Libreria Fogola Pisa (facebook) |
O mistério está na origem, nas primeiras formas e manifestações; é preciso levar a sonda até lá, naqueles tempos tão distantes que ainda não eram tempos: como apareceu? É uma cogitação que há muito me persegue e me interessa. As ninfas do “Trata-se de Ficção” reacenderam-na dentro de mim.
O primeiro espanto do homem foi o do cosmos; o meu, entretanto, sempre foi mais o da Terra com os seus seres, o mistério da vida, a Criação, o desdobrar das tentativas da matéria em se acasalar e se fazer vida, por bilhões de ano, atrações e acoplamentos entre os corpúsculos primitivos, foi seguindo e seguindo o procersso persistentemente, milagrosamente, obedecendo às leis do amor primordial, falhando aqui e recomeçando acolá, de filogênese em filogênese, até produzir grandes seres, animais comunitários, necessariamente providos do instinto da comunicação e, por fim, chegar ao ômega, o ser especial que levou este instinto às últimas conseqüências, e falou, conseguiu, aprendeu, e desde então precisa falar, tem necessidade, para dizer aos outros sobre o fazer, sobre o alertar, sobre o amar, e para dizer até pelo dizer, para ligar, pelo instinto da ligação comunal. O mesmo instinto fez os desenhos e as maravilhosas pinturas das cavernas, fez a dança e os cantos tribais, fez as primeiras flautas doces, as primeiras expressões artísticas da comunhão humana. Mas ainda não a literatura, que veio depois, muito depois.
Uns vinte mil anos depois, ou mais, veio a escrita e, com ela, o escriba, o que fazia os registros, para o controle e para a história, não era um escritor, era um computador, embora humano. No museu do Cairo há uma escultura maravilhosa, representando um escriba sentado, com sua tabuinha e seu estilete na mão, que interrompe a escrita e olha para você com olhos vivos e inteligentes. Profundamente humano.
Os escribas registraram fatos históricos, epopéias, preceitos religiosos, fizeram a primeira literatura, mas não eram ainda escritores. Ainda hoje há escribas, cada vez mais, redigem notícias, relatórios, ensinamentos, há os que procuram até fazê-lo com arte. Os primeiros escribas eram mais toscos, as palavras de que dispunham ainda eram poucas, não havia amplitude na escolha, não podia haver a busca cuidadosa, a arte da palavra. Talvez os aedos, pouco depois, os da poesia oral, que buscavam e criavam palavras para a rima, para facultar a memória, talvez os aedos, que não escreviam, tivessem sido os primeiros escritores.
Quem foram os primeiros escritores? Os poetas gregos? Os criadores do Teatro? Ou, antes deles, os salmistas judeus? Não sei. Mas foi por aí que se iniciou a arte da literatura, a escrita literária. Os salmos continham mais filosofia, os poemas e o teatro mais arte, eram mais o belo por si mesmo. Em ambos, entretanto, já estava presente o ofício da literatura, o empenho da procura da melhor palavra e da composição mais bela.
Curiosa, neste processo de investigação, é a grande polêmica da Grécia Clássica entre os filósofos, que buscavam a verdade, e os sofistas, que ensinavam a melhor palavra para o orador nas assembléias. Platão e Aristóteles, que legaram monumentos escritos de sabedoria, também escolhiam palavras; era uma escolha, entretanto, dirigida à razão, ao reforço do argumento, enquanto Górgias e Protágoras, sofistas, que não escreviam, escolhiam as palavras com o intento da emoção, do sentimento. Acho que fizeram mais literatura.
Então a literatura tem mais esta dimensão: ir ao encontro da emoção humana, do sentimento, não apenas do saber e da razão. Este foi o mister de todos os poetas em todos os tempos. E os poetas foram os primeiros e os únicos artistas da literatura por séculos e séculos, dos gregos aos romanos, dos trovadores aos cancioneiros da idade média, até o renascimento; o teatro era também poesia, a palavra trabalhada com talento e arte para inflamar a emoção e os sentimentos entre os membros da comunidade humana. Até a chegada do romance, num tempo já bem recente, quando o escritor descobriu um mundo novo: a invenção da vida, pura, na palavra e no papel, sem atores.
Teve esta descoberta algo a ver com a invenção de Gutemberg? Claro que sim: o livro levou a arte do escritor a um oceano de emoções e de leitores, abriu a porta da profissionalização, da dedicação exclusiva capaz de apurar a arte. A tecnologia é decisiva na civilização. O teatro, antes, já inventava a vida e ativava paixões, mas o alcance era limitado. O romance, de verdade, abriu um novo e vasto mundo, sem limites, que podia ser criado em cima de uma escrivaninha.
Depois de uns duzentos anos de belas e artísticas narrativas de vidas inventadas, os romancistas começaram a sentir um certo esgotamento tedioso dos relatos ficcionistas, explorados já os estilos mais diversos, contando de trás para na frente, de frente para trás, alternando os sentidos do tempo, saltando de gerações a gerações, falando de regionalismos, criando linguagens próprias, ingressando na expressão do fluxo de pensamentos dos personagens, cuja ligação com a realidade não fica explícita para o leitor, construindo assim romances de difícil compreensão, sentindo, enfim, a saturação comum a todas as formas de arte que acabaram adotando o lema da afirmação da heresia pela heresia para fugir ao tédio.
Mas não quero resvalar para considerações de teoria literária, que não domino nem precariamente. Quero insistir na busca dos fatores que, no meu sentimento, levam o escritor a escrever. No fundo, bem no fundo, o ancestral instinto da comunicação, a necessidade de se comunicar com o semelhante, pela voz, primordialmente, a velha comunicação oral. Há pessoas, entretanto, que têm um psiquismo especial e experimentam certa dificuldade de falar com os outros; essas pessoas preferem dizer as coisas escrevendo, dizendo de dentro para dentro. Ao que parece, a maioria dos escritores é de pessoas recolhidas, que criam suas invenções no silêncio e na reclusão. Por isso se aceita que o ofício de escrever requer este retraimento. Mas dá também para perguntar: o escritor precisa do recolhimento para escrever ou o escritor escreve porque é uma pessoa recolhida?
De qualquer forma, sim, o primeiro impulso vem do instinto de comunicação próprio do ser comunitário, a necessidade do outro, da presença do outro, do reconhecimento do outro. Mas comunicar o quê? O artista da literatura não comunica notícias nem relatórios, mas fundamentalmente comunica o próprio ser, o que ele foi, o que é, o que poderia ter sido, o que gostaria de ter sido, coloca tudo isso em vidas inventadas, na forma trabalhada das letras. Quem não tem facilidade no falar corrente, e não sente o empuxo interior da escrita, a capacidade e a precisão de escrever, acaba por procurar um psicanalista. E por isso mesmo o sentido da literatura é o sentido do ser, tão procurado na filosofia, o próprio sentido da vida que o homem busca incessantemente, do nascer ao morrer, às vezes pensa que o encontra e logo adiante torna a perdê-lo.
O segundo movimento vem da chamada veia artística. Cada um finda por perceber dentro de si um certo talento, uma certa habilidade natural para o fazer determinadas coisas, desempenhar com facilidade maior algum tipo de atividade, e o escritor, como o pintor e o músico, descobre a sua arte no correr do tempo. Acaba sabendo que sabe escrever. E cada um gosta mais de fazer aquilo que faz melhor, é uma preferência natural. O escritor gosta de escrever, ainda que o trabalho da escrita lhe seja penoso na busca do melhor jeito de dizer, da melhor construção do texto e das frases, na escolha da melhor palavra. É penoso e deleitoso, é assim. E é necessário para ele.
Há um outro mistério particular aqui. Até hoje, o escritor foi um autodidata; não teve mestres como o pintor e o músico; leu muito e encontrou inspirações em alguns autores, nunca teve aulas com eles. Por quê? Hoje começam a surgir escolas de criação literária, acho um fato muito auspicioso e me pergunto por que só hoje?
Mas penso que há ainda um terceiro vetor na constituição deste escritor de que estamos falando. O articulista, o político, o sociólogo, o filósofo, o pensador, o professor também, possuem uma veia de talento para escrever, e capricham na composição dos seus textos com a arte que desenvolvem. Há uma diferença, entretanto, fundamental, no ofício do escritor que estamos querendo aqui caracterizar: é que todos aqueles trabalham com o entendimento, com a clareza e a lógica dos seus textos, enquanto o nosso escritor busca essencialmente o sentimento, a emoção do ser humano leitor, e dele mesmo, escritor. Já me referi a isso anteriormente; insisto aqui porque vejo neste enfoque uma das características essenciais da literatura.
Enfim, sei que a figura do escritor tem muitas outras dimensões; por mais que se queira precisar e ressaltar nele qualidades essenciais, há muitas outras, saltam à vista muitas outras nesta realidade que é humana e ao mesmo tempo transcendental. Sabendo disso, paro por aqui, fecho este texto que não é literário como o do Ramiro, é investigativo, especulativo, sei lá, isto é, paro hoje, e continuo especulando sobre o tema pela vida a fora, pelo resto que me resta.
Fonte:
http://www.saturninobraga.com.br/artigo_2_12.html
O primeiro espanto do homem foi o do cosmos; o meu, entretanto, sempre foi mais o da Terra com os seus seres, o mistério da vida, a Criação, o desdobrar das tentativas da matéria em se acasalar e se fazer vida, por bilhões de ano, atrações e acoplamentos entre os corpúsculos primitivos, foi seguindo e seguindo o procersso persistentemente, milagrosamente, obedecendo às leis do amor primordial, falhando aqui e recomeçando acolá, de filogênese em filogênese, até produzir grandes seres, animais comunitários, necessariamente providos do instinto da comunicação e, por fim, chegar ao ômega, o ser especial que levou este instinto às últimas conseqüências, e falou, conseguiu, aprendeu, e desde então precisa falar, tem necessidade, para dizer aos outros sobre o fazer, sobre o alertar, sobre o amar, e para dizer até pelo dizer, para ligar, pelo instinto da ligação comunal. O mesmo instinto fez os desenhos e as maravilhosas pinturas das cavernas, fez a dança e os cantos tribais, fez as primeiras flautas doces, as primeiras expressões artísticas da comunhão humana. Mas ainda não a literatura, que veio depois, muito depois.
Uns vinte mil anos depois, ou mais, veio a escrita e, com ela, o escriba, o que fazia os registros, para o controle e para a história, não era um escritor, era um computador, embora humano. No museu do Cairo há uma escultura maravilhosa, representando um escriba sentado, com sua tabuinha e seu estilete na mão, que interrompe a escrita e olha para você com olhos vivos e inteligentes. Profundamente humano.
Os escribas registraram fatos históricos, epopéias, preceitos religiosos, fizeram a primeira literatura, mas não eram ainda escritores. Ainda hoje há escribas, cada vez mais, redigem notícias, relatórios, ensinamentos, há os que procuram até fazê-lo com arte. Os primeiros escribas eram mais toscos, as palavras de que dispunham ainda eram poucas, não havia amplitude na escolha, não podia haver a busca cuidadosa, a arte da palavra. Talvez os aedos, pouco depois, os da poesia oral, que buscavam e criavam palavras para a rima, para facultar a memória, talvez os aedos, que não escreviam, tivessem sido os primeiros escritores.
Quem foram os primeiros escritores? Os poetas gregos? Os criadores do Teatro? Ou, antes deles, os salmistas judeus? Não sei. Mas foi por aí que se iniciou a arte da literatura, a escrita literária. Os salmos continham mais filosofia, os poemas e o teatro mais arte, eram mais o belo por si mesmo. Em ambos, entretanto, já estava presente o ofício da literatura, o empenho da procura da melhor palavra e da composição mais bela.
Curiosa, neste processo de investigação, é a grande polêmica da Grécia Clássica entre os filósofos, que buscavam a verdade, e os sofistas, que ensinavam a melhor palavra para o orador nas assembléias. Platão e Aristóteles, que legaram monumentos escritos de sabedoria, também escolhiam palavras; era uma escolha, entretanto, dirigida à razão, ao reforço do argumento, enquanto Górgias e Protágoras, sofistas, que não escreviam, escolhiam as palavras com o intento da emoção, do sentimento. Acho que fizeram mais literatura.
Então a literatura tem mais esta dimensão: ir ao encontro da emoção humana, do sentimento, não apenas do saber e da razão. Este foi o mister de todos os poetas em todos os tempos. E os poetas foram os primeiros e os únicos artistas da literatura por séculos e séculos, dos gregos aos romanos, dos trovadores aos cancioneiros da idade média, até o renascimento; o teatro era também poesia, a palavra trabalhada com talento e arte para inflamar a emoção e os sentimentos entre os membros da comunidade humana. Até a chegada do romance, num tempo já bem recente, quando o escritor descobriu um mundo novo: a invenção da vida, pura, na palavra e no papel, sem atores.
Teve esta descoberta algo a ver com a invenção de Gutemberg? Claro que sim: o livro levou a arte do escritor a um oceano de emoções e de leitores, abriu a porta da profissionalização, da dedicação exclusiva capaz de apurar a arte. A tecnologia é decisiva na civilização. O teatro, antes, já inventava a vida e ativava paixões, mas o alcance era limitado. O romance, de verdade, abriu um novo e vasto mundo, sem limites, que podia ser criado em cima de uma escrivaninha.
Depois de uns duzentos anos de belas e artísticas narrativas de vidas inventadas, os romancistas começaram a sentir um certo esgotamento tedioso dos relatos ficcionistas, explorados já os estilos mais diversos, contando de trás para na frente, de frente para trás, alternando os sentidos do tempo, saltando de gerações a gerações, falando de regionalismos, criando linguagens próprias, ingressando na expressão do fluxo de pensamentos dos personagens, cuja ligação com a realidade não fica explícita para o leitor, construindo assim romances de difícil compreensão, sentindo, enfim, a saturação comum a todas as formas de arte que acabaram adotando o lema da afirmação da heresia pela heresia para fugir ao tédio.
Mas não quero resvalar para considerações de teoria literária, que não domino nem precariamente. Quero insistir na busca dos fatores que, no meu sentimento, levam o escritor a escrever. No fundo, bem no fundo, o ancestral instinto da comunicação, a necessidade de se comunicar com o semelhante, pela voz, primordialmente, a velha comunicação oral. Há pessoas, entretanto, que têm um psiquismo especial e experimentam certa dificuldade de falar com os outros; essas pessoas preferem dizer as coisas escrevendo, dizendo de dentro para dentro. Ao que parece, a maioria dos escritores é de pessoas recolhidas, que criam suas invenções no silêncio e na reclusão. Por isso se aceita que o ofício de escrever requer este retraimento. Mas dá também para perguntar: o escritor precisa do recolhimento para escrever ou o escritor escreve porque é uma pessoa recolhida?
De qualquer forma, sim, o primeiro impulso vem do instinto de comunicação próprio do ser comunitário, a necessidade do outro, da presença do outro, do reconhecimento do outro. Mas comunicar o quê? O artista da literatura não comunica notícias nem relatórios, mas fundamentalmente comunica o próprio ser, o que ele foi, o que é, o que poderia ter sido, o que gostaria de ter sido, coloca tudo isso em vidas inventadas, na forma trabalhada das letras. Quem não tem facilidade no falar corrente, e não sente o empuxo interior da escrita, a capacidade e a precisão de escrever, acaba por procurar um psicanalista. E por isso mesmo o sentido da literatura é o sentido do ser, tão procurado na filosofia, o próprio sentido da vida que o homem busca incessantemente, do nascer ao morrer, às vezes pensa que o encontra e logo adiante torna a perdê-lo.
O segundo movimento vem da chamada veia artística. Cada um finda por perceber dentro de si um certo talento, uma certa habilidade natural para o fazer determinadas coisas, desempenhar com facilidade maior algum tipo de atividade, e o escritor, como o pintor e o músico, descobre a sua arte no correr do tempo. Acaba sabendo que sabe escrever. E cada um gosta mais de fazer aquilo que faz melhor, é uma preferência natural. O escritor gosta de escrever, ainda que o trabalho da escrita lhe seja penoso na busca do melhor jeito de dizer, da melhor construção do texto e das frases, na escolha da melhor palavra. É penoso e deleitoso, é assim. E é necessário para ele.
Há um outro mistério particular aqui. Até hoje, o escritor foi um autodidata; não teve mestres como o pintor e o músico; leu muito e encontrou inspirações em alguns autores, nunca teve aulas com eles. Por quê? Hoje começam a surgir escolas de criação literária, acho um fato muito auspicioso e me pergunto por que só hoje?
Mas penso que há ainda um terceiro vetor na constituição deste escritor de que estamos falando. O articulista, o político, o sociólogo, o filósofo, o pensador, o professor também, possuem uma veia de talento para escrever, e capricham na composição dos seus textos com a arte que desenvolvem. Há uma diferença, entretanto, fundamental, no ofício do escritor que estamos querendo aqui caracterizar: é que todos aqueles trabalham com o entendimento, com a clareza e a lógica dos seus textos, enquanto o nosso escritor busca essencialmente o sentimento, a emoção do ser humano leitor, e dele mesmo, escritor. Já me referi a isso anteriormente; insisto aqui porque vejo neste enfoque uma das características essenciais da literatura.
Enfim, sei que a figura do escritor tem muitas outras dimensões; por mais que se queira precisar e ressaltar nele qualidades essenciais, há muitas outras, saltam à vista muitas outras nesta realidade que é humana e ao mesmo tempo transcendental. Sabendo disso, paro por aqui, fecho este texto que não é literário como o do Ramiro, é investigativo, especulativo, sei lá, isto é, paro hoje, e continuo especulando sobre o tema pela vida a fora, pelo resto que me resta.
Fonte:
http://www.saturninobraga.com.br/artigo_2_12.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário