sábado, 6 de abril de 2013

Carolina Ramos (A Vida é uma Ilusão)

Fonte:
RAMOS, Carolina, Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.

Lino Mendes (Baú de Memórias: A Serração da Velha)

(Lino Mendes é de Montargil/ Portugal)

Trata-se de uma tradição muito antiga, datada possivelmente do século XVII e que se festejava  na noite de quarta-feira da terceira semana da “Quaresma”.

Era, como se deduz uma festa pagã, hoje quase desaparecida no nosso país, festejava-se de maneira diferente de terra para terra, tendo como ponto comum, o “testamento”.

Mas, o que simbolizava  a “Serração da Velha”?

Dizem uns que com a mesma se pretende” celebrar o renascimento da Natureza e a expulsão dos demónios do inferno”, enquanto outros referem tratar-se de “um rito de expulsão da morte,” ou mesmo de “ um ritual de passagem mercado pelo desejo simbólico de renovação”.

Terras havia onde as “serradas” eram as velhas que acabavam de ser “avós” ou solteironas que ainda” queriam casar”. Na maioria as pessoas de idade  nem apareciam à janela e quando o faziam era para lhes dar troco, atirando-lhes com um balde água e não poucas vezes urina. Mas também havia quem lhes abrisse a porta, lhes oferecia qualquer coisa, evitando assim a “serração”. Claro que o boneco que simbolizava a velha era queimado no final.

Talvez possamos definir a “Serração da Velha”— nalguns lados também chamada de “ Serra da Velha” e “Serra das Velhas”---“como  o enterro do  Inverno e o início da Primavera”, que marca um interregno lúdico no calendário religioso.

E em Montargil, como era?

Não temos muitos elementos, diremos mesmo que temos poucos. Que me  lembre, não havia “boneca”, recordo-me vagamente, de uma “serração”, feita   há uns cinquenta /sessenta anos. A garotada fazia barulho, com matracas ou batendo em tábuas, ao mesmo tempo que diziam os seguintes versos:

Serre-se a velha “Barrinha”
lá do outro lado da ribeira,
Onde está a comer perna de burro
Pensando que é farinheira.

Mas o Freitas. Mais velho uns anitos, diz-nos que batiam em latas fingindo que iam a serrar, e lembra-se ainda de duas quadras:

Serre-se a Angélica do Zé Mestre
que ela está a roer num pau;
deixou tudo aos Bexigas
não deixou nada aos carapaus.

 Serre-se a velha Maria Luísa,
serre-se e torne-se a serrar,
porque ela tem ossos tão duros,
que nem a serra quer entrar.

Como se pode ver pela segunda quadra, a “serração” incidia algumas vezes em casos da vida real. Mas o que mais uma vez é evidente, certo que desconhecendo os costumes das terras vizinhas, é a enorme diferença em relação a outras terras.

Não há boneca que no final seria queimada, o que aqui acontecia durante a queima dos “compadres”  e das “comadres”; não havia testamento, o que por aqui se verificava no final do “Enterro do Entrudo”. E por falar em testamento, e quando não se fazia o “enterro”, o senhor “António Júlio” também aparecia no Outeiro apregoando as “ deixas” que de maneira satírica” contemplavam algumas figuras da terra.

Fonte:
O Autor

Machado de Assis (O Califa de Platina)

Publicado originalmente em O Cruzeiro 1878

O califa Schacabac era muito estimado de seus súditos, não só pelas virtudes que o adornavam, como pelos talentos que faziam dele um dos varões mais capazes de Platina. Os benefícios de seu califado, aliás curto, eram já grandes. Ele iniciara e fundara a política de conciliação entre as facções do Estado, animava as artes e as letras, protegia a indústria e o comércio. Se havia alguma rebelião, tratava de vencer os rebeldes; em seguida perdoava-lhes. Finalmente, era moço, crente, empreendedor e patriota.

Uma noite, porém, estando a dormir, apareceu-lhe em sonhos um anão amarelo, que, depois de o encarar silenciosamente alguns minutos, proferiu estas palavras singulares:

— Comendador dos crentes, teu califado tem sido um modelo de príncipes; falta-lhe, porém, originalidade; é preciso que faças alguma coisa original. Dou-te um ano e um dia para cumprir este preceito: se o não cumprires, voltarei e irás comigo a um abismo, que há no centro da Tartária, no qual morrerás de fome, sede, desespero e solidão.

O califa acordou sobressaltado, esfregou os olhos e reparou que era apenas um sonho. Contudo, não pôde dormir mais; levantou-se e foi ao terraço contemplar as últimas estrelas e os primeiros raios da aurora. Ao almoço, serviram-lhe peras de Damasco. Tirou uma e quando ia a trincá-la, a pêra saltou-lhe das mãos e saiu de dentro o mesmo anão amarelo, que lhe repetiu as mesmas palavras da noite. Imagina-se o terror com que Schacabac as ouviu. Quis falar, mas o anão desaparecera. O eunuco que lhe servira a pêra estava ainda diante dele, com o prato nas mãos.

— Viste alguma coisa? perguntou o califa, desconfiado e pálido.

— Vi que Vossa Grandeza comeu uma pêra, muito tranqüilo, e, ao que parece, com muito prazer.

O califa respirou; depois recolheu-se ao mais secreto de seus aposentos, onde não falou a ninguém durante três semanas. O eunuco levava-lhe a comida, com exclusão das peras. Não lhe aproveitou a exclusão, porque no fim de três semanas, apetecendo-lhe comer tâmaras, viu sair de dentro de uma o mesmo anão amarelo, que lhe repetiu as mesmíssimas palavras de intimação e ameaça. Schacabac não se pôde ter; mandou chamar o vizir.

— Vizir, disse o califa, logo que este acudiu ao chamado, quero que convoques para esta noite os oficiais do meu conselho, a fim de lhes propor alguma coisa de grande importância e não menor segredo.

O vizir obedeceu prontamente à ordem do califa. Naquela mesma noite, reuniram-se os oficiais, o vizir e o chefe dos eunucos; todos estavam curiosos de saber o motivo da reunião; o vizir, porém, mais curioso ainda que os outros, simulava tranqüilamente achar-se na posse do segredo.

Schacabac mandou vir caramelos, cerejas, e vinhos do Levante; os oficiais do conselho refrescaram as goelas, avivaram o intelecto, sentaram-se comodamente nos sofás e cravaram os olhos no califa, que depois de alguns minutos de reflexão, falou nestes termos:

— Sabeis que tenho feito alguma coisa durante o meu curto califado; contudo, ainda não fiz nada que verdadeiramente se possa dizer original. Foi o que me observou um anão amarelo, que me apareceu há três semanas e ainda hoje de manhã. O anão ameaçou-me com a mais afrontosa das mortes, em um abismo da Tartária, se no fim de um ano e um dia, eu não tiver feito alguma coisa positivamente original. Tenho cogitado dia e noite, e confesso que ainda não achei coisa que merecesse essa qualificação. Por isso vos convoquei; espero de vossas luzes o concurso necessário à minha salvação e à glória da nossa pátria.

O conselho ficou boquiaberto, ao passo que o vizir, a mais e mais espantado, não movia um único músculo do rosto. Cada oficial do conselho fincou a cabeça nas mãos, a ver se descobria uma idéia original. Schacabac interrogava o silêncio de todos, e sobre todos, o do vizir, cujos olhos, fitos no magnífico tapete da Pérsia que forrava o chão da sala, parecia ter perdido a vida própria, tal era a grande concentração dos pensamentos.

Ao cabo de meia hora, um dos oficiais, Muley-Ramadan, encomendando-se a Allah, falou nestes termos:

— Comendador dos crentes, se quereis uma idéia extremamente original, mandai cortar o nariz a todos os vossos súditos, adultos ou menores, e ordenai que a mesma operação seja feita a todos os que nascerem de hoje em diante.

O chefe dos eunucos e diversos oficiais protestaram logo contra semelhante idéia, que lhes pareceu excessivamente original. Schacabac, sem a rejeitar de todo, objetou que o nariz era um órgão interessante e útil ao Estado, porquanto fazia florescer a indústria dos lenços e ministrava anualmente alguns defluxos à medicina.

— Que razão poderia levar-me a privar o meu povo desse natural ornamento? concluiu o califa.

— Saiba Vossa Grandeza, respondeu Muley-Ramadan, que, fundado na predição de um sábio astrólogo de meu conhecimento, tenho por certo que, daqui a um século, há de ser descoberta uma erva fatal ao gênero humano. Essa erva, que se chamará tabaco, será usada de duas formas — em rolo ou em pó. O pó servirá para entupir o nariz dos homens e prejudicar a saúde pública. Desde que os vossos súditos não tenham nariz serão preservados de tão pernicioso costume...

Esta razão foi triunfalmente combatida pelo vizir e todo o conselho, a tal ponto que o califa, aliás inclinado a ela, deixou-a inteiramente de mão. Então o chefe dos eunucos, depois de pedir licença a Schacabac para exprimir um voto, que lhe parecia muito mais original que o primeiro, propôs que dali em diante o pagamento dos impostos passasse a ser voluntário, clandestino e anônimo. Desde que assim for, concluiu ele, estou certo de que o erário regurgitará de sequins; o contribuinte crescerá cem côvados ante a própria consciência; algum haverá que, levado de legítimo excesso, pague duas e três vezes a mesma taxa; e afinado deste modo o sentimento cívico, melhorarão, e muito, os costumes públicos.

A maioria do conselho concordou em que a idéia era prodigiosamente original, mas o califa achou-a prematura, e aventou a conveniência de a estudar e pôr em execução nas proximidades da vinda do Anticristo. Cada um dos oficiais propôs a sua idéia, que foi julgada original, mas não tanto que merecesse ser aceita de preferência a todas. Um propôs a invenção da clarineta, outro a proscrição dos legumes, até que o vizir falou nestes termos:

— Seja-me dado, comendador dos crentes, propor uma idéia que vos salvará dos abismos da Tartária. É esta: mandai trancar as portas de Platina a todas as caravanas que vierem de Brazilina; que nenhum camelo, se ali recebeu mercadoria ou somente bebeu água, que nenhum camelo, digo eu, possa penetrar as portas da nossa cidade.

Espantado com a proposta, o califa ponderou ao vizir:

— Mas que motivo... sim, é preciso que haja um motivo... para...

— Nenhum, tornou o vizir, e nisto consiste a primeira originalidade da minha idéia. Digo a primeira, porque há outra maior. Peço-vos, e ao conselho, que acompanheis atentamente o meu raciocínio...

Todos ficaram atentos.

— Logo que a notícia de semelhante medida chegar a Brazilina, haverá grande reboliço e estupefação. Os mercadores ficarão pesarosos com o ato, porque são os que mais perdem. Nenhuma caravana, nem ainda as que vêm de Meca, quererá mais parar naquela cidade maldita, a qual (permita-me o conselho uma figura de retórica) ficará bloqueada pelo vácuo. Que acontece? Condenados os mercadores a não mercar para cá, serão obrigados a fechar as portas, ao menos aos domingos. Ora, como há em Brazilina uma classe caixeiral, que suspira pelo fechamento das portas aos domingos, para ir fazer suas orações nas mesquitas, acontecerá isto: o fechamento das portas de cá produzirá o fechamento das portas de lá, e Vossa Grandeza terá assim a glória de inaugurar o calembour nas relações internacionais.

Apenas o vizir concluiu este discurso, todo o conselho reconheceu, unânime, que a idéia era a mais profundamente original de quantas tinham sido propostas. Houve abraços, expansões. O chefe dos eunucos disse poeticamente que a idéia do vizir era “. O califa manifestou o seu entusiasmo ao vizir, dando-lhe de presente uma cimitarra, uma bolsa com cinco mil sequins e a patente de coronel da guarda nacional.

No dia seguinte, todos os cádis leram ao povo o decreto que mandava fechar as portas da cidade às caravanas de Brazilina. A notícia excitou a curiosidade pública e causou certa estranheza, mas o vizir tivera o cuidado de espalhar pela boca pequena a anedota do anão amarelo, e a opinião pública aceitou a medida como um sinal visível da proteção de Allah.

Daí em diante, por espaço de alguns meses, um dos recreios da cidade era subir às muralhas a ver chegar as caravanas. Se estas vinham de Damasco, de Jerusalém, do Cairo ou de Bagdá, abriam-se-lhe as portas, e elas entravam sem a mínima objeção; mas se alguma confessava que tocara em Brazilina, o oficial das portas dizia-lhe que passasse de largo. A caravana voltava no meio dos apupos da multidão.

Entretanto o califa indagava todos os dias do vizir se constava que em Brazilina se houvesse procedido ao fechamento das portas aos domingos; ao que o vizir invariavelmemte respondia que não, mas que a medida não tardaria a ser proclamada como conseqüência rigorosa da idéia que havia proposto. Nessa esperança, iam voando as semanas e os meses.

— Vizir, disse um dia Schacabac, quer-me parecer que estamos enganados.

— Descanse Vossa Grandeza, retorquiu friamente o vizir; o fato vai consumar-se; assim o exige a ciência.

Pela sua parte, o povo cansou de apupar as caravanas e começou a notar que a idéia do vizir era simplesmente amoladora. Não vinham da Brazilina as mercadorias do costume, nem o povo mandava para lá as suas cerejas, os seus vinagres e os seus colchões. Ninguém ganhava com o decreto. Começou-se a murmurar contra ele. Um boticário (ainda não havia farmacêutico) arengou ao povo, dizendo que a idéia do vizir era simplesmente vã; que jamais o trocadilho das portas fechadas chegaria a ter a mínima sombra de realidade científica. Os doutores eclesiásticos não acharam no Corão um só versículo que pudesse justificar tais induções e esperanças. Lavrava a descrença e descontentamento; começava a soprar uma aragem de revolução.

O vizir não teve só de lutar contra o povo, mas também contra o califa, cuja boa fé começou a desconfiar do acerto do decreto. Três dias antes de chegar o prazo fatal, o califa intimou o vizir a dar-lhe notícia do resultado que prometera ou a substituí-lo por uma idéia verdadeiramente original.

Nesse apertado lance, o vizir chegou a desconfiar de si, e a persuadir-se que aventara aquela idéia, levado do único desejo de desbancar os outros oficiais. Disso mesmo o advertiu Abracadabro, varão exímio na geomancia, a quem consultou sobre o que lhe cumpria fazer.

Esperar, disse Abracadabro, depois de traçar algumas linhas no chão; esperar até o último dia do prazo fatal marcado ao califa. O que há de acontecer nesse dia, não o pode descortinar a ciência, porque há muita coisa que a ciência ignora. Mas faze isso. No último dia do prazo, à noite, tu e o califa deveis recolher-vos ao mais secreto aposento, onde vos serão servidos três figos de Alexandria. O resto lá saberás; e podes ficar certo de que será coisa boa.

Deu-se pressa o vizir em contar ao califa as palavras de Abracadabro, e, fiados na geomancia, aguardaram o dia último. Veio este, e depois dele a noite. Sós os dois, no mais secreto aposento de Schacabac, mandaram vir três figos de Alexandria. Cada um dos dois tirou o seu e abriu-o; o do califa deu um pulo, subiu ao teto e caiu logo no chão, sob a forma do famoso anão amarelo. Vizir e califa tentaram fugir, correndo às portas; mas o anão os deteve com gesto amigo.

— Não é preciso fugir, disse ele; não venho buscar-te; venho somente declarar, que achei verdadeiramente original a idéia do fechamento das portas. Certo é que não deu de si tudo o que o vizir esperava; mas nem por isso perdeu de originalidade. Allah seja convosco.

Livre da ameaça, o califa mandou logo que todas as portas se abrissem às caravanas de Brazilina. O povo aquietou-se; o comércio votou mensagens de agradecimento. E porque o califa e o vizir eram homens instruídos, práticos e dotados de boas intenções, e apenas tinham cedido ao medo, sentiram-se contentes com repor as coisas no antigo pé, e não se encontravam nunca sem dizer ao outro, esfregando as mãos :

— Aquele anão amarelo!

Fonte: 
www.alecrim.inf.ufsc.br

Luis Vaz de Camões (Caravela da Poesia XXIV)

Sonetos
(foi mantida a grafia original)

071

Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Foi voluntária, ou foi por inocência?
—Mas foi fazer Amor experiência
se podia sofrer tirar me a vida.

—E com teu próprio sangue te convida
a não pores à vida resistência?
—Ando me acostumando à paciência,
porque o temor a morte não impida.

—Pois porque comes, logo, fogo ardente,
se a ferro te costumas?—Porque ordena
Amor que morra e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?
—Si: que a dor costumada não se sente;
e eu não quero a morte sem a pena.

043

Como quando do mar tempestuoso
o marinheiro, lasso e trabalhado,
d'um naufrágio cruel já salvo a nado,
só ouvir falar nele o faz medroso;

e jura que em que veja bonançoso
o violento mar, e sossegado
não entre nele mais, mas vai, forçado
pelo muito interesse cobiçoso;

Assi, Senhora eu, que da tormenta,
de vossa vista fujo, por salvar me,
jurando de não mais em outra ver me;

minh'alma que de vós nunca se ausenta,
dá me por preço ver vos, faz tornar me
donde fugi tão perto de perder me.

093

Conversação doméstica afeiçoa,
ora em forma de boa e sã vontade,
ora de üa amorosa piedade,
sem olhar qualidade de pessoa.

Se despois, porventura, vos magoa
com desamor e pouca lealdade,
logo vos faz mentira da verdade
o brando Amor, que tudo em si perdoa.

Não são isto que falo conjecturas,
que o pensamento julga na aparência,
por fazer delicadas escrituras.

Metido tenho a mão na consciência,
e não falo senão verdades puras
que me ensinou a viva experiência.

104

Correm turvas as águas deste rio,
que as do Céu e as do monte as enturbaram;
os campos florecidos se secaram,
intratável se fez o vale, e frio.

Passou o Verão, passou o ardente Estio,
üas cousas por outras se trocaram;
os fementidos Fados já deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não há nela mais que o que parece.

052

Dai me üa lei, Senhora, de querer vos,
que a guarde, sô pena de enojar vos;
que a fé que me obriga a tanto amar vos
fará que fique em lei de obedecer vos.

Tudo me defendei, senão só ver vos,
e dentro na minh'alma contemplar vos;
que, se assi não chegar a contentar vos,
ao menos que não chegue [a] aborrecer vos.

E, se essa condição cruel e esquiva,
que me dois lei de vida não consente,
dai ma, Senhora, já, seja de morte.

Se nem essa me dais, é bem que viva,
sem saber como vivo, tristemente,
mas contente porém de minha sorte.

150

À sepultura de D. Fernando de Castro

Debaixo desta pedra está metido,
das sanguinosas armas descansado,
o capitão ilustre, assinalado,
Dom Fernando de Castro esclarecido.

Por todo o Oriente tão temido,
e da enveja da fama tão cantado,
este, pois, só agora sepultado,
está aqui já em terra convertido.

Alegra-te, ó guerreira Lusitânia
por este Viriato que criaste,
e chora-o, perdido, eternamente.

Exemplo toma nisto de Dardânia;
que, se a Roma co ele aniquilaste,
nem por isso Cartago está contente.

094

Despois que quis Amor que eu só
passasse quanto mal já por muitos repartiu,
entregou me à Fortuna, porque viu
que não tinha mais mal que em mim mostrasse.

Ela, porque do Amor se avantajasse
no tormento que o Céu me permitiu,
o que para ninguém se consentiu,
para mim só mandou que se inventasse.

Eis me aqui vou com vário som gritando,
copioso exemplário para a gente
que destes dous tiranos é sujeita,

desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
que deste tão pequeno está contente!

152

Despois que viu Cibele o corpo humano
do fermoso Átis seu verde pinheiro,
em piedade o vão furar primeiro
convertido, chorou seu grave dano.

E, fazendo a sua dor ilustre engano,
a Júpiter pediu que o verdadeiro
preço da nova palma e do loureiro,
ao seu pinheiro desse, soberano.

Mais lhe concede o filho poderoso
que, as estrelas, subindo, tocar possa,
vendo os segredos lá do Céu superno.

Oh! ditoso Pinheiro! Oh! mais ditoso
quem se vir coroar da folha vossa,
cantando à vossa sombra verso eterno!

153

De tão divino acento e voz humana,
de tão doces palavras peregrinas,
bem sei que minhas obras não são dinas,
que o rudo engenho meu me desengana.

Mas de vossos escritos corre e mana
licor que vence as águas cabalinas;
e convosco do Tejo as flores finas
farão enveja à cópia mantuana.

E pois, a vós de si não sendo avaras,
as filhas de Mnemósine fermosa
partes dadas vos tem, ao mundo caras,

a minha Musa e a vossa tão famosa,
ambas posso chamar ao mundo raras:
a vossa d'alta, a minha d'envejosa.

Fonte:
CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos. A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro . Texto-base digitalizado por: FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional (http://www.fccn.pt) IBL - Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (http://www.ibl.pt)
Imagem formatada obtida na internet, sem identificação do autor.

Universidade Estadual de Maringá (Semana do Livro inicia dia 10 de abril)

Começa na próxima quarta-feira (10), a Semana Livro da UEM. Quem visitar os estandes poderá encontrar exemplares a partir de R$ 5,00. O evento, que este ano entra na sétima edição, será realizado até sexta-feira, dia 12, no estacionamento ao lado do Restaurante Universitário.

Mais de 140 títulos, todos publicados pela Eduem, a Editora da Universidade, serão colocados à venda. As obras estarão com descontos de R$ 50% ou tabelados com preços de R$ 5,00, R$ 7,00 ou R$ 10,00. Os pagamentos poderão ser feitos com cartão de crédito ou, no caso de  servidores da UEM, através de desconto em folha. O atendimento será feito das 8h30 às 21h30.

Fonte:
UEM

Helena Vasconcelos (A Acidentada Travessia da Senhora Woolf)

"A Viagem", Virginia Woolf
Virginia Woolf escreveu o seu primeiro romance “A Viagem” (“The Voyage Out”) ao longo de seis penosos anos, numa altura em que a sua vida se alterou radicalmente. O pai, Sir Leslie Stephen, morreu em 1904 e os irmãos, Virgínia ( com 22 anos), Vanessa, Adrian e Thoby mudaram-se para o nº 46 de Gordon Square. Aí, às quintas-feiras, Thoby começou a juntar os seus amigos do Trinity College, os “sensacionais” Lytton Strachey, Clive Bell, Saxon Sydney -Turner e Leonard Woolf para discutirem “tudo”, de Filosofia a Religião, de Arte a Culinária. Nasceu assim o famoso "Bloomsbury Group” no seio do qual se defendia a liberdade em todas as suas manifestações e se intelectualizavam os factos da existência. Este breve tempo fulgurante, intenso e formativo acabou com a morte de Thoby, em 1906, e com a proposta de casamento de Clive Bell a Vanessa, no ano seguinte, acontecimentos em rápida sequência que contribuíram para a instabilidade mental de Virgínia, agravada pela eminente publicação de “A Viagem”, algo que fez despoletar um dos seus acessos de loucura mais dramáticos e pronunciados, só comparável ao que a atingiu quando escreveu “Os Anos” (deixado incompleto) e que a levou ao suicídio, em 1941.

“A Viagem” foi um projecto ambicioso desde o início. Virgínia escrevia artigos e ensaios para o Times Literary Supplement e, com este romance, queria encontrar um lugar firme entre os seus pares. Rodeada pelos “ sábios rapazes de Cambridge” e em vivo contraste com Vanessa – artista, feminina, sensual, extrovertida, apaixonada – Virgínia sofria e debatia-se com os seus terrores. O marido, Leonard que regressara de Ceilão (Sri Lanka) em 1911 – ele e Virginia casaram em 1912 – falou de “uma espécie de tortura intensa” que atingiu o seu apogeu nos meses de Janeiro e Fevereiro de 1913, enquanto ela acabava o manuscrito. Em Março de 1913 “ A Viagem” estava terminado, Virgínia deu-o a ler a Leonard e este levou-o a Gerald Duckworth (meio irmão de Virgínia) que possuía uma editora. Em Abril a publicação estava assegurada mas, enquanto esperava, Woolf passava noites insones a repensar a sua arte, questionando-se acerca da dificuldade em usar a linguagem para veicular a intensidade de tudo o que a interessava e preocupava. A 25 de Janeiro de 1915 Virginia fez 33 anos e parece ter-se sentido feliz, mimada por Leonard e pelos amigos. Dois dias depois escreveu no seu célebre diário que estava à espera que toda a gente lhe dissesse que o livro era “brilhante” enquanto, nas suas costas, o iriam condenar como “ ele, aliás, merecia”. A 25 de Março, véspera da tão esperada publicação, o seu estado mental deteriorou-se de tal maneira que teve de ser internada. Mais tarde Leonard levou-a para casa, onde ficou ao cuidado de quatro enfermeiras que a ajudaram a superar lentamente os seus violentos ataques de demência e uma tentativa de suicídio. O livro foi recebido benevolamente pelos críticos e E.M. Forster, por quem Virgínia tinha grande apreço, escreveu no Daily News: “Aqui está, finalmente, um livro que atinge a unidade de “O Monte dos Vendavais” embora o faça por outro caminho”.

Quando Woolf imaginou Rachel Vinrace, a heroína de 24 anos de “A Viagem” na sua travessia iniciática do Atlântico, ao encontro de um despertar emocional e sexual, estava a pensar na sua própria passagem da abandonada casa da infância em Hyde Park Gate – a maior parte da mobília foi vendida ao Harrods – para o ambiente de boemia criativa de Bloomsbury, onde era constantemente desafiada a escrever e a viver de acordo com as suas próprias opções.

No início de “A Viagem” o professor Ridley Ambrose e Helen, sua mulher, atravessam uma Londres labiríntica, desolada e hostil para embarcarem no “Euphrosyne”, um pequeno navio propriedade de Willoughby Vinrace, homem de negócios com ambições políticas, cunhado de Helen e pai de Rachel. O barco deixa a foz do Tamisa em direcção a Lisboa onde embarca o casal Dalloway – Richard, um membro do Parlamento e Clarissa, uma beldade, surgirão mais tarde como principais protagonistas num outro romance de Woolf, de 1925 – que vai fazer companhia aos outros passageiros, alegrando com a sua sofisticação, a enfadonha vida a bordo. Antes de desembarcarem – supõe-se que algures no norte de África - o casal Dalloway deixa marcas: Clarissa passa a representar um ideal de mulher para Rachel que vê nela uma promessa de “glamour” futuro e Richard, num momento de fraqueza libidinosa, beija-a secretamente, “despertando-lhe os sentidos”. O “Euphrosyne” – frágil lugar de passagem – retoma a sua rota, cruzando o Atlântico, e os passageiros são finalmente despejados em Santa Marina, um local totalmente inventado, mistura do Caribe com a costa do Brasil. Onde se instalam numa casa colonial junto a um hotel onde já se encontram hospedados outros súbditos de Sua Majestade.

São conhecidas as personagens que correspondem a figuras próximas de Virgínia como por exemplo a sua irmã Vanessa (transmutada em Helen) e Lytton Strachey na pele de St John (“Muito inteligente e muito feio”). Quando estava a escrever “A Viagem” Virgínia vivia rodeada de amigos do irmão e, como faz notar a sua biógrafa Hermione Lee, “ … essas relações foram-se erotizando. A princípio esses jovens pareciam a Virgínia inatingíveis e, comodamente, assexuados. Mas à medida que todos se tornavam amigos íntimos passaram a ser considerados como possibilidades de escolha (sexual)”. Num curto espaço de tempo Virgínia recebeu seis (possivelmente sete) propostas de casamento mas o que lhe interessava verdadeiramente eram temas como o sufrágio feminino, a religião, a liberdade e a estética que se tornaram a base de uma plataforma vanguardista na qual ela passou a desempenhar um papel dominante e que integrou na sua obra.

Começado numa altura em que ninguém antecipava o horror da Iª Grande Guerra, “A Viagem” foi pensado como uma réplica “modernista” e “feminista” a “Coração das Trevas” de Joseph Conrad, publicado em 1899. Virgínia admirava o escritor polaco, embora tivesse notado que ele não queria mulheres nos seus livros e as substituísse por belos navios “mais femininos do que as mulheres que são, ou montanhas de mármores ou apenas sonhos de um rapaz encantador que contempla o retrato de uma atriz”. Em paralelo com o Congo de Conrad e a aventura de Marlowe – com a sua dura crítica ao imperialismo – Woolf dá conta de outro “continente” expropriado, desconhecido e devastado, o “ser feminino”. Ao colocar Rachel, tal como ela própria, destituída das armas necessárias para levar a cabo a demanda da “verdade” das leis, tanto naturais como sociais, retira-lhe as hipóteses de vencer essa, “…Grande Guerra travada em prol de coisas como pedras, jarros, destroços no fundo do mar, árvores, estrelas, música, contra aqueles que (só) acreditam no que vêm”.

Confrontada com o sistema de oposição de gêneros e com a diferença de classes – “ é maravilhoso sermos ingleses” exclama uma personagem ao ver os navios de guerra britânicos ancorados ao largo – Rachel/ Virgínia percebe que, por muito sábios que sejam esses rapazes tão bem educados nas suas Universidades medievais e que a rodeiam atraídos pela sua juventude, a “moral” revela-se como uma simples máscara do código de opressão que valida a castidade feminina. Tal como a “verdade monstruosa” de Conrad, uma prerrogativa masculina, esse sistema eternizava a ideia de que as mentiras são atribuídas às mulheres, embora os homens mintam, se assim o entenderem, principalmente às mulheres. No final, a abrupta morte de Rachael – vítima desses “tristes trópicos” implacáveis - é a representação da angústia da autora, embora o desenlace seja considerado como inevitável para uma jovem mulher que se recusa a ser sacrificada no altar do casamento, com as suas rígidas leis patriarcais.

“A Viagem” é um romance ao qual têm sido apontadas várias falhas, principalmente quando saiu a edição americana: o livro é demasiado longo, as personagens entediantes, os heróis banais, as conversas arrastam-se, não há tigres na América do Sul, Woolf é preconceituosa em relação aos “nativos” ( e aos judeus, embora tenha casado com um) e não acontece nada de relevante. Como em Jane Austen há bailes e passeios (de burro e de barco), a paisagem é devidamente apreciada, a convivência faz-se baseada em equívocos e as inclinações amorosas levam à frustração. No entanto, se Austen era impiedosamente irênica, Virgínia Woolf é demolidora em relação aos seus concidadãos, caricaturados sem atenuantes na sua pomposidade e na sua incapacidade de perceberem o “novo mundo”, para onde arrastam as suas poeirentas, ignorantes e arrogantes opiniões e definições de vida. Até mesmo Rachel, supostamente a figura principal do romance, é uma personagem indefinida, opaca. O hotel onde todos se juntam é um “não-lugar” , um espaço fora da geografia e do tempo, uma plataforma onde as pessoas se limitam a esperar. Para trás, deixaram o antigo universo vitoriano com as suas múltiplas regras ridículas e atravessaram o oceano até aquele éden luxuriante onde as possibilidades são infinitas. Mas a verdade é que as senhoras garridas, os acadêmicos empedernidos e os jovens educados na perfeição em Oxford e Cambridge não têm qualquer hipótese de vingar, não estão preparados. Têm vagos projetos – Hewet quer escrever um livro sobre o “silêncio” – e não pressentem que estão à beira do caos e no final de uma era. Woolf mostra o seu brilhantismo, o seu lirismo exacerbado, a capacidade encantatória de transformar o que é banal em épico, defendendo a “corrente da consciência” como matéria-prima de ficção, no rasto de Walter Pater, o ensaísta e crítico literário do século XIX que foi em parte responsável pelo Movimento Estético (um dos seus mais fervorosos discípulos foi Oscar Wilde).

Woolf viveu o fim do Império, as grandes transformações da época moderna e duas Guerras e fez do acto de pensar uma prática intensa, o suporte de uma luta para a paz e para a igualdade numa economia global, a favor da defesa dos direitos humanos. Numa entrada do seu Diário escreveu sobre a loucura e a escrita nos seguintes termos: “ O meu cérebro é, para mim, uma máquina incontrolável – sempre a zumbir, a murmurar, a ir-se a baixo, a bramir, a mergulhar e a ser, depois, sepultado em lama. E porquê? Para que serve esta paixão?”
–––––––––––
Nota: Em 1981, a acadêmica americana Louise DeSalvo ( autora de “Virginia Woolf: The Impact of Sexual Abuse on her Life and Work”) publicou uma versão de “A Viagem” intitulada “Melymbrosia” que ela sustenta ter sido a primeira . DeSalvo trabalhou durante sete anos para reconstruir o romance como ela supõe que foi terminado em 1912, antes da grande revisão levada a cabo por Woolf. As alterações teriam surgido porque a autora receava que a primeira versão, mais dura em termos de crítica política e com comentários mais alargados a questões como a homossexualidade e o colonialismo, pudesse desencadear críticas violentas. Os seus amigos aconselharam-na a “amenizar” o conteúdo do texto com receio que este viesse a prejudicar-lhe a carreira.

Nota: Texto publicado no Jornal Público - Suplemento Ípsilon - Agosto, 2011

Fonte:

http://www.storm-magazine.com/

Aparecido Raimundo de Souza (Inconfundível)

No berçário da maternidade, o molequinho assedia a garotinha. Puxa conversa.

Menininho:
— Oi, gatinha! Não me lembro de ter visto você antes de hoje!

Menininha:
— Realmente. É a minha primeira vez. Na verdade, acabei de chegar.

Menininho:
— Que legal! Eu também acabei de ser colocado aqui! E continua: — Eu sou um menino!

Menininha:

— Como sabe?

Menininho:

— Espera a enfermeira virar as costas que eu lhe mostro.

Cinco minutos depois a enfermeira deixa a sala e se afasta silenciosamente. A garotinha ataca.

Menininha:
— Pronto, ela saiu.

Menininho:
— Quietinha. Ela vai voltar. Esqueceu de acender a luz.

Menininha:
— É mesmo. Não havia percebido esse detalhe...

Realmente a enfermeira retorna e acende uma espécie de abajur especial que invade o ambiente de forma suave, deixando a sala quase em penumbra.

Menininha:
— Então, ela se foi.

Menininho:
— Calma. Você é bem apressadinha.

Menininha:
— Nem tanto. Levei nove meses para nascer.

Menininho:
— Eu também...

Menininha:
— Quem falou?

Menininho:
— Um homem alto, de branco.

Menininha:
— Ele usava uma máscara no rosto?

Menininho:
— Usava. E tinha um bigode engraçado...

Menininha:
—... E também carregava um negócio esquisito em volta do pescoço que de vez em quando colocava nos ouvidos?

Menininho:
—Sim. Aquele é o doutor pediatra. Aquilo que ele usa se chama estetoscópio. Serve para ouvir o coração.

Menininha:
— Você é bem sabido para um piá na sua idade.

Menininho:

—Gosto de observar as coisas.

Menininha:
— Está gostando deste lugar?

Menininho:
— Não, tudo muito parado. E você?

Menininha:
— Achava melhor de onde eu vim. Era mais quentinho. Lembro que ficava toda encolhidinha, às vezes dava uns chutes. Ai ouvia a voz de mamãe, depois de papai... Aqui, além de frio, é meio triste!

Menininho:
— Concordo. Pra falar a verdade estou cansado de ficar olhando para o teto.
Menininha:

— Eu idem. Olha, você está me enrolando. A enfermeira deu no pé faz um bom tempo. Não vai retornar tão cedo. Agora me conta: como sabe que é homem?

Menininho:
— “Jo lo se!...”.

Menininha:
— Quer deixar de ser exibido? Fale português claro. Além de tudo ainda pronunciou as palavras de forma errada. Não se diz “jo...

Menininho, interrompendo bruscamente:
—...Ta, foi mal!

Menininha:
— Pois então: como sabe seu sexo? Você disse que ia me mostrar. Deixa de papo furado e vamos direto ao assunto.

Menininho:
— Mocinha intransigente, você. Mas, ta ai: gostei do seu jeito... Vamos nos dar bem.

Menininha:
— Ande logo.

O pequeno levanta um pouco a coberta e cochicha.

Menininho:
— Olha aqui.

Menininha:
— Onde?

Menininho:
— Aqui.

Menininha:
— Estou olhando, mas não estou vendo nada!

Menininho:
— Como não está vendo nada? O troço está visível!

Menininha:
Ué, pode até estar, mas eu não estou vendo mesmo.

Menininho:
— Levanta um pouco a cabeça.

Menininha:
— Pronto!

Menininho:
— Viu?

Menininha:
— Não. Afinal, o que é que tem ai?

Menininho:
— Estica o pescoço, criatura. Parece que nasceu cansada! Olha o tamanho...

Menininha:
— Deixa de ser bobão. Já estiquei o pescoço e realmente não vi nem estou vendo porcaria nenhuma. Tamanho! Tamanho de quê?

Menininho:
— Não é possível. Vira um pouco de lado.

Menininha:
— Assim?

Menininho:
— É. Conseguiu?

Menininha:
— Ah, agora deu pra perceber...

Menininho:
— Legal. Diga então o que você realmente viu?

Menininha:
— Nossa! Preciso fazer isso?

Menininho:
— O que você acha? Fala logo. Acho que você está mentindo. Não viu coisíssima nenhuma. Ou se viu está com vergonha...

Menininha:
— Vi sim. E não estou com vergonha de nada. Seu moleque idiota!

Menininho:
— Você chegou onde eu imaginava. É como havia previsto: você não viu porcaria nenhuma.

Menininha:
— Vi. Eu vi. E não me chame de mentirosa.

Menininho:
— Você me xingou primeiro. Disse que sou idiota.

Menininha:
— Ta desculpe.

Menininho:
— Está desculpada. Agora para me deixar bem alegre e levantar meu astral, desembucha. Diz ai, minha linda, o que foi que você viu?

Antes de responder a mocinha se abre num sorriso encantador.

Menininha:
— Seu sapatinho. É preto!

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Refúgio para Cornos Avariados. SP: Ed. Sucesso, 2011

O Nosso Português de Cada Dia (Pegadinhas do Português) 8

Pegadinha 42

Toda a mulher casada deveria saber dirigir automóvel.


Toda a (note a presença do artigo) significa inteira. Depois desse entendimento, a frase parece esdrúxula da cabeça aos pés!

Toda (note a ausência do artigo) significa qualquer. Agora, sim, a frase passa a ter sentido, pois se quer referir, na frase inicial, a qualquer mulher, e não à mulher inteira.

Veja os seguintes exemplos:

Todo homem deveria falar uma língua além da materna. (qualquer homem)
Todo o homem tremia de frio. (o homem inteiro)
Toda a cidade festejou a vitória do time. (a cidade inteira)
Toda cidade tem problemas com drogas. (qualquer cidade)

A frase inicial, depois da correção, fica assim:

Toda mulher casada deveria saber dirigir automóvel.

Pegadinha 43

Se você ver o Marcos, diga-lhe que a data do concurso foi adiada!


Esta frase representa uma pedra no sapato para muitos candidatos. O futuro do subjuntivo do verbo ver faz-se assim: vir, vires, vir, virmos, virdes, virem.

A frase inicial, depois da correção, fica assim:

Se você vir o Marcos, diga-lhe que a data do concurso foi adiada!

Pegadinha 44

Depois que ouvi a notícia, fiquei curioso por conhecer aquela cidade.


Eis um equívoco no uso da regência nominal. Curioso e curiosidade pedem a preposição de para unirem-se a seus complementos. Algumas vezes, ficamos curiosos de ou temos curiosidade de alguma coisa, porém jamais por alguma coisa. Exemplos:

Curioso de saber por que errava tanto, resolvi ler mais e estudar português.
Curioso de vê-lo chegar àquela hora, quis saber onde estivera.
A curiosidade infantil de entender como o rádio funcionava levou-o à faculdade de engenharia, na qual destacou-se como o mais qualificado aluno.

A palavra curioso pode ser usada sem complemento. Algumas pessoas são levadas a confundir a regência nessa construção, achando, erroneamente, que curioso pede a preposição por. Exemplo:

Sou curioso por estar sempre inquieto.

Levando a frase acima à ordem direta, comprova-se que a preposição não é exigida pela palavra curioso, mas apenas é parte integrante do adjunto adverbial de modo:
Por estar sempre inquieto, sou curioso.

A frase correta seria:

Depois que ouvi a notícia, fiquei curioso de conhecer aquela cidade.

Pegadinha 45

Na prova, pediam-se cálculos difíceis de resolverem.


A presente frase apresenta erro no uso do infinitivo. Não se flexiona o infinitivo que vem depois das expressões difíceis de, fáceis de, bons de, gostosos de etc. Exemplos:

Filmes difíceis de compreender.
As explicações da professora são fáceis de entender.
São trabalhos bons de realizar.
Bolos gostosos de saborear.

A frase acima estará correta, se assim for escrita:

Na prova, pediam-se cálculos difíceis de resolver.

Pegadinha 46

O preço do quilo da laranja varia entre um a dois reais.


Esta frase é de relativa importância para quem vai prestar provas de concursos. Entre se relaciona com e, e não com a:

O espetáculo começará entre vinte e vinte e uma horas.
Se na frase não constar a palavra entre, tudo bem! Nesse caso, usa-se a preposição a:
A altura da fogueira oscilava de trinta a quarenta metros.

A frase inicial, depois da correção, fica assim:

O preço do quilo da laranja varia entre um e dois reais.

Pegadinha 47

O touro investiu no capataz.


Nesta pegadinha, aborda-se a diferença de significado de um verbo, conforme a preposição que o acompanha. Veja, a seguir, os possíveis significados do verbo investir:

1 - usado com a preposição em, significa empossar, aplicar dinheiro:
O presidente do tribunal investiu Márcio no cargo de analista.
O corruptos investem em bolsas estrangeiras.

2 - no sentido de atacar é usado com as preposições contra ou sobre:
A onça investe contra (ou sobre) o caçador.

A frase inicial, depois de corrigida, fica assim:

O touro investiu sobre (ou contra) o capataz.

Pegadinha 48

Fiquem absolutamente tranquilos, eu ressarço os acionistas.


Nesta pegadinha falaremos sobre um verbo com certas anomalias. Trata-se do verbo ressarcir. Esse verbo só é conjugado nas formas em que o acento tônico não incide no radical. Desse modo, o presente do indicativo só possui as formas: ressarcimos e ressarcis. Quando não existe uma determinada forma verbal, substituímos por outra de mesmo significado. Em nosso caso, podemos permutar pelas correspondentes formas dos verbos compensar, indenizar ou outro equivalente.

A frase inicial, depois da correção, fica assim:

Fiquem absolutamente tranquilos, eu indenizo os acionistas.

Pegadinha 49

Estou sem nenhuma moral para fazer a prova.


O vocábulo moral (a moral, no feminino) quer dizer relativo à moralidade, aos bons costumes, que procede conforme à honestidade e à justiça, que tem bons costumes, diz-se de tudo que é decente, educativo e instrutivo (Dic. Michaelis).. Um indivíduo sem nenhuma moral é um devasso. Já, no masculino (o moral) quer dizer disposição do espírito, energia para suportar as dificuldades, os perigos; ânimo. Um indivíduo sem nenhum moral é alguém desanimado, desmotivado.

A frase inicial, depois da correção, fica assim:

Estou sem nenhum moral para fazer a prova.

Pegadinha 50


A pessoa cuja a vida é tumultuada, certamente, não consegue concentrar-se em nada.


Não se pospõe artigo ao pronome cujo.

A frase inicial, depois de corrigida, fica assim:

A pessoa cuja vida é tumultuada, certamente, não consegue concentrar-se em nada.

Fonte:
126 Pegadinhas em Língua Portuguesa. www.softwareebookecia.com.

Raquel Ordones (Metamorfose)


Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 1

CAPÍTULO PRIMEIRO / DO TÍTULO

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

-- Continue, disse eu acordando.

-- Já acabei, murmurou ele.

-- São muito bonitos.

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você."--"Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renania; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo."--"Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça."

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração - se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.

CAPÍTULO II/ DO LIVRO

Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.

Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia. há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do tecto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos blocos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do tecto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa.

Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior, é outra cousa a certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal.

Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência. filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma "História dos Subúrbios" menos seca que as memórias do Padre Luís Gonçalves dos Santos relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?...

Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo.

CAPÍTULO III/ A DENÚNCIA


Ia entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da Rua de Mata-cavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857.

--D. Glória, a senhora persiste na idéia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade.

--Que dificuldade?

--Uma grande dificuldade.

Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua.

--A gente do Pádua?

--Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.

--Não acho. Metidos nos cantos?

--É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase que não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as cousas corressem de maneira, que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe que todos têm a alma candida...

--Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze à semana passada; são dous criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos, desde aquela grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta cousa; daí vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer?. . . Mano Cosme, você que acha? Tio Cosme respondeu com um "Ora!" que, traduzido em vulgar, queria dizer: "São imaginações do José Dias os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?"

--Sim, creio que o senhor está enganado.

--Pode ser minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei senão depois de muito examinar...

--Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de metê-lo no seminário quanto antes.

--Bem, uma vez que não perdeu a idéia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe e depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o Padre Feijó governou o Império...

-- Governo como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores políticos.

--Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando O que eu quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.

--Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer missa atrás das portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre?

-- É promessa, há de cumprir-se.

--Sei que você fez promessa... mas uma promessa assim... não sei... Creio que, bem pensado... Você que acha, prima Justina?

-- Eu?

--Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme- Deus é que sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que é isso, mana Glória? Está chorando? Ora esta pois isto é cousa de lágrimas?

Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção... Não pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: "Prima Glória! Prima Glória!" José Dias desculpava-se: "Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo... "

CAPÍTULO IV / UM DEVER AMARÍSSIMO!


José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um arco de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinqüenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado se era dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever amaríssimo!

CAPÍTULO V / O AGREGADO


Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se descompunha em acionados, era muita vez rápido e lépido nos movimentos, tão natural nesta como naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo, a tal ponto ás bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, gravíssimo.

Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por médico homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber nenhuma remuneração. Então meu pai propôs-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé do pobre.

--Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quiser, mas fique morando conosco.

--Voltarei daqui a três meses.

Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipêndio, salvo o que quisessem dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o Rio de Janeiro com a família, ele veio também, e teve o seu quarto ao fundo da chácara. Um dia, reinando outra vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que fosse ver a nossa escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou confessando que não era médico. Tomara este título para ajudar a propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar muito e muito; mas a consciência não lhe permitia aceitar mais doentes.

--Mas, você curou das outras vezes.

--Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os remédios indicados nos livros. Eles, sim, eles, abaixo de Deus. Eu era um charlatão... Não negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia é a verdade, e, para servir à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo.

Não foi despedido, como pedia então; meu pai já não podia dispensá-lo. Tinha o dom de se fazer aceito e necessário; dava-se por falta dele, como de pessoa da família. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme, disseram-me; não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata, e não consentiu que ele deixasse o quarto da chácara; ao sétimo dia. depois da missa, ele foi despedir-se dela.

--Fique, José Dias.

--Obedeço, minha senhora.

Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama. "Esta é a melhor apólice", dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado, de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum fenômeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo.

--Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.

--Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.

E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido lugar, e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a cópia de papéis de autos.

CAPÍTULO VI / TIO COSME

Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era viúvo, como prima Justina; era a casa dos três viúvos.

A fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas funções do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório na antiga Rua das Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no crime. José Dias não perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais modesto que quisesse ser. sorria de persuasão.

Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à cocheira segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo - a isto seguia-se um minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito. Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote.

Também não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça (donde vim com dous anos) e apesar dos costumes do tempo, eu não sabia montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar desesperadamente: "Mamãe! mamãe!" Ela acudiu pálida e trêmula, cuidou que me estivessem matando, pegou-me, afagou-me, enquanto o irmão perguntava:

--Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?

--Não está acostumado.

--Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quiser florear como os outros rapazes, e não souber, há de queixar-se de você, mana Glória.

--Pois que se queixe; tenho medo.

--Medo! Ora, medo!

A verdade é que eu só vim a aprender equitação mais tarde, menos por gosto que por vergonha de dizer que não sabia montar. "Agora é que ele vai namorar deveras", disseram quando eu comecei as lições. Não se diria o mesmo de tio Cosme. Nele era velho costume e necessidade. Já não dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, além de partidário exaltado; mas os anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou com o resto de idéias públicas e específicas. Agora só cumpria as obrigações do ofício e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez dizia pilhérias.

CAPÍTULO VII / D. GLÓRIA

Minha Mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Mata-cavalos, onde vivera os dous últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a família Fernandes.

Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Maria da Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dous anos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de folhas. Lidava assim, com os seus sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços todos da casa inteira, desde manhã até à noite.

Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá idéia de ambos. Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade.

Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar. Aqui os tenho aos dous bem casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatídica. São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: "Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!" O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: "Vejam como esta moça me quer..." Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade.
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continua..

Alexandre Dumas (O Angelus nos Mares da Sicília)

O dia se tinha escoado em meio a exaustivos cuidados para evitar o naufrágio, e a noite começava a descer. Aproximávamo-nos de Messina, e eu me lembrava da profecia do piloto, que nos havia anunciado que duas horas após a Ave-Maria teríamos chegado ao nosso destino. Isso me recordou que desde nossa partida eu não havia visto nenhum dos nossos marinheiros cumprir ostensivamente os deveres da Religião, que no entanto os filhos do mar consideram sagrados.

 Havia mais: uma pequena cruz de oliveira incrustada de nácar, semelhante àquelas que os monges do Santo Sepulcro fazem e os peregrinos trazem de Jerusalém, havia desaparecido de nossa cabine, e eu a havia reencontrado na proa da embarcação, acima de uma imagem da Madonna di Pie’ di Grotta, sob a invocação da qual nossa pequena embarcação estava colocada. Depois de me ter informado se havia um motivo particular para mudar a cruz de lugar, e ter sabido que não, eu a retomei de onde estava e a levei à cabine, na qual ficou desde então. Estava claro que a Madonna, agradecida sem dúvida, nos protegera na hora do perigo.

 Nesse momento eu me virara, e percebi o capitão próximo a nós.

 — Capitão — disse-lhe — parece-me que em todos os navios napolitanos, genoveses ou sicilianos, quando vem a hora da Ave-Maria, se faz uma prece em comum. Não é esse o seu hábito a bordo do Speronare?

 — De fato, Excelência, de fato! — respondeu vivamente o capitão — E devo esclarecer que estamos embaraçados por não o podermos fazer.

 — Mas o que o impede?

 — Desculpe-me, Excelência, mas como nós conduzimos com freqüência ingleses que são protestantes, gregos que são cismáticos e franceses que não são nada, temos sempre receio de ferir a crença ou de excitar a incredulidade de nossos passageiros pela vista de práticas religiosas que não serão as deles. Mas quando os passageiros nos autorizam a agir cristãmente, somos muito agradecidos a eles por isso. De sorte que, se o permite...

 — Como não, capitão! Eu lhes peço, e se quiserem podem começar em seguida; parece-me que já está próximo das dezoito horas...

 O capitão tirou seu relógio, e vendo que não havia tempo a perder, anunciou em voz alta:

 — A Ave-Maria!

 A estas palavras, cada um saiu das escotilhas e lançou-se no convés. Mais de um, sem dúvida, já havia começado mentalmente a Saudação Angélica, mas a interrompeu para vir tomar parte na prece geral.

 De um extremo ao outro da Itália, essa oração, que cai em uma hora solene, encerra o dia e abre a noite. Esse momento do crepúsculo, em toda parte cheio de poesia, no mar se acresce de uma santidade infinita. Essa misteriosa imensidade do ar e das ondas, esse sentimento profundo da fraqueza humana comparada ao poder onipotente de Deus, essa escuridão que avança, e durante a qual o perigo sempre presente vai ainda crescer, tudo isso predispõe o coração a uma melancolia religiosa, a uma confiança santa que soergue a alma nas asas da fé. Essa tarde sobretudo, o perigo do qual acabáramos de escapar, e que nos era lembrado de tempos em tempos por uma onda encapelada ou rugidos longínquos, tudo inspirava à tripulação e a nós um recolhimento profundo.

 No momento em que nos juntávamos no convés, a noite começava a tornar-se mais espessa no oriente. As montanhas da Calábria e a ponta do cabo de Pelora perdiam sua bela cor azul para se confundir em uma tintura acinzentada que parecia descer do céu, como se estivesse caindo uma fina chuva de cinzas. A ocidente, um pouco à direita do arquipélago de Lipari, cujas ilhas de formas extravagantes destacavam-se com vigor sobre um horizonte de fogo, o sol alargado e listrado de longas faixas violetas começava a embeber a orla de seu disco no Mar Tirreno, que, cintilante e movimentado, parecia rolar ondas de ouro fundido.

 Nesse momento o piloto levantou-se atrás da cabine e tomou em seus braços o filho do capitão, que pôs de joelhos sobre o estrado. Abandonando o leme, como se a embarcação estivesse suficientemente guiada pela oração, sustentou o menino para que o balanço não lhe fizesse perder o equilíbrio. Esse grupo singular destacou-se logo sobre um fundo dourado, semelhante a uma pintura de Giovanni Fiesole ou de Benozzo Gozzoli. Com uma voz tão fraca que apenas chegava até nós, e que entretanto subia até Deus, começou a recitar a prece virginal, que os marinheiros escutavam de joelhos, e nós inclinados.

 Eis uma dessas lembranças para as quais o pincel é inábil e a pena insuficiente; eis uma dessas cenas que nenhuma narração pode descrever, nenhum quadro pode reproduzir, porque a sua grandiosidade está inteira no sentimento íntimo dos atores que a realizam. Para um leitor de viagens ou um amador das coisas do mar, será apenas uma criança que ora, homens que respondem e um navio que flutua. Mas para qualquer um que tiver assistido a uma cena assim, será um dos mais magníficos espetáculos que ele tenha visto, uma das mais magníficas lembranças que ele tenha guardado. Será a fraqueza que reza, a imensidade que olha, e Deus que escuta.

Fonte:
Alexandre Dumas, Le Speronare. Paris: Calmann-Lévy, 1888

Varal do Brasil (no Salão do Livro em Genebra)

O Varal do Brasil surgiu em 2009 com o desejo de promover e divulgar a língua portuguesa e, sobretudo, dar oportunidade às pessoas de se expressar. Escrever sempre é bom, mas escrever com um grupo de pessoas que tem o mesmo prazer, com certeza é bem melhor.

Lado a lado, escritores iniciantes e consagrados. Autores brasileiros, portugueses ou de qualquer nacionalidade que escrevam na língua Portuguesa. Todos participam da revista. Ao todo, bem mais de quinhentos autores já passaram pelas páginas do Varal.

Em 2011, o Varal do Brasil tornou-se também Selo Editorial e, numa parceria com a Design Editora de Santa Catarina, edita livros em Português no Brasil. O Varal do Brasil é marca registrada e tem registro comercial como livraria e promotor cultural.

Formamos elos fortes na Suíça com diversas associações e pessoas que têm vínculo e compromisso com a divulgação cultural.

No ano passado o Varal do Brasil participou pela primeira vez do Salão Internacional do Livro de Genebra dando visibilidade internacional a autores que vieram de várias regiões do Brasil, diversos países da Europa e Estados Unidos.

Levamos ao Salão Internacional do Livro no ano de 2012 nada menos do que quatorze autores para autógrafos, uma apresentação de declamação e música (um cordel homenageando Jorge Amado) e mais de cem títulos para exposição. O Varal do Brasil foi a única representação de autores brasileiros no Salão.

Participar de um Salão do Livro do porte de Genebra é um feito de grande importância e de lá, de nossa participação em 2012, surgiram na Suíça e em outros países, muitos novos projetos, livros, encontros e oportunidades dos quais o Varal do Brasil se orgulha em ter dado o passo inicial.

Voltamos este ano com ainda mais vontade: um stand com o dobro do tamanho daquele de 2012, mais de vinte autores em sessões de autógrafos e mais de cem títulos oferecidos ao leitor durante nossa participação no evento de 2013.

Os autores, além da sessões de autógrafos, estarão no stand para conhecer os seus leitores e bater um papo descontraído com os mesmos.

Será lançado em nosso stand D426, o livro Varal Antológico 3, terceira coletânea do Varal do Brasil que traz em suas páginas quarenta autores.

Receberemos também a Literarte, Associação que a cada dia tem se mostrado digna de nossa admiração e confiança. Estarão presentes Dyandreia Portugal e vários autores dos dois livros da Literarte que aqui serão lançados.

Temos a certeza que o sucesso virá através de você, leitor que nos dará a alegria de sua presença!

E o prazer para nós é proporcionar para você momentos de alegria e cultura!

Bem-vindos ao Varal do Brasil!

Jacqueline Aisenman
Editora-Chefe
Varal do Brasil
http://www.varaldobrasil.com
http://varaldobrasil.blogspot.com

Helena Parente Cunha (O Pai)

Aquele cansaço de existir, aquela gosma impregnando os ossos, os músculos, os tecidos, o sangue estagnado sob a pele desbotada, nem mesmo um gesto a se estender no ar, ela parada na porta, nem indo nem vindo, só ali, não se mexendo, há quanto tempo a última alegria? o último sorriso? cansaço, esforço inútil de respirar, gosma grudando o ar e a parca luz do quarto fechado, cada um na sua bolha fofa e fria, frágil fio por partir num sopro.

O pai parado na porta entre o quarto e agora. Por que você chegou tarde? Onde já se viu moça de família na rua a estas horas? Você sabe que horas são? Há anos são dez horas da noite, nunca mais amanheceu. Quem é aquele vagabundo que estava com você na saída da escola? A manhã inteira esfregando a saia de flanela azul pregueada no banco, o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos, no universo nada se perde, tudo se transforma. Tudo se transforma em quê? Quem é aquele sacana que estava com você na saída da escola? A escola, sempre a escola. Professora ou aluna, sempre a escola. Diante da turma, que vontade de mandar todos os alunos para aquele lugar, que horror, de que adianta ensinar o teorema de Pitágoras? as meninas esfregando nos bancos as calças blue jeans, o que é cateto? já pensou, o quadrado do cacete?

O pai parado na porta, entre o triângulo e a buzina do carro. Quem é aquele desgraçado que lhe deu carona? São dez horas da noite no universo inteiro e tudo se transforma em triângulos exatos. Quem é aquele... Pelo amor de Deus, pai, eu tenho quarenta anos, até quando você vai pedir satisfações de minha vida? Desculpe, pai, papaizinho, eu rasguei meu vestido brincando no quintal, desculpe.

O pai parado na porta, entre a boneca e a tarde. Quem é aquele menino que estava correndo na rua atrás de você? Você não sabe que é feio menina brincar com menino? E o muro? Você não sabe que menina não sobe em muro? Desculpe, papai, eu só queria ver o que havia do outro lado. Do outro lado do muro havia o havia. As meninas se encontravam com os meninos atrás do muro. Mas papai, eu quero tanto ir ao aniversário de Teresinha, não tem nada demais, eu já estudei, já fiz todos os deveres, estou cansada. Cansaço gosmento na cabeça, nos olhos inchados.

O pai parado na porta, entre o barulho dos ônibus e o tapa. Quem é aquele rapaz que estava conversando com você na esquina? Não tem nada de quinze anos nem nada, sua mãe nunca conversou comigo sozinha antes do casamento. Mas papai, a gente não mora na roça.

O pai parado na porta, entre o caixão que saía e o retrato da mãe vestida de noiva, o retrato pendurado na parede. De agora em diante, minha filha, você tem que tomar conta de seu pai, fazer companhia a ele, seja uma boa filha. Namorar? Quem é aquele miserável que quer desgraçar a sua vida? Você não tem pena de seu pai? Você sabe que horas são? Onde já se viu escola terminar a esta hora? Que reunião que nada. A escola, sempre a escola. Os ângulos de um triângulo somam 180°. Por quê? Nunca, mas nunca mesmo poderá mudar? Esta soma será eternamente mesma num universo onde nada se perde e tudo se transforma? Nada se perde, nem os dias nem os anos nem as horas, nada se perde, mas tudo se transforma num monturo de lembranças rançosas de tudo que não pôde ser no baile de formatura. Professora, sim, senhora, parabéns. A parentada toda despejou-se do interior, aqueles parentes tabaréus, as mulheres com o rosto todo caiado de pó de arroz, os homens com as cabeças engorduradas de brilhantina, todos atarantados junto dela, que vergonha, as tias e as primas enfiadas nos vestidos de tafetá chamalotado, cheios de franzidos, sem saberem se seguravam as bolsas ou os chapéus de palha enfeitados de flores as mais indefectíveis, ah que vergonha, os ternos desajeitados de casimira listrada dos tios e dos primos amarrados às gravatas de cores desgovernadas, sim senhora, parabéns, professora, a primeira aluna de toda a faculdade, vejam só, ela estudou na faculdade, pena que a mãe não esteja mais na terra pra ver, coitada.

Em todo o correr dos anos, tudo se transforma. Pitágoras, não, nem se perde nem se transforma, irredutível na sua exatidão geométrica, os alunos se transformam, os alunos esfregando os bancos, as calças cáqui de brim, os blue jeans, você é menino ou menina?

O pai paradíssimo na porta, entre um ano e outro ano. Quem é aquele veado que estava com você no ponto de ônibus? Ah! é uma amiga, este mundo está perdido e você ainda reclama porque eu me preocupo com você. Hoje nós vamos ao cinema juntos. Hoje nós vamos ao aniversário de sua tia. Por que você quer sair sozinha? Filha ingrata, eu faço tudo para lhe distrair e você fica aí toda emburrada. Domingo que vem nós vamos passar o dia em Itaparica na casa de seu padrinho (mas papai) você não quer ir por quê? Você tem que espairecer.

O pai parado na porta, entre um anúncio e um comprimido. Ainda bem que você chegou cedo, vamos ver a novela das oito na televisão. É boa esta novela, eu gosto muito de novela, você precisa ver novela, distrai muito. Sim papai, de agora em diante, eu vou ver todas as novelas, a das seis a das sete a das oito a das dez, tem das onze? Não, é bom que não tenha porque a gente dorme cedo, você tem que acordar cedo para ir à aula. Por que você quer fazer curso de pós-graduação? Pra quê? Bobagem, minha filha, você já estudou muito, trabalha muito, já não é criança, de noite precisa descansar. Sim, o cansaço, tanto cansaço, torpor guardando os membros e os pés no chão, não quero sair não, papai, vamos ver televisão.

O pai parado na porta, entre a bengala e o catarro. Quem é aquele velho sem-vergonha que saiu com você da escola? Será possível que você não sabe o que os outros vão pensar? Mas papai.

O pai parado na porta, atravessado entre a hora de sair e a hora de nunca mais. Papai?

Cansaço. Cansaço de existir. Ela parada na porta, entre ficar e não sair, o corpo colado numa gosma nem fria nem quente, um amarrado nos ossos, um grude se enfiando pelos poros, alguém tocou a campainha? Ninguém entra ninguém sai, o teorema de Pitágoras demonstrando para sempre até as mais densas profundezas do cansaço essencial. O quadrado do sim é igual à soma dos quadrados de todos os nãos incendiados na medula. Cansaço de viver e não viver. Nada se perde nada se ganha. O universo inteiro transformado num atoleiro bolorento de esquecimentos do que nunca aconteceu em nenhum dia, em nenhuma hora, atrás do muro da escola, onde houve um menino e uma menina.

Fonte:
CUNHA, Helena Parente. Os provisórios. RJ: Antares, 1990

Ditados Populares do Brasil (Letra R, S)

Recordar é Viver
R

Rapadura é doce, mas não é mole não
Recordando, sofro mais.
Rezei 1/3 para conseguir ½ para te levar a ¼.
Rico acompanha procissão, o pobre persegue o santo.
Rosa reza, Mercedes Benze.
Recordar é viver
Rei morto, rei posto
Soutien e caminhão velho, só usa quem tem peito.
Rei tem que ter coroa
Religião, Cor e Politica, não se discute
Relógio é que trabalha de graça.
Remar contra a maré.
Respeito é bom e eu gosto.
Ri melhor quem ri por último
Ri melhor quem ri por último.
Rico bebe pra comemorar, o pobre pra não chorar.
Rico ri à toa.
Rio só corre para o mar.
Rir é o melhor remédio
Roupa suja se lava em casa
Ruim com ele, pior sem ele.

S
Saber de cor e salteado.
Sabida de mais pro meu gosto.
Saco de gatos.
Saco vazio não para em pé
Sacrifique o presente em proveito do futuro.
Saudade é a memória do coração.
Saudade é a presença dos ausentes.
Saudade é companheira de quem não tem companhia.
Se alguém perguntar por mim, diga que sou feliz.
Se amar é pecado, não tenho perdão.
Se amar é crime me processe.
Se amor fosse água, meu peito era uma cascata.
Se casamento fosse bom, a polícia não obrigava.
Se casamento fosse estrada, eu andava no acostamento.
Se casamento fosse negócio, mulher vivia em prateleira.
Se casar for doença, morro de saúde.
Se chifre fosse flor, minha cabeça seria um jardim.
Se é coisa que eu não mais te veja, seja por morte tua.
Se é valente, bata pela frente.
Se eu fosse rico, comprava teu orgulho.
Se for mulher ainda cabe.
Se grito resolvesse, porco não morria.
Seja menos devota e mais religiosa.
Se me enganas uma vez, não tens vergonha; se me enganas duas vezes, o sem vergonha sou eu.
Se mulher fosse chuva, eu preferia uma goteira na minha cama.
Sem mulher toda casa fica vazia.
Se não houvesse distância, não havia saudade.
Se o mundo não tivesse suspiro, o povo morria afogado.
Se o orgulho dominar o mundo, serei teu escravo.
Se quer ser feliz por um minuto, vinga-te. Se quer ser feliz por toda a vida, perdoa.
Se pressa chama a morte, sei que não morro nunca.
Se você dormir dirigindo, os seus parentes serão acordados.
Se você não é o que parece, pareça o que é.
Se um dia a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda dela.
Segredo em mulher é leite em boca de gato.
Segredo em mulher é pão em boca de pobre.
Segredo entre três, só matando dois.
Sei que tudo é nada.
Ser velho não é o caso; o que importa é ser gostoso.
Serviço fiado afrouxa o carro e aperta o dono.
Só não bebe é sino porque tem a boca pra baixo.
Só não bebe é sino, mas vive dizendo: não me dão… não me dão…
Só pena é que voa.
Sogra é como vento encanado: faz mal a todo mundo.
Sorrindo na reta, chorando na rampa.
Só vale no mundo quem tem muito fundo.
Sou bandoleiro, mas não temo a seta do teu coração.
Sou bem casado, não tenho sogra nem cunhada.
Sou casado com Ana, mas vivo com Mercedes.
Sou cativo do agrado.
Sou de casamento, mas agora é cedo.
Sou fan das louras, mas prefiro as morenas.
Sou louco pelas meninas… dos teus olhos.
Sou velho, mas não renuncio.
Sair da brasa e cair na labareda.
Saltar fogueira.
Salve-se quem puder.
Santo de casa não faz milagre
Santo de casa não faz milagres.
Sapo de fora não chia
Se a jabuticaba é pouca, a gente engole o caroço.
Se barba fosse respeito, bode não tinha chifre.
Se bem o disse, melhor o fez.
Se cochilar, o cachimbo cai.
Se conselho fosse bom mesmo, ninguem dava de graça
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Se este mundo fosse bom, o dono morava nele.
Se Maomé não vai até a montanha, a montanha vai até Maomé
Se os "ses" fossem feijões ninguem morria de fome
Se valesse gritaria, porco nunca morria.
Segredo de três, só matando dois.
Segurar a barra.
Segure o touro nos chifres e o homem na palavra.
Sem eira nem beira, nem folha de parreira.
Semear ao vento.
Sempre existe um chinelo velho para um pé torto
Sempre se espera pela pior figura
Sentir-se como peixe fora dágua
Ser mãe é padecer no paraiso
Ser marinheiro de primeira viagem.
Ser senhor de seu nariz.
Só se atira pedra em árvores que dão frutos.
Sol e chuva casamento de viuva
Subir pelas paredes.