Contam que um homem muito rico enviuvou e casou novamente, tendo uma filha que era mocinha e linda. A madrasta antipatizou logo com a enteada e se tomou de ódio quando teve uma filha e esta era relativamente feia, comparada com Maria.
O homem possuía propriedades espalhadas e vivia viajando, dirigindo seus negócios. Durava pouco tempo em casa e nesses momentos Maria passava melhor. Na ausência do pai, a madrasta obrigava-a aos serviços mais rudes e pesados, alimentando-a do que havia de pior e em quantidades insignificantes.
A vida ficou insuportável para a moça que se consolava rezando e chorando. No caminho do rio, onde ia lavar roupa, encontrava sempre uma velhinha de feições serenas e muito boa. Maria acabou contando seus sofrimentos e o silêncio que guardava para não magoar o pai. A velhinha animava-a com palavras cheias de doçura.
Como a madrasta fosse se tornando mais violenta e brutal, a enteada resolveu abandonar a casa e ir procurar trabalho longe daquele inferno. Encontrou-se com a velhinha e, confessando sua ideia, a velha concordou, aconselhou-a muito, deu-lhe a bênção e, na despedida, tirou uma varinha, pequenina e branca como prata, dizendo:
– Leva esta varinha, Maria, e, quando estiveres em perigo, desejo ou sofrimento, deves dizer: “minha varinha de condão, pelo condão que Deus te deu, dai-me”. E tudo sucederá como pedires.
Maria agradeceu muito e fugiu. Antes, obedecendo ao conselho da velha, fez uma grande capa de palha trançada com um capuz onde havia passagem para olhar, e meteu-se dentro.
Depois de muito andar, chegou a uma cidade importante. Pediu emprego num palácio e lhe disseram não haver mais lugar. Ia saindo triste e com fome, quando um empregado lembrou que precisavam de alguém para lavar as salas, corredores e escadas, e limpar os aposentos da criadagem. Maria aceitou o encargo e, graças ao seu vestido singular, só a chamavam “Bicho de Palha”.
Suja, silenciosa, retirada pelos cantos, trabalhando sempre, Bicho de Palha não incomodava ninguém e todos a toleravam.
O palácio era de um príncipe moço, benfeito e airoso, que ainda tinha mãe, e estava na idade de casar. Noutro palácio, no lado oposto da cidade, realizariam festas durante três dias. As moças estavam alvoroçadas com os bailes, assistidos pelos rapazes da sociedade. No palácio a conversa versava sobre os bailes. Amas, visitantes e criadas comentavam a organização e o esplendor das três noites elegantes.
Finalmente chegou a primeira noite. Bicho de Palha, através dos orifícios de sua máscara, olhara o príncipe e o amava sinceramente. Rondava, discretamente, perto dele, ansiando por uma ordem. Já de tarde, não havendo outra empregada por ali, o príncipe gritou:
– Bicho de Palha! Traga uma bacia com água...
Bicho de Palha levou a bacia e o príncipe lavou o rosto. Depois todos foram para o baile, uns para dançar e outros para ver.
Ficando sozinha no seu quarto escuro, Bicho de Palha despiu a capa, pegou a varinha e disse como a velhinha lhe ensinara:
– Minha varinha de condão! Pelo condão que Deus te deu, dai-me uma carruagem de prata e um vestido cor do campo com todas as suas flores.
Mal as palavras foram ditas, apareceu a carruagem de prata, com cocheiros e servos, e um vestido completo, do diadema aos sapatinhos, cor do campo com todas as suas flores.
Bicho de Palha vestiu-se, tomou a carruagem e foi para o baile onde causou sensação. O príncipe veio imediatamente saudá-la e só dançou com ela, não permitindo que os outros moços se aproximassem. Confessou que estava impressionado e perguntou onde ela residia. Bicho de Palha falou:
– Moro na Rua das Bacias...
À meia-noite em ponto, pretextando ir respirar o ar livre, a moça correu para sua carruagem que desapareceu na estrada. O príncipe ficou inconsolável e saiu da festa logo a seguir.
No outro dia, no palácio, as criadas contavam ao Bicho de Palha as peripécias do baile e a princesa misteriosa que fora a roupa e o rosto mais formoso da noite. O príncipe despachara muitos criados para procurar a Rua das Bacias e todos regressaram sem saber informar.
Nessa tarde, o príncipe pediu a Bicho de Palha uma toalha. Quando todos partiram para a festa, Bicho de Palha pegou a varinha e obteve uma carruagem de ouro e um vestido cor do mar com todos os seus peixes. Vestiu-se e foi para o palácio do baile. Logo na entrada, toda a gente a reconheceu e aclamou-a como a mais elegante, graciosa e simpática. O príncipe não saía de junto, conversando, dançando, fazendo mil perguntas. Insistiu pelo endereço da moça.
– Não moro mais na Rua das Bacias e sim na Rua das Toalhas. Mudei-me hoje.
Aconteceu como a primeira noite. Bicho de Palha inventou uma desculpa e meteu-se na carruagem que correu como um relâmpago. O príncipe saiu também e passou o outro dia suspirando e mandando procurar, em toda a cidade, a Rua das Toalhas.
Bicho de Palha ouviu as impressões entusiásticas dos empregados na cozinha, todos contando a paixão do príncipe e a beleza da moça.
Na tarde desse dia o príncipe pediu a Bicho de Palha um pente. Vendo-se sozinha no palácio, Bicho de Palha invocou o poder da varinha de condão e recebeu uma carruagem de diamantes e um vestido da cor do céu com “todas as suas estrelas”.
Entrando no salão do baile, Bicho de Palha recebeu as saudações como se fora uma rainha. Ninguém jamais vira moça tão atraente e um vestido tão raro. O príncipe andava atrás dela como uma sombra, servindo-a e perguntando tudo, doido de amor. Bicho de Palha disse que se havia mudado para a Rua dos Pentes, definitivamente. E dançaram muito.
Perto da meia-noite, sabendo que era a hora em que a moça desaparecia como se fosse encantada, o príncipe chamou seus criados e mandou abrir uma escavação junto do portão do palácio, esperando que a carruagem parasse. Tal, porém, não se deu. Bicho de Palha saltou para a carruagem e esta disparou como um raio, pulando o fosso, mas o solavanco fora tão brusco que um sapatinho de Bicho de Palha, atirado fora da portinhola, perdeu-se. Um criado achou-o e levou-o ao príncipe que ficou satisfeitíssimo.
Debalde procuraram na cidade a Rua dos Pentes. O príncipe deliberou encontrar a moça por outra maneira. Mandou levar o sapatinho a todas as casas, calçando-o em todos os pés. Quem o usasse, perfeito, nem largo nem apertado, seria a encantadora menina dos bailes.
Os criados andaram rua acima e rua abaixo, calçando o sapatinho nos pés das moças e das velhas. Nenhuma conseguia dar um só passo com ele no pé.
Voltaram os criados para o palácio e experimentaram calçar os chapins (antigo calçado de sola alta para mulheres) nas empregadas e amas. Nada. Finalmente uma criada engraçada lembrou que Bicho de Palha não fora convidada para calçar o mimoso calçado.
Riram todos, mas para que o príncipe não os acusasse de ter deixado alguém de calçar o sapatinho, mandaram buscar Bicho de Palha, como motivo de riso, e lhe disseram que experimentasse. Bicho de Palha, com a varinha na mão, pediu que lhe aparecesse no corpo, por baixo da capa de palha o vestido da terceira noite da festa.
O príncipe veio assistir. Bicho de Palha, cercada pela criadagem que ria, meteu o pé no sapatinho e este lhe coube perfeitamente. Depois estirou o outro pé e todos viram que calçava sapatinho igual ao primeiro. Mal podiam crer no que viam, quando caiu a palha, e apareceu a moça formosa dos três bailes, com o vestido cor do céu com todas as estrelas, o diadema com a lua de brilhantes, tudo rebrilhando como as próprias estrelas do firmamento.
O príncipe precipitou-se abraçando-a e chamando por sua mãe para que conhecesse a futura nora.
Casaram logo. Bicho de Palha contou sua história, e a varinha de condão, cumprida a vontade da velhinha, que era Nossa Senhora, desapareceu, deixando-os muito felizes na terra.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Nota – Num conto português de Teófilo Braga, Linda Branca, de S. Miguel dos Açores, disfarça-se com uma peliça e uma máscara muito feia.
A universalidade da história de Maria Borralheira dispensa bibliografia. É a Gata Borralheira, Maria Borralheira de Portugal e Brasil, Cendrillon, Cinddarella, Gatta Gennedontola, da Itália, Aschenbrodel, da Finlândia, Aschenputtel, da Alemanha, Cuzza Tzenere, de Dalmácia, Pepeljuga, da Bósnia-Herzegovina, Popielucha, da Polônia, Pelendrusis, da Lituânia, Popelusa, da Hungria, Popelusce, da Tchecoeslováquia, Popelezka, da Bulgária, Staetopouta, da Grécia, Cinicienta, dos países do idioma castelhano.
Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. 1ª edição digital. São Paulo, 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário