sábado, 21 de janeiro de 2017

Olivaldo Junior (Lâmpadas)

O menino maravilhava-se com as lâmpadas da rua, que, pontualmente, ao fim de cada tarde, se lembravam de acender-se. Quisera ter uma memória assim, luminosa!... Não a tinha. Ou, para bem dizer, achava que não a tinha. Tinha mesmo era uma vela de memória, o que, para ele, já dava para o gasto. Não carecia muito. O trabalho como sorveteiro mirim necessitava de umas contas de cabeça, previamente retiradas da cartilha lá da escola. Um mais um, igual a dois, que, dividido por dois, é um. Hum... A vida era uma vela no peito, alento, e as lâmpadas, o além da vida.

"Um dia, quando eu for grande, vou ter uma casa enorme, com lâmpadas por todo o lado, de fazer inveja até pros vaga-lumes!", pensava consigo enquanto empurrava o carrinho de sorvete pelas ruas da Cidade. O peso do enorme carrinho contra o peso do corpo de um menino de doze anos e meio é um pouco ingrato, sobretudo em subidas. Mas, em nome da vida, vivemos, e o menino vivia seu dia, vendendo sorvete até cair o sol e erguer-se a lua. Aí, no mesmo horário, as lâmpadas, o lume de vidro em que o menino era vidrado. Voltava para casa sob essa luz, ora branca, ora amarela, alaranjada, das lâmpadas que via. Um visto para a luz, o que queria, já que a luz em sua casa tinha sido cortada havia um mês, e a mãe esquentava água num fogo de chão improvisado no quintal. A luz é cara. A cara enxerga a luz e é por ela banhada, ilumina-se. Beleza...

Foi no dia em que os irmãos do sorveteirinho sonhavam com Papai Noel que ele teve a ideia de pedir na igreja mais próxima para o santo mais pobre (logo para ele!), São Francisco de Assis, um pouco de luz para sua casa. Assim, sua mãe e os irmãos teriam banho quente quando noite e sorvete quando dia. Ajoelhadinho ao pé do santo, nosso amigo sussurrava o Cântico das Criaturas de que se lembrava, ou de que ouvia falar nos sermões que tinha de relance, lá da Praça Central.

O menino cresceu. Não mora em casa grande, nem em senzala. Mora numa casa simples, já sem irmãos, com sua mãe. Sua casa tem luz. Toma banho quente quando noite e sorvete quando dia. Mas não repara muito nisso. Hoje sonha com outras luzes. Aquela luz primeira, a das lâmpadas da rua, murcharam como rosas ao longo dos dias, depois de despertas, abertas ao sol. Luz, a de Francisco, é que é viva. A luz das lâmpadas, feito a de todo sonho, sombra de nós, velha infância.

Fonte:
O Autor

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte III

Foto por Belchonock
Dispostos por Castro Alves em forma de epígrafes, os discursos de Les Orientale, de Victor Hugo, e Canto dos filhos de Agar de Sue, antecedem os poemas, “A criança” (ALVES, 1972, p. 75) e “Bandido negro” (ALVES, 1972, p. 83), ambos do livro Os escravos. 

Dessa inclusão resulta, no texto do poeta, tanto a adequação das letras nacionais à moda européia, quanto a presença do mundo oriental na escritura romântica brasileira. Exemplo dessa adequação constitui o “Navio Negreiro”. Nesse poema, um dos mais conhecidos de Castro Alves, o chamado poeta dos escravos ao tematizar a forçada travessia dos africanos para o Brasil o faz em aproximação com o êxodo forçado de Agar e de seu filho Ismael. Assim, configura, através de suas mulheres, os africanos seqüestrados para o trabalho forçado em nossas terras, em analogia com a narrativa sagrada dos árabes.

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas
De longe...bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma – lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leito de pranto
Têm que dar para Ismael.
(ALVES, 1972, p. 180-181)

Em relação às manifestações literárias correspondentes ao período do Realismo, é importante observar como o seu maior representante, Machado de Assis, se debruça, em sua poesia e em sua prosa, sobre a figura árabe.

Em relação ao seu discurso poético, vamos encontrar além de a “Lira chinesa”, escrita em 1870 (MACHADO, 1994, p. 53), o poema, “A cristã nova“ elaborada em 1875 (MACHADO, 1994, p. 110). Nesse último poema, o eu lírico tematiza a difícil aclimatação da mulher palestina, e de sua descendência, às voltas com as restrições religiosas impostas pela Inquisição, em nosso país, como se afere do texto de Machado de Assis:

Olhos fitos no céu, sentado à porta
O velho pai estava. Um luar frouxo
Vinha beijar-lhe a veneranda barba
Alva e longa, que o peito lhe cobria
.......................................

Assim talvez nas solidões sombrias
Da velha Palestina
Um profeta no espírito volvera
As desgraças da pátria. Quão remota
Aquela de seus pais sagrada terra
Quão diferente desta em que há vivido
......................................

“Braço lhe ameaça a vida?” Cavernosa
Um voz lhe responde: “O santo ofício!”
(MACHADO, 1994, p. 110-123)

Quanto à prosa machadiana, mais precisamente em suas crônicas, vamos encontrar várias referências ao mundo árabe, especialmente à poesia, à religião e ao declínio do Império Otomano (1281-1923), visivelmente expressas nas manchetes ocidentais e transfiguradas em signos literários. Revelando-se um profundo conhecedor da doutrina islâmica, Machado de Assis ressalta-lhe a profunda unidade entre o poder político e o poder sagrado, lamenta e critica o processo de ocidentalização do Oriente, terminando por associar o declínio do Oriente à morte da poesia, como expressa, em crônica publicada no primeiro dia de julho de 1876:

Dou começo à crônica no momento em que o Oriente se esboroa e a poesia parece expirar às mãos grossas do vulgacho. Pobre Oriente! Mísera poesia! Um profeta surgiu em uma tribo árabe, fundou uma religião, e lançou as bases de um império; império e religião têm uma só doutrina, uma só, mas forte como o granito, implacável como a cimitarra, infalível como o Alcorão. Passam os séculos, os homens, as repúblicas, as paixões; a história faz-se por dia, folha a folha; as obras humanas alteram-se, corrompem-se, modificam-se, transformam-se. Toda superfície civilizada da terra é um vasto renascer de coisas e idéias. Só a idéia muçulmana estava de pé; a política do Alcorão vivia com os paxás, o harém, a cimitarra e o resto [...] Mas o que eu apuro de tudo o que nos vem pelo cabo submarino e vapores transatlânticos é que o Oriente acabou e com ele a poesia. (MACHADO, 1994, p. 335-336)

O período que se processa entre a última década do século XIX e a Semana de 22, fase que corresponde às experiências pré-modernistas e a uma boa parte do período de apogeu da entrada de imigrantes no país, verificada, segundo Lucia Lippi Oliveira, entre os anos de 1870 a 1930 (2002, p. 11), coincide, também, com a retomada da discussão, de forma mais sistemática, acerca da brasilidade, como ilustram as publicações de Os sertões (1902), de Euclides da Cunha; Canaã (1902), de Graça Aranha; Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto e de Urupês (1918), de Monteiro Lobato. Desse contexto cultural, marcado pelos traços da mudança e da diversidade que caracterizariam o nosso Modernismo, surgiriam também as primeiras obras significativas dos brasileiros filhos de imigrantes, a exemplo das obras plásticas de Anita Malfatti, iniciada desde 1915, e as do pintor Victor Brecheret, iniciada em 1919.

A partir do Modernismo, cujo marco inicial é, comumente, assinalado pelo evento da Semana de Arte Moderna de São Paulo (1922), a presença do imigrante no Brasil se tornaria mais visível e sistemática em nossos escritos literários. Movimento de ruptura estética, de busca de novas formas de expressão, de redefinição do papel da literatura e do escritor, de reinterpretação da cultura e do homem brasileiro (MENDONÇA, 2002, p. 20), os nossos vários Modernismos se voltariam para esses brasileiros, alguns já atuantes em nosso espaço artístico; outros recém-chegados, como se verifica, explicitamente, na narrativa de Menotti Del Picchia, O estrangeiro (1926), publicada quatro anos após a ocorrência da Semana.

Exemplares da abertura modernista, à tematização do mundo oriental e à figura do imigrante árabe, constituem a produção do poeta nordestino, Manuel Bandeira, e a elaboração dos escritores de Minas Gerais, Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa. 

Em relação a Manuel Bandeira, em ação escritural desde 1917, as presenças orientais e a árabe, em particular, só se dariam a partir de 1936, se processando, para além das temáticas, nas próprias formas poéticas utilizadas. Após publicar “Canção das duas Índias” (Estrela da manhã, 1936), Bandeira escreverá “Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga” e “Gazal em louvor a Hafiz”, ambos do livro Lira dos cinquent’anos, publicada em 1940. Assim, inclui em sua obra tanto a forma poética de origem japonesa, como o gazal, gênero lírico-amoroso dos árabes.

Apropriando-se da forma dos gazais, Bandeira incorporaria à sua poesia uma das formas poéticas mais importantes da literatura árabe: os gazais ou gazéis. Escritas no ano 800 da Era Cristã, por Abbas de Marv, os gazais desfrutam do status de primeiras manifestações conhecidas da literatura persa. Seria, pois, com o auxílio formal dos primeiros versos árabes que Manuel Bandeira homenagearia e imortalizaria Hafiz, poeta persa do século XIV, autor de poemas líricos, conhecido pelos versos harmoniosos, pela presença do amor, do vinho e da natureza em seus poemas:

GAZAL EM LOUVOR DE HAFIZ

Escuta o gazal que fiz
Darling, em louvor de Hafiz:

– Poeta de Chiraz, teu verso
Tuas mágoas e as minhas diz.

Pois no mistério do mundo
Também me sinto infeliz.

Falaste: “Amarei constante
Aquela que não me quis.”

E as filhas de Samarcanda,
Cameleiros e sufis

Ainda repetem os cantos
Em que choras e sorris.

As bem-amadas ingratas,
São pó; tu, vives, Hafiz!
(BANDEIRA, 1976, p. 159 – grifos nossos)

Dirigindo-se a um Outro, curiosamente nomeado pelo vocábulo inglês, Darling, Bandeira aponta para as afinidades líricas entre a sua poesia e a do poeta persa, reconhecendo, nas mágoas que se desprendem dos versos Hafiz, os seus próprios desencantos. Nesse caminho, em que forma e conteúdo se conjugam na aproximação entre a poesia brasileira e a poética árabe, Bandeira se aproxima de Jorge Amado, enquanto se anteciparia a Milton Hatoum, mais precisamente ao seu romance Dois irmãos (2000), publicado sessenta anos após a Lira de Bandeira.

Encaminhando-se nessa tradição, Milton Hatoum se utilizaria dos gazais de Abbas como elemento de mediação amorosa de seus personagens, Halim e Zana, casal árabe de origem libanesa; ele muçulmano, ela cristã maronita. Atualizando a presença da poesia e do poeta persa em nossa literatura, através de um artifício ficcional, Milton Hatoum transforma o poeta Abbas e os seus gazais em signos árabes já aclimados ao solo de Manaus. Em Dois irmãos, o poeta que elabora os gazais com os quais Halim conquista Zana já vive no Brasil e é, entre nós, que se processa a sua bilíngue produção poética. Assim, tanto Manuel Bandeira, em meados do século passado, quanto Hatoum, no alvorecer do século atual, estabelecem um diálogo entre a literatura brasileira e a literatura árabe, manifestando, então, a importância da literatura árabe entre nós, como ilustra a voz narrativa em Milton Hatoum: 

Quem indicou o restaurante ao jovem Halim foi um amigo que se dizia poeta, um certo Abbas [...] Um dia Abbas viu o amigo na loja Rouaix [...] Halim queria comprar um chapéu francês [...] Abbas se adiantou a madame Rouaix, cutucou o amigo, saíram da loja [...] Halim desabafou, e Abbas sugeriu que desse a Zana um gazal, não um chapéu [...] Abbas escreveu em árabe um gazal com quinze dísticos, que ele mesmo traduziu para o português. Halim leu e releu os versos rimados: lua com nua, amêndoa com tenda, amada com almofada. Pôs a folha de papel num envelope e no dia seguinte fingiu esquecê-lo na mesa do restaurante [...] na manhã daquele sábado, Halim entrou cambaleando no Biblos [...] deu três passos na direção de Zana, aprumou o corpo e começou a declamar os gazais, um por um, a voz firme, grave e melodiosa, as mãos em gestos de enlevo [...] dois meses depois voltou como esposo de Zana. (HATOUM, 2000, p. 48-51)

Quanto a Carlos Drummond de Andrade, integrante do Modernismo Mineiro e em atividade literária desde 1928, a frequentação de personagens árabes se verificaria a partir de 1952. Atento, como Machado de Assis, ao que se passa no mundo, Carlos Drummond de Andrade publica a crônica, “Sinais do tempo: reflexões sobre o fanatismo”, que integra seu livro Passeios na Ilha (DRUMMOND, 1988, p. 1405-1406). Nesse texto, originado de um período marcado pelas dissensões entre interesses do capitalismo ocidental e os interesses árabes, o poeta de Itabira apreenderia a paisagem política mundial, através da apreensão dos conflitos religiosos, conflitos muitas vezes mascaradores dos interesses políticos.

Nessa apreensão, Drummond retoma Voltaire, endossando-lhe a crítica ao Concílio de Nicéia, marco inicial das guerras de religião, segundo os dois escritores. Assim, problematiza a Fé e o Político, no contexto do segundo quartel do século passado, enquanto expressa a estranha condição da sociedade moderna, desejosa de paz, mas arredia às diferenças e profundamente bélica:

Não é fácil decidir se nossa época se caracteriza pelo excesso ou pela míngua da crença Enquanto o século XVIII ficou marcado pelo racionalismo filosófico e revolucionário, e o século XIX pelo cientificismo e a ideia socialista, o período em que vivemos não logrou ainda definir-se como um tempo ateu, místico e idealista, materialista, hedonista, surrealista, infantil ou bárbaro [...] Ao definir em seu Dicionário Filosófico o conceito de tolerância (“perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices; é a primeira lei da natureza”.), Voltaire tinha em mente as guerras de religião, que desde o primeiro concílio de Nicéia vinham ensanguentando o mundo. Hoje em dia os concílios não têm mais poder para devorar o homem; mas os partidos, certos partidos, têm [...] Aspiramos a uma terra pacífica, através da crescente militarização dos espíritos, para já não falar na preparação bélica total. Pretendemos o congraçamento humano, eliminando a divergência política ou estética. (DRUMMOND, 1988, p. 1405-1407)

Ao aproximar-se do fim do século, Drummond retomaria a tematização do mundo árabe, de forma mais explícita e específica. Em seu poema, “Turcos”, do livro Boitempo (1968), o poeta imortaliza a presença árabe entre nós, caminhando por uma ambiguidade poética que ora problematiza a presença árabe (síria) na região mineira – A língua cifrada/ cria um mundo-problema, em nosso mundo/ como um punhal cravado/ – ora se pergunta se os árabes já não são mineiros de tanta convivência com as Minas Gerais. Nesse artifício poético, Drummond terminaria por se aproximar da mesma perspectiva solidária em que o árabe assimila o Brasil e o Brasil assimila o árabe. Assim, terminaria por configurá-lo como a balança, o espelho, o perfume de Minas Gerais, num reconhecimento do entranhamento dos traços arábicos na cultura mineira, conforme se verifica a seguir:

OS TURCOS nasceram para vender
bugigangas coloridas em canastras
ambulantes.
Têm bigodes pontudos, caras
de couro curtido,
braços tatuados de estrelas.
Se abrem a canastra, quem resiste
ao impulso de compra?
É barato! Barato! Compra logo!
Paga depois! Mas compra!

A cachaça, a geléia, o trescalante
fumo de rolo: para cada um
o seu prazer. Os turcos jogam cartas
com alarido. A língua cifrada
cria um mundo problema, em nosso mundo
como um punhal cravado.
Entendê-los, quem pode?
.......................................

A turca, ei-la que atende
A fregueses sem pressa,
Dá de mamar, purinha, a seu turquinho
O seio mais que farto.
Jacó, talvez poeta
Sem verso e sem saber que existe verso
Altas horas exila-se
No alto da cidade, a detectar
No escuro céu por trás das serras
Incorpóreas Turquias. E se algum
Passante inesperado chega perto
Jacó não o conhece. Não é o mesmo
Jacó de todo dia em sua venda.
É o ser não mercantil, um elemento
Da noite perquirinte, sem fronteiras

Os turcos,
meu professor corrige: Os turcos
não são turcos. São sírios oprimidos
pelos turcos cruéis. Mas Jorge Turco
aí está respondendo pelo nome,
e turcos todos são, nesse retrato

tirado para sempre.... Ou são mineiros
de tanto conviver, vender, trocar e ser
em Minas: a balança
no balcão, e na canastra aberta
o espelho, o perfume, o bracelete, a seda,
a visão de Paris por uns poucos mil-réis?
(DRUMMOND, 1988, p. 604-606)

Como se pode observar, através dos exemplos anteriores, a tematização árabe em nossa literatura ultrapassaria a fase dinâmica do Modernismo, compreendida pelo período que vai de 1922 a 1945 (CANDIDO; CASTELLO, 1983, p. 7), persistindo nos meados do século XX e nos anos que se aproximam do fim do século, nos mais variados modernismos, nas mais variadas formas e nas mais diversas concepções literárias.

Em face do contexto atual, marcado pelas invasões e guerras no mundo árabe, pelos mais diversos tipos de terrorismo, não é demais assinalar que, em seu poema “Elegia 1938”, do livro Sentimento do mundo (1940), considerado como marco de reorientação de sua estética, Drummond abriria sua poesia para os conflitos do mundo externo, confessando, nos últimos versos, o desejo desesperado de implodir o centro financeiro dos Estados Unidos, Manhattan, como se lê na última estrofe do poema:

Coração orgulhoso, tens pressa em confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
Porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
(DRUMMOND, 1988, p. 73)

Numa ininterrupta continuidade, as gentes árabes voltariam à nossa narrativa com o lançamento, em 1956, do romance de João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas. Acolhido, entusiasticamente, pelos leitores e pela crítica brasileira, o livro de Guimarães Rosa tematizaria a relação interétnica no Brasil, através de dois personagens imigrantes, um árabe e um alemão.

Estudiosa de Guimarães Rosa, Walnice Nogueira Galvão é a primeira a observar, na representação do imigrante, procedida pelas letras do romancista mineiro, a diferença de tratamento dada ao imigrante árabe e ao imigrante alemão. Sem a perspectiva histórico-literária assumida por esse trabalho, o artigo “Forasteiros” (1998, p. 15-28), de Walnice Galvão, acentuaria essa diferença, embora não observe que a conduta literária, adotada por Guimarães na representação árabe, se constitui numa tradição, iniciada desde os inícios do Modernismo:

Um alemão e um turco aparecem inextricavelmente ligados em Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa [...] O turco de Grande sertão: veredas se chama Seo Assis Wababa e o seu nome próprio árabe Azis aparece assimilado ao sobrenome luso-brasileiro. É o proprietário da venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José, cidadão instalado na vida, comerciante de reputação e pai de família numerosa. Riobaldo, assíduo conviva, aprende a apreciar as comidas típicas [...] Contrastando com Seo Assis Wababa, de quem Riobaldo é amigo e cuja casa frequenta, há o alemão Vupes. Mascate e portanto itinerante, é admirado por Riobaldo, que lhe realça as qualidades de sensatez, bom humor, sangue frio, completadas pela capacidade de procurar seu conforto [...] Essas são, em suma, as relações de Riobaldo com os dois expatriados. Mais rica em implicações para a narrativa é a oposição entre os dois homens de negócios, o alemão e o turco. Enquanto este, como vimos, encarna a estabilidade, a permanência, a respeitabilidade familiar, e sua casa se abre para receber os nômades, o alemão, inversamente, está sempre passando. Ele vem de fora [...] E será fora do horizonte tanto da narrativa quanto do sertão que o Alemão Vupes vai-se sedentarizar, ao instalar-se um dia como abastado comerciante “na capital”.
(GALVÃO, 1998, p. 15-19)

Se os modernistas de São Paulo, Graça Aranha (egresso do pré-modernismo) e Menotti Del Picchia, inauguram a tematização do imigrante em nossas letras, seria no Movimento Modernista do Nordeste, especialmente em Jorge Amado, que essa representação, notadamente a árabe, se tornaria, sistêmica e assídua, como se observa da leitura de todos os seus romances, notadamente configurados com a presença de personagens árabes, em especial o protagonismo do sírio Nacib, personagem a quem dedicaremos nossos estudos, com a finalidade de fundamentar nossas afirmações.

continua
_________________

Fonte:
VILLAR, Valter Luciano Gonçalves. A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Contos do Oriente (Tang, o caçador)

Meu primo Zhong Han era juiz no condado de Jin. Nessa época, um tigre tinha matado vários caçadores na região e ninguém conseguia pegá-lo. As pessoas foram então procurar meu tio para que ele contratasse Tang, o caçador, para prender esse tigre, achando que ninguém mais seria capaz de fazer esse serviço.

De acordo com Daí Dongyuan, de Xiuning, a história desses Tang vinha desde a Dinastia Ming, quando existiu um caçador chamado Tang, que foi morto por um tigre logo depois de se casar. Sua mulher, grávida, deu à luz um menino e fez uma promessa:

“Se não conseguir matar tigre, nunca vai ser meu filho e todos os seus filhos e filhos de seus filhos que não conseguirem, também não serão meus descendentes”.

Devido a isso, todos os Tang, do sexo masculino, são especialistas em matar tigres.

Zhong Han sabia disso e enviou então alguém para chamar um Tang, separando uma boa quantia de dinheiro para pagá-lo depois do serviço feito.

Na sua volta, esses homens disseram que eles tinham contratado os melhores dos Tang e que eles chegariam a qualquer momento. Chegaram, mas era um era um velho com a barba e o cabelo brancos, que tossia e fungava a cada instante e um ajudante de 16 anos.

O juiz ficou muito desapontado com o que viu. Mas ordenou que a primeira coisa a ser feita era alimentar esses homens. Percebendo que o juiz parecia desapontado, o velho ajoelhou com um só joelho e disse:

“Estou ouvindo esse tigre por perto, no máximo a 5 li* do povoado. Melhor a gente ir logo. A gente pega o tigre e depois come alguma coisa”.

O juiz mandou então que um de seus homens servisse de guia e eles partiram.

Chegando na boca de uma ravina, os homens não seguiram adiante. Maso velho sorriu:

“Comigo aqui, como podem estar com medo?”

Quando eles já tinham quase descido o barranco, o velho olhou para o rapaz e disse:

“Parece que esse tigre está dormindo. Vai lá e dá um jeito dele acordar”.

O rapaz então urrou como um tigre e num instante o tigre veio de entre as árvores na direção deles e pulou sobre o velho. O velho permaneceu firme, levantando um pequeno machado, de oito cun** de cumprimento e quatro de largura. Quando o tigre estava para esmagá-lo, ele afastou-se de lado, e tigre pulou, caindo no chão todo ensanguentado. As pessoas reuniram-se em volta e descobriram que o tigre tinha sido cortado do queixo até a ponta do rabo, ao tocar no machado.

O juiz então recompensou com generosidade os caçadores Tang, agradecendo-os por sua ajuda.

O velho contou então que que tinha treinado seus braços e olhos por mais de dez anos. Ele conseguia encarar um tigre sem piscar, mesmo quando seus olhos estavam com um cisco. E os seus braços eram tão fortes que mesmo o homem mais forte não conseguia movê-los um centímetro.

Zhuangzi, o antigo filósofo chinês, disse uma vez:

“O que é feito com prática é sempre convincente. Uma pessoa que nasce hábil nunca pode ultrapassar quem pratica constantemente”

Isso deve ser verdade. Um homem chamado Shi Sibiao podia escrever no escuro de uma forma tão perfeita como se estivesse usando uma luz de vela. Eu ouvi falar também de Sua Excelência, Li Wnke (1628-1703), de Jing Hai, que separava 100 pedaços de papel e escrevia um caracter em cada um. Punha todos em pilha contra a luz e os 100 caracteres ficavam exatamente um em cima do outro, formando um único caracter, e isso não é mágica.

Notas
*1 li = ½ quilómetro
**1 cun = 3,3 centímetros

Fonte: 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Olivaldo Junior (Bruta Saudade)

Há pouco, enquanto eu dobrava roupa, me deu uma bruta saudade de ter tido um amigo. Amigos, tenho-os todos com os quais me correspondo via e-mail. Amigos de longe, que me mandam notícias, que me fazem mimos, que se correspondem com este caro amigo que escreve. Falo de ter tido um amigo que me visita e me convida a sair, andar por aí, ir a um barzinho escutar alguém, alguém cantando, alguém fazendo a boa e eterna MPB de boa índole, que respeita os ouvidos e, acima de tudo, o espírito do ouvinte.

Ouço que esse tipo de amigo que eu queria ter tido e não tive, esse amigo é artigo de luxo; não se acha no lixo, quando se é pobre, nem na lancha, quando se é rico. "Amigo é coisa pra se guardar", diria o nosso Milton, mas como é que se guarda o intangível? Não sei. Fazia tempo que não tinha isso. Sofro da utopia de não ter sabido como é ter uma amizade "Toquinho e Vinicius", "Roberto e Erasmo", "Caetano e Gil". Puxa, meu Brasil, a vida é um peito vazio sem amigos chamando pra um chope, pra um bom bate-papo!

Papo furado, muita risada, choro convulso, coisas de amigo, as que nunca tive. Vive-se como se pode. Os poetas me guardam, a Poesia me aguarda, insone, indomável, à porta do quarto. Com ela, não deito, nem durmo: escrevo. Servo de seus ais, que me aliciam, alivio minha falta, essa calma sem ter paz que me alucina. A solidão. Não, a vida é mais que um amigo fiel, uma terna amizade, uma velha canção. Não, a nossa amizade é uma dura, uma estreita vereda, um grande sertão sem o amigo que eu queria ter tido.

Falo de ter tido um amigo que me visita e me convida a sair, andar por aí, ir a um barzinho escutar alguém, alguém cantando, alguém fazendo a boa e eterna MPB de boa índole, que respeita os ouvidos e, acima de tudo, o espírito do ouvinte. Ouvinte de longe, que lhe manda notícias, que lhe faz seus mimos, que se corresponde com seus caros amigos que o ouvem. Há pouco, enquanto eu dobrava roupa, me deu uma bruta saudade de ter tido um amigo. Amigos, tenho-os logo que a este amigo correspondem.

Fonte:
O Autor

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte II

Foto por José Feldman
- Casamento árabe -
Por outro lado, o Piloto Anônimo, ao documentar a rota determinada pelo Reino lusitano à armada de 1500, do extremo Ocidente ao Oriente, verificaria, na cultura alimentar indígena, o único traço que aproximaria os nossos índios dos povos árabes. Das anotações do Piloto Anônimo, resultaria a inserção da presença árabe, tanto no evento inaugural da conquista européia em nosso solo, como também em um dos textos iniciais do nosso corpus escritural.

Dessa forma, não obstante constituir-se como uma das mais recentes ondas migratórias no Brasil, os árabes desfrutariam de uma inusitada presença entre nós, desde os primeiros escritos coloniais:

Das quais 12 naus ordenou que 10 fossem a Calecute e as outras duas para a Arábia para irem a um lugar chamado Sofala [...] Aos 24 dias de abril, que foi quarta-feira da oitava da páscoa houve a dita armada vista de terra [...] E alguns dos nossos foram à terra donde estes homens são, que seria a três milhas da costa do mar e compraram papagaios e uma raiz chamada inhame, que é o pão que comem os árabes. (PILOTO ANÔNIMO, 1999, p. 75 – grifos nossos)

Acirrando a similaridade entre árabes e indígenas, ligeiramente esboçada pelo Piloto Anônimo, os portugueses veriam no índio brasileiro, então confundido com o homem árabe, a própria feição semítica arábica. Ante a enorme resistência indígena à perda de sua terra e de sua liberdade, os colonizadores recorriam, sistematicamente, ao termo alarve, isto é, aquele que é árabe, para designar os nossos indígenas. Ao mesmo tempo em que expressam essa similaridade, manifestam o desejo do extermínio dos nossos ancestrais ameríndios, obstáculos à empresa lusitana, como se verifica nos discursos dos colonos portugueses Pero de Magalhães Gandavo e Gabriel Soares de Sousa, ao se referirem aos Aimoré, indígenas que povoavam as capitanias de Ilhéus, a de Porto Seguro e áreas circunvizinhas da Bahia:

Estes Aimorés são mais alvos e de maior estatura que os outros Índios da terra, com língua dos quais não têm destes nenhuma semelhança, nem parentesco. Vivem todos entre os matos como brutos, animais sem terem povoações, nem casas em que se recolham [...] Estes alarves têm feito muito dano nestas Capitanias depois que desceram a esta costa e mortos alguns Portugueses e escravos, porque são muito bárbaros. [...] Até agora não se pode achar nenhum remédio para destruir esta pérfida gente.
(GANDAVO, 1980, p. 140 – grifo nosso)

Deu nesta terra esta praga dos Aimorés de feição que não há aí já mais que seis engenhos, e estes não fazem açúcar, nem há morador que ouse plantar canas, porque em indo os escravos ou homens ao campo não escapam a estes alarves, com medo dos quais foge a população de Ilhéus para a Bahia, e tem a terra quase despovoada.[...] e se senão busca algum remédio para destruírem estes alarves, eles destruirão as fazendas da Bahia. (SOUSA, 2000, p. 42-43 – grifos nossos)

Percorrendo o caminho narrativo do Piloto Anônimo, de Pero de Magalhães Gandavo e de Gabriel Soares de Sousa, José de Anchieta também traria a presença árabe à sua catequese. Sequioso da conversão indígena ao credo cristão e, ao mesmo tempo, receoso de uma improvável, à época, inclinação ameríndia ao Islamismo, o jesuíta, em sua atividade religiosa, busca, principalmente, preparar e incitar os nossos aborígines a brigar, sem que eles saibam a razão (SANTIAGO, 1982, p. 14), contra os reformados e contra os árabes, estes últimos representados por Muhammad, vulgarmente denominado de Maomé, entre os povos ocidentais ou ocidentalizados.

Num tom distante da fraternidade entre os homens, máxima da religiosidade cristã, marcado pela hostilidade e desumanização, para lembrar Edward Said, Anchieta procede a uma configuração, cruel e demoníaca, do Profeta dos muçulmanos, conforme vemos expressa nos “Diálogos dos Diabos, Satanás e Lúcifer, contra São Maurício, no adro da igreja”, ato II, do texto dramático anchietano, Na vila de Vitória ou de S. Maurício, encenado em 22 de setembro de 1595, na Vila de Vitória no Espírito Santo:

Satanás a Lúcifer, antes que tente a São Maurício:
Onde irás,
sem levar a Satanás,
teu fiel, servo contigo?
Tens outro melhor amigo?
Eu te dou Barrabás
E com Judas te maldigo.
Com Mafoma e com Lutero,
Com Calvino e Melantão,
Te cubra tal maldição
que te queimes, bem, o quero,
ardendo como tição.
(ANCHIETA, 1977, p. 289-290 – grifo nosso)

Nessa recorrência, a frequentação árabe em nossa literatura – sem destacarmos, ainda, o importante papel da narrativa arábica, na formação da moderna ficção européia e, consequentemente, na constituição e sedimentação da nossa – chegaria às letras poéticas do Barroco, pelos versos satíricos do poeta brasileiro, Gregório de Matos.

Filho da nobreza luso-baiana, o berço fidalgo propicia a Gregório de Matos uma esmerada formação acadêmica, de base européia. Em Coimbra, onde se tornara bacharel, Gregório de Matos é agraciado com o título de doutor in utroque jure, num reconhecimento que, aliado à sua origem, abre-lhe amplas possibilidades de uma carreira promissora, como salienta Alfredo Bosi (BOSI, 1992, p. 99). O vendaval mercantil, da segunda metade do século XVII, vem alterar-lhe, no entanto, o curso de sucessos.

Com a queda do preço do açúcar e com a perda da proteção real à sua pequena fidalguia baiana – Portugal, a esse tempo, encontrava-se submisso, economicamente, aos ingleses – Gregório dispara contra essa desordem, elegendo, como seus objetos de ataque, os velhos alvos europeus: o árabe e o homem brasileiro. Nesse caminho, Gregório de Matos investe contra o brasileiro em formação, ainda com uma boa dose do sangue indígena, reatualizando, assim, em nossos primeiros versos, os discursos de Pero de Magalhães Gandavo, de Gabriel Soares de Sousa e de José de Anchieta. Nessa poeticidade, o poeta baiano reporia, em circulação, os preconceitos étnicos e religiosos, herdados dos europeus, conforme se lê nos versos abaixo:

O certo é, pátria minha,
Que fostes terra de alarves,
E inda os ressábios vos duram
Desse tempo e dessa idade.
(MATOS, 1990, p. 83 – grifos nossos)

Que pregue um douto sermão
Um alarve, um asneirão,
E que esgrima em demasia,
Quem nunca já na Sofia
Soube dar um argumento:
Anjo Bento.
(MATOS, 1990, p. 31 – grifo nosso)

Como na lei de Mafoma
Não se argumenta, e se briga,
Ele, que não argumenta,
Tudo porfia.
(MATOS, 1990, p. 61-62 – grifo nosso)

Dessa forma, Gregório de Matos garantiria, em vários de seus poemas satíricos, a presença árabe em nossa poesia que se iniciava. Elaborada, poeticamente, num estreito amalgamento com os traços indígenas, ou melhor, confundida com o próprio rosto ameríndio, a representação árabe/indígena de Gregório alteraria a nossa ascendência étnica. Com os olhos guiados pelo etnocentrismo europeu, tematizaria o Brasil, como pátria de alarves, nos considerando, cegamente, como descendentes do povo árabe, enquanto desclassifica, como José de Anchieta, o Profeta e fundador da religião dos muçulmanos.

Com o surgimento do Arcadismo, o tom do nosso discurso poético se alteraria. Última expressão da literatura clássica portuguesa no Brasil, o Arcadismo se processaria em meio à circulação das ideias iluministas, das idéias escolásticas, das discussões antimonarquistas, procedidas por setores do Iluminismo. Importando as teorias francesas e italianas, os árcades brasileiros se preocupariam com os grandes temas vindos do Ocidente, compartilhando, com o pensamento ilustrado, o ideal da paz, o elogio do saber e a condenação da violência, de acordo com Fábio Lucas, estudioso do Arcadismo no Brasil (1998, p. 18).

Partidários do despotismo esclarecido, da simplicidade da linguagem e do racionalismo filosófico, os neoclássicos do Brasil se ocupariam, tematicamente, com a virtude civil, a melhoria do homem pela instrução, pela obediência às leis da natureza, como assinalam os vários compêndios de literatura. Mais laicos, os nossos árcades se afastariam do verbalismo barroco e do seu espírito, que se identificava com a glorificação da monarquia absoluta como fato de origem divina; e, como que esmagado pelo sentimento da fé e do poder, favorecia na literatura o senso agudo das tensões (CÂNDIDO; CASTELLO, 1988, p. 78). Assim se distanciariam do conformismo barroco, ante os fundamentos da ordem social estabelecida, como também da delimitação geográfica, ao qual estava circunscrita a poética barroca, como observam Antonio Cândido e José Aderaldo Castello, quando discorrem sobre a ação mais ampla do Arcadismo:

A Academia dos Renascidos, fundada naquela cidade em 1759, já procura superar o âmbito local e congregar escritores de todo o país, numa primeira demonstração de solidariedade geral. Esta tendência aumentou difusamente a partir de então, e por isso o legado dos árcades foi mais atuante que o dos cultistas, o principal dos quais, Gregório de Matos, ficou esquecido nos seus manuscritos inéditos até o século XIX. (CÂNDIDO; CASTELLO, 1988, p. 84)

Numa escritura diferenciada da que lhe antecedeu, as representações árcades brasileiras, apesar da roupagem mitológica e da identificação cultural com as metrópoles europeias, se voltariam para o cenário nacional, particularizando-o. Nessa particularização, se não elegem o autóctone como herói ficcional, lhe garante o estatuto de objeto estético e de signo de brasilidade em sua lírica e epopeia. Dessa forma, os árcades se afastam das representações indígenas de Gregório de Matos, transformando suas manifestações literárias em representações pré-românticas, como reconhece Walnice Nogueira Galvão, em diálogo com o crítico Antonio Cândido:

Volvendo os olhos para as representações pré-românticas do índio na literatura brasileira, há que mencionar obrigatoriamente dois poemas épicos setecentistas, O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, e o Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, cuja matéria indígena se expõe desde o título. Num caso, o assunto é o arrasamento das reduções jesuíticas dos Sete Povos de Missões; no outro, a colonização da Bahia através do oportuno conúbio entre o pioneiro português e a princesa indígena. Mesmo assim os índios lá estão mais como signo, como observou Antonio Cândido, do que propriamente como personagem literária. Ambos os poemas pretendem defender outra causa que não a dos índios, o primeiro a causa da Ilustração e da política portuguesa contra os catequizadores, ao modo arcádico, e o segundo, da autoria de um padre, a causa da religião cristã contra a Ilustração anticristã, ao modo clássico-barroco. (GALVÃO, 1979, p. 384)

Nesse caminho, os árcades abririam seus textos à presença indígena, transfigurando-os em gênese da vertente indianista em nossa literatura. Gênese, essa, que os românticos brasileiros souberam muito bem aproveitar, em suas representações do índio como objeto estético, herói literário e antepassado mítico-histórico (GALVÃO, 1979, p. 383).

Apesar da ausência da representação árabe nos textos do Arcadismo brasileiro, encontramos, contudo, uma representação do Outro, totalmente diversa das formas lusitanas no tratamento ao distinto de si. Desejosos da harmonia social e da felicidade na terra, os nossos árcades defenderiam os métodos pacíficos para a resolução dos conflitos entre os povos, como lavraria Cláudio Manoel da Costa, em sua poética. Em “Vila Rica”, o líder do Arcadismo no Brasil descarta a violência na resolução das discórdias entre as nações, elegendo a brandura como o caminho privilegiado para o exercício do poder e da interação humana. Curiosamente, os versos de Cláudio Manoel da Costa retomam, pelo tom e pelo conteúdo, o discurso de Japia-açu, cacique tupinambá do Maranhão, no século XVII.

Aliado dos franceses na luta contra os portugueses, Japia-açu manifestaria, ao comandante da França, não somente a esperança de seu povo na brandura e na amabilidade dos soldados franceses, notadamente de seus comandantes, enquanto explícita, numa atitude preventiva, o modus político dos nossos indígenas. Nesse discurso, Japia-açu precede Cláudio Manoel da Costa na recusa da violência e da aspereza no exercício do poder, como também no elogio da brandura, tematizada como signo da sabedoria, conforme se observa na leitura dos discursos do árcade e do índio brasileiro:

Convém que antes os meios da aspereza
Se tente todo o esforço da brandura.
Não é destro cultor o que procura
Decepar aquela árvore que pode
Sanar, cortando um ramo, se lhe acode
Com sábia mão a reparar o dano.
(COSTA, 1996, p. 390 – 420 – grifos nossos)

Te direi a esse propósito que quanto mais um homem é grande de nascença e quanto maior autoridade tem sobre os outros, mais brando, obsequioso e clemente deve ser. Pois os homens, especialmente os desta nação, mais facilmente se levam pela brandura do que pela violência. 
(JAPI-AÇU, apud D'ABBEVILLE, 1975, p. 61 – grifos nossos)

Com o advento do Romantismo, surgido nas últimas décadas do século XVIII, o discurso literário ocidental passaria por uma revolução. Substituiria o racionalismo neoclássico e estabeleceria, nas letras, o reino da emoção, da fantasia e da imaginação. Compreendido como visão do mundo, ou como crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista moderna, em nome de valores e ideais do passado (pré-capitalista, pré-moderno) (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 34), essa vertente literária se abriria à curiosidade do exótico, do diferente, do longínquo; atenta a outros povos e a outras civilizações, como ressaltam Antonio Cândido e Aderaldo Castelo:

A curiosidade do romântico, alimentada pela insatisfação e também indefinição, multiplica-se no tempo e no espaço. Ela pode ser largamente enumerada, a partir do interesse pela cor, pelo exotismo que apresentam os países estrangeiros ou as regiões longínquas, com outros povos e outras civilizações. Para o europeu é a América ou o Oriente, para o brasileiro a Europa, por exemplo, aspectos da paisagem romântica da Itália, o mistério também do Oriente, sugestões retomadas à Bíblia, freqüentes em Castro Alves que chegou mesmo a contaminar com tudo isso as impressões da própria paisagem brasileira. (CÂNDIDO; CASTELLO, 1988, p. 160)

No Brasil, os inícios do Romantismo seriam marcados pela busca de si mesmo. Identificados com a recente nacionalidade, os românticos brasileiros, seja de forma mais acentuada ou de modo mais sutil, empreendem uma jornada escritural em busca de nossas feições culturais. Na atualização da temática do local e do próprio, da representação do índio como objeto estético, herói literário e antepassado mítico-histórico, prenunciadas pelos árcades, as nossas letras se dedicariam a traçar os variados tipos nacionais: o índio, o bandeirante, o sertanejo, o matuto, o gaúcho, o cangaceiro, o malandro, o senhor, o escravo, ao lado do universo feminino – urbano ou rural, de cujo mundo o Romantismo se ocupava.

Mesmo envolvidos nas configurações de nossas identidades, os românticos não se desapercebiam do novo aparato literário, nem da nova temática européia. Assim, se não vamos encontrar, restritamente, a presença árabe nesses textos, encontramos, porém, a presença oriental, como se verifica em Castro Alves, em sua saudação às noites orientais expressa no poema “A bainha do punhal”, do livro Os escravos (1972):

Salve, noites do Oriente,
Noites de beijos e amor!
Onde os astros são abelhas
Do éter na larga flor...
Onde pende a meiga lua,
Como cimitarra nua
Por sobre um dólman azul:
E a vaga dos Dardanelos
Beija, em lascivos anelos
As saudades de Istambul.

Salve, serralhos severos
Como a barba dum Pachá!
Zimbórios, que fingem crânios
Dos crentes fieis de Alá!...
Ciprestes que o vento agita,
Como flechas de Mesquita
Esguios, longos também;
Minaretes, entre bosques!
Palmeiras, entre quiosques!
Mulheres nuas do Harém!

Mas embalde a lua inclina
As loiras tranças p’ra o chão...
Desprezada concubina,
Já não te adora o sultão!
Debalde, aos vidros pintados,
Aos balcões arabescados,
Vais bater em doudo afan...
Soam tímbalos na sala...
E a dança ardente resvala
Sobre os tapetes do Iran!...
(ALVES, 1972, p. 217-220)

Unindo-se, solidariamente, às escrituras dos românticos europeus, Castro Alves inclui, em seus versos, a presença oriental, alusões e citações bíblicas, terminando por trazer a presença semítica, tanto a ligada ao Islamismo quanto ao Judaísmo, à sua poética. No poeta baiano, essa presença se fará de duas formas. Seja pelo discurso do próprio eu lírico, como no caso de “A bainha do punhal”; seja pela voz do artista europeu, mais particularmente de Victor Hugo e Edgar Sue, a quem incorpora em sua poesia.
_____________
continua
_________________
Fonte:
VILLAR, Valter Luciano Gonçalves. A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Contos do Oriente (Remédio para cavalo)

Em Urumqi, um taoísta vendia remédios no mercado e algumas pessoas diziam:

— Esse aí é feiticeiro. E dos grandes!

Ele tinha sido visto em um albergue e, pouco antes de dormir, abriu uma bolsa que trazia na cintura. De dentro da bolsa tirou uma menor. E nessa menor, pegou dois comprimidos de cor escura. Imediatamente duas mulheres belíssimas apareceram no quarto para dormir com ele. Elas só deixaram o quarto de madrugada.

No dia seguinte, alguém perguntou como tudo tinha acontecido. Ele fez cara de desentendido. Negou de pé junto que soubesse alguma coisa.

Eu me lembro de ter lido nos “Trabalhos Ininterruptos”, de Zhou Yuexi, uma explicação de que pessoas como esse monge taoísta são “caçadores de almas”. Como essa magia perde a eficácia se a pessoa comer carne de cavalo, e como um cavalo acabava de morrer na guarnição, enviei um ajudante com instruções secretas ao dono do albergue. Ele devia dizer ao taoísta que havia boa carne de cavalo e que ele estava convidado para comer um pouco.

O taoísta moveu a cabeça de um lado para o outro.

— Carne de cavalo? Claro que não — disse.

Isso reforçou minhas suspeitas e decidi tomar providências.

Meu colega, general Chen Tiqiao, foi contra:

— Que moças estejam com o taoísta é impossível saber, porque você não viu com seus próprios olhos. E não viu igualmente se ele come ou não carne de cavalo. Fiar-se a boatos não verificados para abrir um processo às pressas me parece perigoso. Nessa região, não se tem o direito de prender um indivíduo com base apenas na suspeita: melhor pedir a repartição competente para expulsá-lo do território e o assunto fica resolvido.

Estava pensando nos passos a dar quando o general Wen soube da história e disse:

— Querer ir a fundo nessa questão é ir longe demais. Suponhamos que por medo de castigo esse homem confesse qualquer coisa. O assunto ficaria então muito grave e seria preciso tomar outras providências.

Como não existe nenhuma prova ainda, como fazer para pôr um fim nisso? Expulsá-lo do território não resolve, por que ele vai para outro lugar, dá um golpe e declara que viveu durante muito tempo em Urumqi. Quem ficaria com a responsabilidade?

Todas as guarnições devem interrogar, investigar, examinar todos os indivíduos de comportamento suspeito. Se existem provas reais, ele será entregue à autoridade competente. Caso contrário, melhor enviá-lo ao lugar de onde ele veio, para que ele não engane o povo. Não é uma boa solução?

Nós ficamos admirados com a sabedoria dos senhores generais.

Fonte: 

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte I

INTRODUÇÃO

Se isso estimular um novo tipo de relações com o
Oriente, se, na verdade, isso eliminar o “Oriente” e o
“Ocidente” como um todo, teremos avançado um pouco
no processo daquilo que Raymond Williams chamou de
“desaprendizado” do “modo dominativo inerente.
Edward Said

O trabalho A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum trata do estudo das configurações árabes na literatura brasileira, elaboradas no período do Modernismo do Nordeste, através de Jorge Amado, e em nossa contemporaneidade, através da escrita amazonense de Milton Hatoum. Para tanto, elegemos como textos privilegiados dessa pesquisa o romance Gabriela cravo e canela: crônica de uma cidade do interior, elaborado em 1958 por Jorge Amado e o discurso ficcional de Milton Hatoum, Dois irmãos, editado em 2000, isto é, publicado no alvorecer desse século. Essa aproximação demonstra, por si só, não apenas a presença árabe em nossa literatura, como a recorrência dessa temática em nosso corpus ficcional.

Não obstante as diferenças verificáveis entre Jorge Amado e Milton Hatoum, de contexto histórico e literário, em particular às de convenções literárias, as duas obras, separadas por quarenta e oito anos, se aproximam pelas similaridades de soluções estéticas utilizadas por ambos os escritores.

Nessa compreensão, nos voltaremos para Jorge Amado e Milton Hatoum, numa leitura dialógica que, longe das noções de fonte e influência, como defende Silviano Santiago (1982, p. 13-25) busque observar as similaridades e diferenças nas representações do árabe no Brasil, procedidas pelo escritor nordestino e pelo romancista do Norte, espaços geográficos irmanados numa mesma região, até a segunda década do século XX.

Como caminhos interpretativos, procederemos, num primeiro momento, a leitura da obra Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, procurando observar, na história amorosa de Nacib e Gabriela, as linhas responsáveis pela configuração da identidade árabe-brasileira do sul da Bahia, tecida pela inter-relação entre os traços culturais da sertaneja nordestina, expulsa do sertão pela seca, e pelos traços culturais do imigrante árabe, igualmente tangido de sua terra pela necessidade, ou pelas guerras.

Guiados pelo mesmo propósito, nos voltaremos, num segundo momento, para a obra Dois irmãos, atentos, sobretudo, aos procedimentos literários utilizados por Milton Hatoum em sua configuração da identidade manauara, configurada pelos traços culturais dos imigrantes árabes e pelos traços indígenas, num curioso convívio interétnico entre as gentes árabes e as gentes autóctones brasileira.

Reconhecendo a fascinação despertada pelo estrangeiro em nossos literatos e que essa fascinação instaurou um topoi em nossa literatura, apresentaremos, num terceiro momento, ou parte conclusiva, nossas conclusões acerca das convergências e das diferenças entre as narrativas estudadas, procurando situá-las não apenas dentro do contexto histórico dos seus autores, mas principalmente no interior do nosso contexto escritural, em sua dinâmica de incorporação, de rejeição ou de renovação da tradição. Não é demais lembrar que tanto a sertaneja Gabriela quanto a índia Domingas descendem, literariamente, de nossos ancestrais indígenas representados, em nosso Romantismo, como signos essenciais de brasilidade.

Nessa leitura intertextual das obras de Jorge Amado e Milton Hatoum, nos apoiaremos num referencial teórico-metodológico, cujos autores, citados nesse texto dissertativo, constituem nosso corpo teórico-chave. Assim, nos valeremos das contribuições teóricas de Antonio Cândido, no que diz respeito à compreensão do estético, da literatura brasileira como um sistema; das reflexões de Silviano Santiago acerca da leitura comparada e das especificidades do discurso latino-americano; dos estudos de Luiz Costa Lima sobre as relações discursivas entre literatura, memória e história; e das idéias defendidas por Flora Süssekind quando do estudo do naturalismo em suas manifestações na literatura brasileira, além de outros referenciais chamados ao texto.

Em relação à compreensão do universo árabe no Ocidente, nos valeremos da compreensão do intelectual palestino, Edward Said, como também dos Cursos, dos escritos, produzidos e/ou veiculados pelo Instituto de Cultura Árabe – ICARABE/SP. Nessa conjunção textual, procederemos nossa leitura dialógica entre Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado e Dois irmãos, de Milton Hatoum, com o objetivo de contribuirmos para os estudos literários no Brasil, em especial das pesquisas que tratam das configurações árabes produzidas entre nós.

CAPÍTULO I

A PRESENÇA ÁRABE NA LITERATURA BRASILEIRA

Se isso estimular um novo tipo de relações com o 
Oriente, se, na verdade, isso eliminar o “Oriente” e o
“Ocidente” como um todo, teremos avançado um pouco
no processo daquilo que Raymond Williams chamou de
“desaprendizado” do “modo dominativo inerente.
Edward Said

– Poeta de Chiraz, teu verso
Tuas mágoas e as minhas diz.
Manuel Bandeira

Uma das verdades incontestes é de que os saberes da humanidade provêm de um acúmulo gradativo, contínuo e permanente de conhecimentos para os quais contribuem os mais diversos povos. Não obstante justa, a concepção de que os conhecimentos humanos originam-se das mais diversas procedências é, no mundo ocidental, quando não silenciada, narcisicamente deformada.

É o que ocorre com as configurações e com as representações das gentes árabes que, desde as Cruzadas, especialmente em sua segunda etapa(1), isto é, após o aniquilamento dos povos pagãos ao redor da Europa, têm enfrentado uma campanha depreciativa, redutora de sua cultura na qual se acentuam o caráter de irracionalidade, de luxúria, de crueldade e de barbárie, notadamente na Europa Ocidental e, mais recentemente, entre os seus povos transplantados, em especial entre os descendentes britânicos, que ocuparam uma vasta extensão da América do Norte e nela fundaram os Estados Unidos da América (EUA), desalojando e dizimando os índios que ocupavam essa parte americana.

Exemplificadora dessa campanha, continuadamente reatualizada e transplantada, constitui a fala do escritor inglês, Ian McEwan. Reconhecido como um dos mais importantes autores britânicos na atualidade, McEwan veio ao Brasil por ocasião do lançamento de sua nova obra, Na praia, editada pela Companhia das Letras (2007). Entrevistado pela Revista Época, o ficcionista inglês discorre sobre sua obra, cujo tema se volta para os comportamentos sexuais, anteriores à revolução sexual, no Ocidente. Ao comentar o comportamento amoroso de seus personagens centrais, um casal jovem numa lua de mel mal sucedida, Ian McEwan sustentaria que essa dificuldade amorosa ocorreria, ainda hoje, na Inglaterra, entre os imigrantes muçulmanos. Nessa constatação, acresceria ao caráter árabe uma nova “qualidade”, a de reprimidos sexuais, enquanto vê, na violência louca dos extremistas islâmicos, apenas a frustração sexual do Islamismo, de acordo com o texto abaixo:

Acho que seria possível, sim. Ela pode ocorrer hoje. Por exemplo, temos 2 milhões de muçulmanos na Inglaterra. Os meninos jamais se encontram com as meninas antes do casamento. E eles não costumam ter namoradas, nunca falam de sexo e a virgindade ainda é um tabu. Acho que a frustração sexual é um dos grandes problemas do islamismo. E essa pode ser uma das explicações da violência louca dos extremistas islâmicos. Eles não passam de reprimidos sexuais. Tenho certeza de que muitos deles sofrem na noite de núpcias. (McEWAN, 2007, p. 120-121 – grifos nossos)

Marcado pela linearidade, pelo tom e pelos velhos interesses que abriga, o discurso de hostilidade e de desclassificação do mundo árabe vem atravessando os séculos da modernidade, chegando aos nossos dias em forma de uma violenta atualidade; seja ela verbal, como atesta o discurso de Ian McEwan, seja ela propriamente bélica, como atestam a ocupação do Afeganistão (2001) e a recentíssima invasão do Iraque (2003), e suas funestas conseqüências, tais como a violência fratricida entre os muçulmanos, em especial entre os xiitas e sunitas, no território iraquiano.

Capitaneada pelos Estados Unidos, em parceria íntima com a Inglaterra, já habituada às investidas no mundo árabe; com os experientes conquistadores e colonizadores da América Latina – Portugal e Espanha; com a Itália, terra de Cristóvão Colombo, defensor, em plena modernidade, do projeto das Cruzadas (TODOROV, 1993, p. 10-11), essa nova agressão contra os árabes é, ideologicamente, justificada através de um aparato discursivo, pretensamente científico, chamado de Orientalismo, sobre o qual discorre, longa e profundamente, o intelectual árabe, de origem palestina, Edward Said. Responsável por conceituar o discurso hegemônico que se construiu em torno dos árabes, problematizando a própria noção de orientalismo, criada pelo Ocidente, Edward Said em seu livro, Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1990), ressalta o caráter etnocêntrico, aliado à perspectiva eurocêntrica, que caracteriza o conjunto desses discursos, denominado por ele de pensamento desumanizado, como se vê a seguir:

Essas atitudes orientalistas contemporâneas povoam a imprensa e a mente popular. Os árabes, por exemplo, são vistos como libertinos montados em camelos, terroristas, narigudos e venais cuja riqueza não-merecida é  uma afronta à verdadeira civilização. Há sempre nisso a presunção de que o consumidor ocidental, embora pertença a uma minoria numérica, tem direito a possuir ou a gastar (ou ambas as coisas) a maioria dos recursos mundiais. Por quê? Porque ele, ao contrário do oriental, é um verdadeiro ser humano. Não existe hoje um melhor exemplo do que Anwar Abdel Malek chamou de ‘hegemonismo das minorias possuidoras’ e de antropocentrismo aliado ao eurocentrismo: uma classe média branca ocidental que acredita ser sua prerrogativa humana não apenas administrar o mundo não-branco, mas também possuí-lo, apenas porque, por definição, ‘ele’ não é tão humano quanto ‘nós’ somos. Não há um exemplo de pensamento desumanizado mais puro que este. (SAID, 1990, p. 117 – grifos nossos)

Esse pensamento atual atinge, notadamente, os muçulmanos, ou seja, os árabes convertidos ao Islamismo, configurados, agora, como fanáticos, terroristas, reprimidos sexuais; representados como loucos, conseqüentemente como perigo ao Ocidente. Criada por Muhammad, em 570-632 EC, a religião do Islam, relativamente recente, é, hoje, ironicamente, a religião que mais cresce no mundo, principalmente entre os ocidentais, disputando a hegemonia espiritual no mundo com o Cristianismo, especialmente com Igreja Católica (2). Em face desse novo contexto que, pela ação, pelos personagens e pelos discursos, reatualiza o passado, insurge-se a voz cáustica, desmistificadora e de um impressionante domínio histórico, do homem latino-americano, no caso do índio Guaicaí puro Cuatemoc. (3)

Cacique de uma nação indígena da América Central, Cautemoc se fez presente à Conferência dos Chefes de Estado da União Européia, MERCOSUL e Caribe, ocorrida em Madri, em maio de 2002, quando se processava, no mundo ocidental, a campanha pela globalização na América Latina e Caribe, entendida, pelos povos americanos, como um neocolonialismo na América Latina. Ao fazer uso da palavra, diante dos atônitos chefes de Estados europeus, o cacique americano denuncia a violência da colonização na América Ibérica, os saques de nossas riquezas, perpetrados pelos cristãos europeus, as guerras contra os muçulmanos, enquanto procede a um explícito elogio a esses povos, salientando, concomitantemente, a dívida econômica dos europeus para conosco e a dívida cultural para com os mulçumanos:

Eu também posso reclamar pagamentos e juros. Consta no Arquivo das Índias que somente entre os anos de 1503 e 1660 chegaram a São Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América. Terá sido isso um saque? Não acredito porque seria pensar que os irmãos cristãos faltaram ao Sétimo Mandamento! Teria sido espoliação? Não, esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata foram o primeiro de outros empréstimos amigáveis da América destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário disso seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito a exigir não apenas a devolução, mas indenização por perdas e danos. Prefiro pensar na hipótese menos ofensiva. Tão fabulosa exportação de capitais não foi mais do que o início de um plano Marsthalltesuma, para garantir a reconstrução da Europa arruinada por suas deploráveis guerras contra os muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho diário e outras conquistas da civilização. (CUATEMOC, 2002, p. 16 – grifos nossos)

Na verdade, além da álgebra, dos banhos diários, da tradução dos textos gregos, à época, proibidos no Ocidente, a Europa deve, também, aos árabes, a arte da navegação. Aprimorando os conhecimentos náuticos árabes, os europeus alcançam os quatros cantos do mundo, chegando às terras americanas, até então completamente desconhecidas aos europeus, como reconhece Américo Vespúcio, em seu texto epistolográfico, Mundus Novus, de 1550, traduzido por Gian Battista Ramusio, conforme anota Riccardo Fontana:

Portanto, não sem razão o chamamos Mundo Novo, porque todos os antigos não tinham dele nenhuma consciência e as coisas que foram por nós descobertas ultrapassam a sua concepção. Eles pensaram que além da linha equinocial, para o sul, não existia nada a não ser o mar amplíssimo e algumas ilhas queimadas e estéreis. Chamaram-no mar Atlântico, e se alguma vez reconheciam que aí estava um ponto da terra, afirmavam que ela era estéril e que não podia ser habitada. A presente expedição refuta a opinião deles e demonstra abertamente a todos que é falsa e distante de toda a verdade. (VESPÚCIO, apud FONTANA, 1994, p. 150)

Dessa sorte, os europeus ampliariam, assim, os seus horizontes visuais, políticos, econômicos e culturais. Essa ampliação, contudo, que poderia favorecer um conhecimento humano mais universal, serve, antes, para que o homem europeu, sob a forma de conquistador e de colonizador, reproduza, em outras terras, seus conflitos, seus impasses sociais, econômicos, políticos e religiosos, como também seus medos e os seus preconceitos, como observa Silviano Santiago:

Mas em lugar de esse ampliar do horizonte visual operar um desequilíbrio positivo e fecundo nos alicerces do homem e da sociedade que descobrem, serve ele antes para que o desbravador reproduza – em outro lugar – os conflitos e impasses político-sociais e econômicos da sua sociedade sob a forma básica de ocupação. Exemplo concreto: o Novo Mundo serviu de palco para onde deslocar o beco-sem-saída das guerras santas que se desenrolavam na Europa. (SANTIAGO, 1982, p. 13-14)

Na verdade, desde o aportamento da frota de Pedro Álvares Cabral, em nossas terras, a presença árabe, mesmo em absência, se insinua em nosso país. Como fantasma europeu, o árabe estará presente num dos primeiros testemunhos sobre o Brasil, redigidos in loco, por um dos integrantes da expedição de Cabral: A Relação do Piloto Anônimo (1500). A importância dessa Relação se deve, sobretudo, ao ineditismo ou ao seqüestro, como quer Jaime Cortesão (1943, p. 25), da Carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão oficial da esquadra de Cabral. O desaparecimento, durante três séculos, do texto epistolar de Caminha, tornaria a Relação do Piloto Anônimo, provavelmente também um escrivão de ofício, nas primeiras impressões européias divulgadas sobre o Brasil, como atesta a sua publicação, em língua italiana, no ano de 1507 (CORTESÃO, 1943, p. 26).

Súditos-marinheiros do Rei de Portugal, verdadeiros agentes do expansionismo lusitano, o Piloto Anônimo e o escrivão oficial de Cabral, como os demais navegantes, descobrem e tomam posse da terra brasileira, em nome de seu monarca. Ciosos da nova propriedade de seu Rei, o Piloto Anônimo, assim como Caminha, perscruta os perigos, as possíveis dificuldades que o seu Rei possa enfrentar na terra encontrada e, em seguida, apropriada, criando em nossas terras a ética da propriedade, depois do primeiro e grande roubo, como assinala Santiago.

O conquistador europeu usurpa e, ao camuflar este gesto com a noção de propriedade, já aí institui como indispensável para o contrato social futuro a noção de roubo e conseqüente e indispensável punição. A cadeia em suma. A noção de propriedade só pode ser considerada como legítima e corrente depois que o primeiro e grande roubo for feito. A redenção do aventureiro estaria na imposição radical de um código de conduta (ou de justiça) que seria válido para todos menos para ele. (SANTIAGO, 1989, p. 196)

Temerosos de que os nossos nativos, claramente de feições orientais, fossem oriundos, etnicamente, dos seus fantasmas semitas, em particular dos árabes e dos judeus, os missivistas portugueses examinaram, com atencioso cuidado, os traços físicos e culturais dos nossos indígenas, como antes observara Wilma Mendonça (2002, p. 79). Por um lado, Caminha observara, redundantemente, a genitália índia masculina, identificando, na ausência da circuncisão judaica, uma proximidade entre os homens brasileiros do século XVI e os europeus, segundo anotações abaixo:

Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas [...] Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas [...] Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós. (CAMINHA, 1999, p. 34-41 – grifos nossos)

NOTAS
(1) Segundo Yuri e Vera Sanada, o aperfeiçoamento da doutrina da Guerra Justa ou Santa foi alcançado “por monges do movimento denominado Reforma Cluniac, nos séculos X e XI. Eles concluíram que o desejo de Cristo para a humanidade, corporificado pela Santa Igreja, podia avançar sob o domínio das sociedades cristãs, e que a violência não era mais maligna, mas sim moralmente neutra. Se usada para aumentar o reino cristão, a violência se tornava, em verdade, boa. Esta doutrina foi chamada de Guerra Santa. Agora podia-se matar e pilhar, sob proteção divina. Mas os nobres cristãos puseram tanto entusiasmo nas doutrinas da Guerra Justa e Guerra Santa, usadas para aniquilar os povos pagãos ao seu redor, como os Viquingues e Magiares, que logo se viram sem inimigos próximos. Apenas os muçulmanos sobraram.” (SANADA, Yuri; SANADA, Vera. As Cruzadas. In: Histórias e lendas do descobrimento: a história completa de como Cabral obteve o conhecimento para chegar às Terras de Santa Cruz e outros descobrimentos de 2000 a.C. a 1500 d.C. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999, p. 19-47)

(2) Ver O homem em busca de Deus, texto publicado, no Brasil, pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, de São Paulo.

(3) Texto apresentado e discutido pela Profa. Wilma Martins de Mendonça, durante o Curso de Literatura Brasileira, da Universidade Federal da Paraíba, no período de 2006.2.
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continua
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Fonte:
VILLAR, Valter Luciano Gonçalves. A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008
Imagem = http://conexaoarabe.blogspot.com