa moderna que mais cultos merece, a injustiça aclamada, protegida, triunfante campeia neste mundo onde a vitória já não pertence ao mais forte, mas sim ao mais astuto!

A política, que parecia dever ser aquela ciência complexa e respeitável de conduzir as sociedades ao mais alto grau de aperfeiçoamento material e moral, não é senão um mercado abjeto, onde se debatem os mesquinhos interesses individuais, não aqueles interesses que são a base do bem coletivo, mas os que se traduzem na exploração do homem pelo homem.

A guerra aqui acesa e selvagem, de uma selvageria refinada e científica, acolá disfarçada e hipócrita, arma-se por toda a parte, como nos séculos que lá vão, igualmente funesta, embora a revistam mais prestigiosos aspectos.

Fala-se em paz, em fraternidade universal, prega-se uma religião humana que parece querer e dever suprir a religião divina, mas os modernos crentes d’esse dogma que assenta no direito, na justiça, no amor universal, atraiçoam tanto as suas doutrinas, como atraiçoavam a sua fé os católicos mal esclarecidos das épocas de ascetismo rude, e de fanática superstição.

Para onde vamos nós?

Se vamos para o Bem, o que é que origina esta dolorosa inquietação, que avassala e confrange todas as almas, este contraste incompreensível, entre o que se pratica e o que se pensa?

Se vamos para o Mal, para que nos falam do progresso, da perfectibilidade humana, das conquistas da civilização, dos arrojos felizes da ciência, de tudo que parece preparar ao homem uma quadra luminosa, feliz, nunca realizada até agora?

Dantes, nestas horas de dúvida, de angústia opressiva, íamos nós procurar consolação na palavra animadora e harmoniosa dos que, com os olhos fitos na estrela do ideal, indicavam ao homem o rumo que ele tinha a seguir, para não se perder na sua gloriosa ascensão.

Hoje, esses pilotos da nau do futuro estão mudos ou descreem também!

Mais doloroso ainda que o silencio desalentado, é o “rictus” sarcástico com que eles assistem a luta estranha e confusa de tantos elementos contraditórios e incompatíveis.

Depois a literatura, que é o espelho da alma das sociedades, é hoje por toda a parte um brado unanime de negação.

Não reconstrói, não modifica o que está feito, trata de o desmoronar pedra por pedra!

Há um homem em França que refaz, colocado num ponto de vista diverso, a obra colossal de Balzac.

O romancista mais admirável da França, aquele que fez do romance um ramo das ciências sociais, fez num momento, que tem por força de ficar, a síntese de sua época.

Pintou, e com que potência da verdade! Os reis, e os operários, as duquesas sentimentais, e os artistas convulsionados pela nevrose do seu tempo, os políticos, os sábios, os pensadores, os literatos; as pecadoras do alto mundo, e as pecadoras do mundo equívoco; os financeiros, e os lutadores ambiciosos; os que vinham perder a alma e gastar o corpo nessa Paris elétrica e absorvente, que atrai os gênios e os monstros, e os que vinham ali conquistar a fortuna, o poder, a soberania omnipotente.

Na sua obra complexa, enorme, que às vezes tem na distância um não sei que de monstruoso, encontra-se viva, palpitante, com os seus vícios, com as suas paixões, com o seu talento ardente, com a sua magnética e irresistível sedução, uma das épocas mais características da civilização da França, o que significa a civilização da Europa.

Se em Balzac encontramos as florescências rubras do mal, nem por isso nos seduzem menos as suavidades castas da virtude.

Ao pé de Madame de Marneffe, a pequenina e graciosa fera parisiense, felina e nervosa, com carícias que mordem e furores que acariciam, há a doce figura de Eugenia Grandet, a mais dolorosa virgem, que a imaginação moderna ainda concebeu e idealizou.

Ao pé de Luciano de Rubempré o ambicioso efeminado e mórbido; de Vautrin o brutal lutador que seria um líder do século XVI e que só pôde ser um forçado no século XIX; ao pé de Marsay o político sagaz, que faz dos homens, das mulheres e das coisas, meros instrumentos da sua fortuna, que não tem lei nem fé, e que é capaz de assassinar com um sorriso de dândi, temos de Artes o pensador austero, e pobre escritor para quem a literatura é um magistério e não um ofício, temos Cesar Birotteau, a sublimidade burguesa, o honesto comerciante que tem palavra de duque, que é perfumista com a mesma nobreza de abnegação e de honradez, com que se é sacerdote, e que glorifica toda uma classe de que se riem os frívolos, sem saber quanta heroicidade é precisa para saber guardar imaculada em um peito de burguês, a honra de um paladino.

Dizem que o vício poluía na obra de Balzac com uma exuberância de vegetação inacreditável.

Ele não foi mais do que o analista apaixonado da sua época.

Adorou-a pelo que ela tinha de grande, compreendeu que lhe podia desnudar as chagas, visto que ao lado delas podia mostrar tão admiráveis belezas.

Foi implacável na sua justiça.

O seu tempo seduziu-o pelo que havia de brilhante nos seus vícios, de fecundo e poderoso nas suas paixões, de arrebatado e criador no seu gênio, de raro e dedicado nas suas virtudes.

Hoje no artista que segue as pisadas de Balzac, que não tem a sua potência criadora, mas que tem como ele, e talvez mais metodicamente do que ele, o estudo paciente e investigador, que vemos nós que possa dar-nos aquela sensação de prazer agudo que a leitura conscienciosa de Balzac dá a um verdadeiro artista?

Emilio Zola também descreve a sua época.

É artista, porque sente e sabe fazer sentir.

Diz-se imparcial!

Faz viver nos seus livros a sociedade de que faz parte; entra nos palacetes de pedraria rendilhada dos modernos financeiros, os reis do mundo atual, percorre os salões dourados e os vestuários femininos fantasistas, as salas de jantar, onde se reúnem as relíquias mais preciosas de umas poucas de civilizações, janta nos restaurantes de mais fama, visita nos seus camarotes da ópera ou dos italianos as mundanas mais elegantes, as altas sociedades mais admiradas e invejadas, está no segredo de todas as operações da Bolsa, escutou a uma porta todas as combinações e convênios diplomáticos, penetrou com a sua perspicácia tenaz no interior da alma que anima o seu tempo, falou com os artistas, com os sábios, com os poetas, com as mulheres; subiu aos oitavos andares onde dormem amalgamados numa dolorosa e medonha promiscuidade os miseráveis dessa Paris, cuja superfície é tão sedutora e tão brilhante; viu os farrapos que cobriam o corpo desses indigentes, e os vermes que corroíam a alma desses párias; escutou as perfumadas confidências que murmuram devagarinho uns lábios frescos e vermelhos, por detrás dum leque onde dançam a gavotte (dança) umas pastorinhas de Watteau.

Observou de perto o que há de mais brilhante e o que há de mais abjeto, o que há de mais puro e o que há de mais ignóbil.

Dessa observação tão variada e tão completa que resultado colheu?

Não o posso dizer ao certo, sei só que não há nada mais desolador e mais triste do que a leitura de um livro de Zola.

E Zola é, depois de Tlambert, o grande mestre que morreu, o escritor de mais pulso da moderna geração realista.

Os outros não têm o talento dele, não têm o alcance funesto ou bom, mas em todo o caso poderosíssimo da sua obra, não têm a sua paciência de beneditino, exercida com os processos da nova escola.

Isto não é dizer mal dos que trabalham agora, é notar e assinalar um dos assinalar da confusão que hoje nos desnorteia.

Acudiam-me todos estes pensamentos, imagina como, leitora?

Ao ler um novo livro de Feuillet, ultimamente publicado em Paris Le journal d’une femme.

Feuillet é por excelência o escritor elegante e delicado.

No fundo, pode ser que a obra dele tomada no seu conjunto não seja de uma moralidade tão cauterizadora como a que resulta dos livros de Zola.

Ninguém diga que Zola é um escritor imoral, não; ele é simplesmente um escritor misantropo: vê as coisas pelo lado mais negro, e as suas bacantes, nuas como são, não têm efeitos enervantes, doem como um cáustico aplicado sobre uma úlcera aberta.

Ao lê-lo, a gente não tem de certas tentações de imitar os seus deploráveis heróis; pelo contrário. Sente-se ferida, humilhada, quase que angustiada, e exclama tristemente: Meu Deus! Pois a humanidade é isto!

Octavio Feuillet é, por assim dizer, o contraste do seu ilustre contemporâneo.

Escreve das mulheres e para as mulheres com pena de ouro e nácar.

Feuillet é o último romântico, depois do romantismo ter morrido, como Balzac é o primeiro realista antes do realismo nascer.

Para Feuillet, o delicado observador, as paixões são doenças da alma; para Zola, o anatomista implacável, as paixões são doenças do corpo.

O convulso e repugnante histerismo das mulheres de Zola não tem nada que ver com a sentimentalidade melancólica das mulheres de Feuillet.

Nenhuma delas — deixe-se isto bem claramente registrado para honra e felicidade do sexo feminino — nenhuma delas é a verdadeira mulher, a que tinha a obrigação de ser a mulher do futuro, já me não atrevo a dizer da que o será.

Octavio Feuillet, que está talvez perto demais das cruas pinturas do realismo, intentou neste seu último livro, chamado Le journal d’une femme, reabilitar as ideias românticas, que visto perderem tantas mulheres, podem também salvar algumas.

Ele que sabe tão bem dar vida às suas pálidas e nervosas heroínas, que têm na boca o sorriso da esfinge, que têm na voz uns feitiços misteriosos, que têm no gesto uma graça irrequieta e caprichosa, que sabem arrastar o homem até a beira do crime com um aceno das suas mãos esguias e aristocratas, ele, o criador do Conde de Camors, esse último produto da literatura byroniana, que endoideceu de amor literário tanta mulher, ei-lo que se propõe desta vez o difícil tema de explicar a que nobres e altos sacrifícios o romantismo bem entendido pode levantar uma mulher.

Foi arrojada a empresa; arrojada, mas feliz.

Le journal d’une femme, livro que eu já daqui recomendo a todas as minhas leitoras, é uma joia admirável, cinzelada pela mão de um artista de coração.

E depois são tais os exageros e desmandos da chamada escola realista, é tal o amesquinhamento a que ela reduz a humanidade, que é bom que um escritor de tão prestigiosa eloquência como é Octavio Feuillet mostre que, ao fim de contas, nem tudo era mal na geração que os moços de hoje tentam destronar com tão arrogante desdém.

Roubar ao homem e sobretudo a mulher aquele ideal em que até agora todos punham a mira embora o julgassem inacessível, é despir a vida das poucas flores que ela pôde ter.

Não; o homem não é só um ser organizado que pensa, é também uma alma que ama, espera e crê!

Nesta era de transformação e de incerta claridade, é bom que uma voz se erga e diga bem alto que a paixão só é criminosa quando mal dirigida, que o excesso do sentimento só é ridículo quando mal aplicado, que a abnegação inteira e absoluta tem gozos superiores a todos os gozos da matéria, e que as almas boas e as almas grandes descobriram uma linguagem misteriosa, na qual falam com Deus.

Não basta descrever minuciosamente com uma perversão de gosto, deveras deplorável, tudo que há mau, grotesco, ou vicioso na criação; não basta ter em si tão acentuada preocupação horrível, que se deseje ver com o microscópio do naturalista, para bem lhe distinguir os defeitos, as anfractuosidades, as máculas, os vermes, de tudo que à simples vista seria harmonioso e belo.

Aquele a quem se roubam todas as ilusões salutares cumpre apontar para algum bem que ainda lhe ficará na terra, bem verdadeiro que o compense de todas as suas perdidas alegrias mentirosas!

Não basta negar, é necessário afirmar com convicção robusta; não basta demolir, é preciso ao lado dos edifícios que se derrubam e desmoronam construir novos edifícios mais ricos e mais seguros.

Octavio Feuillet fez este livro, como um protesto de escola, sem, contudo, perder com esta qualidade um tanto dogmática, o seu interesse dramático, a vida intensa, tão indispensável às verdadeiras obras d’arte.

Dado o caso de se chamar romantismo ao excesso de certos e determinados sentimentos, a concepção mais ou menos quimérica que temos das coisas da vida, resta provar se o romantismo pode ou não pode ser nocivo conforme o terreno em que medrar e o meio em que se desenvolver.

A principal heroína do romance, aquela que escreve o seu Diário, ao qual dá o título de livro, é uma rapariga apaixonadamente romântica, tudo quanto há mais romântico, quer dizer tudo quanto há de menos prático e real.

Por isso sendo moça, formosíssima, sentindo cantar dentro da sua alma a festiva e triunfante formosíssima dos vinte anos, tendo uma destas belezas características que dão a certas mulheres um aspecto de deusas, amando com aquela primeira e casta ternura das virgens um homem em tudo digno dela, sacrifica todas estas superioridades da natureza, todas estas radiosas promessas de felicidade a quem? A que?

A um pobre mutilado que morria de amor por ela, a um soldado que voltara da guerra sem uma perna e sem um braço, informe, grotesco, irremediavelmente desgraçado, e que, assim mesmo do fundo do abismo em que o destino o lançara, ousou amar aquela mulher olímpica, e teve a audácia de tentar morrer por causa dela.

Enquanto ele viveu, foi-lhe fiel como as mulheres dignas o sabem ser, consolou-o de tudo que perdera, levou a luz da sua caridade bendita aos antros em que aquela pobre alma se debatera inutilmente por tanto tempo.

Mais tarde quando o marido morre, abençoando-a como se abençoa um anjo, ela, livre de novo, torna a encontrar o homem que amou uma vez, e que não soube esquecer.

Esse é então marido da amiga, da infância, da juvenil viúva.

Não são felizes, os dois, mas ela, a intrépida, a caridosa criatura, lá está tentando da abnegação de cada um deles fazer a felicidade de ambos.

Não o consegue, e quando a amiga, culpada e arrependida se mata para fugir ao horror de mentir eternamente a seu marido, só ela no mundo recebe a confidência do seu crime, confidência que numa carta repassada de dor a doída criança lhe pede que transmita ao esposo ultrajado.

Ficaram ambos livres em face um do outro, ambos viúvos, ambos tendo cumprido a missão que o destino lhe confiara.

Nada os desune agora, nada, a não ser uma dúvida que punge o ânimo daquele, que hoje ela ama perdidamente com a paixão concentrada de tantos anos de sacrifício.

— Porque foi que a minha mulher se matou? – pergunta ele então. Às vezes lembro-me que foi talvez o desamor que eu não soube ocultar bastante. Se assim for, fugirei. Não quero gozar uma ventura de que não sou digno. Se eu matei uma inocente e casta criança, quem me dá direito de ser ainda feliz na terra?

Só ela o sabe, só dela depende aquela ventura divina, de que o dever e a caridade a fizeram fugir noutro tempo.

Pois a ninguém revelou o segredo da sua amiga morta, da doce criatura que a paixão fustigara e que a paixão matou!

Calou-se, deixou que o noivo da sua alma se afastasse para sempre, pungido por um remorso que o separava da ventura, e olhando para o berço da filha escreveu estas palavras que vertem lágrimas, as santas lágrimas, que os realistas não conhecem:

«Restas-me tu, minha filha... Escrevo estas linhas ao pé do teu bercinho... Espero que um dia estas páginas façam parte do teu enxoval de noiva; talvez elas te digam que queiras muito a tua pobre mãe, tão romântica!... Dela saberás talvez que a paixão e o romance podem ser bons, com a ajuda de Deus, porque elevam os corações e ensinam-lhes os deveres superiores, os grandes sacrifícios, as elevadas alegrias da vida. É verdade que eu choro ao dizer-te isto, mas olha que há lagrimas que causam inveja aos anjos.”

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.

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