"A Viagem", Virginia Woolf |
Virginia Woolf escreveu o seu primeiro romance “A Viagem” (“The Voyage Out”) ao longo de seis penosos anos, numa altura em que a sua vida se alterou radicalmente. O pai, Sir Leslie Stephen, morreu em 1904 e os irmãos, Virgínia ( com 22 anos), Vanessa, Adrian e Thoby mudaram-se para o nº 46 de Gordon Square. Aí, às quintas-feiras, Thoby começou a juntar os seus amigos do Trinity College, os “sensacionais” Lytton Strachey, Clive Bell, Saxon Sydney -Turner e Leonard Woolf para discutirem “tudo”, de Filosofia a Religião, de Arte a Culinária. Nasceu assim o famoso "Bloomsbury Group” no seio do qual se defendia a liberdade em todas as suas manifestações e se intelectualizavam os factos da existência. Este breve tempo fulgurante, intenso e formativo acabou com a morte de Thoby, em 1906, e com a proposta de casamento de Clive Bell a Vanessa, no ano seguinte, acontecimentos em rápida sequência que contribuíram para a instabilidade mental de Virgínia, agravada pela eminente publicação de “A Viagem”, algo que fez despoletar um dos seus acessos de loucura mais dramáticos e pronunciados, só comparável ao que a atingiu quando escreveu “Os Anos” (deixado incompleto) e que a levou ao suicídio, em 1941.
“A Viagem” foi um projecto ambicioso desde o início. Virgínia escrevia artigos e ensaios para o Times Literary Supplement e, com este romance, queria encontrar um lugar firme entre os seus pares. Rodeada pelos “ sábios rapazes de Cambridge” e em vivo contraste com Vanessa – artista, feminina, sensual, extrovertida, apaixonada – Virgínia sofria e debatia-se com os seus terrores. O marido, Leonard que regressara de Ceilão (Sri Lanka) em 1911 – ele e Virginia casaram em 1912 – falou de “uma espécie de tortura intensa” que atingiu o seu apogeu nos meses de Janeiro e Fevereiro de 1913, enquanto ela acabava o manuscrito. Em Março de 1913 “ A Viagem” estava terminado, Virgínia deu-o a ler a Leonard e este levou-o a Gerald Duckworth (meio irmão de Virgínia) que possuía uma editora. Em Abril a publicação estava assegurada mas, enquanto esperava, Woolf passava noites insones a repensar a sua arte, questionando-se acerca da dificuldade em usar a linguagem para veicular a intensidade de tudo o que a interessava e preocupava. A 25 de Janeiro de 1915 Virginia fez 33 anos e parece ter-se sentido feliz, mimada por Leonard e pelos amigos. Dois dias depois escreveu no seu célebre diário que estava à espera que toda a gente lhe dissesse que o livro era “brilhante” enquanto, nas suas costas, o iriam condenar como “ ele, aliás, merecia”. A 25 de Março, véspera da tão esperada publicação, o seu estado mental deteriorou-se de tal maneira que teve de ser internada. Mais tarde Leonard levou-a para casa, onde ficou ao cuidado de quatro enfermeiras que a ajudaram a superar lentamente os seus violentos ataques de demência e uma tentativa de suicídio. O livro foi recebido benevolamente pelos críticos e E.M. Forster, por quem Virgínia tinha grande apreço, escreveu no Daily News: “Aqui está, finalmente, um livro que atinge a unidade de “O Monte dos Vendavais” embora o faça por outro caminho”.
Quando Woolf imaginou Rachel Vinrace, a heroína de 24 anos de “A Viagem” na sua travessia iniciática do Atlântico, ao encontro de um despertar emocional e sexual, estava a pensar na sua própria passagem da abandonada casa da infância em Hyde Park Gate – a maior parte da mobília foi vendida ao Harrods – para o ambiente de boemia criativa de Bloomsbury, onde era constantemente desafiada a escrever e a viver de acordo com as suas próprias opções.
No início de “A Viagem” o professor Ridley Ambrose e Helen, sua mulher, atravessam uma Londres labiríntica, desolada e hostil para embarcarem no “Euphrosyne”, um pequeno navio propriedade de Willoughby Vinrace, homem de negócios com ambições políticas, cunhado de Helen e pai de Rachel. O barco deixa a foz do Tamisa em direcção a Lisboa onde embarca o casal Dalloway – Richard, um membro do Parlamento e Clarissa, uma beldade, surgirão mais tarde como principais protagonistas num outro romance de Woolf, de 1925 – que vai fazer companhia aos outros passageiros, alegrando com a sua sofisticação, a enfadonha vida a bordo. Antes de desembarcarem – supõe-se que algures no norte de África - o casal Dalloway deixa marcas: Clarissa passa a representar um ideal de mulher para Rachel que vê nela uma promessa de “glamour” futuro e Richard, num momento de fraqueza libidinosa, beija-a secretamente, “despertando-lhe os sentidos”. O “Euphrosyne” – frágil lugar de passagem – retoma a sua rota, cruzando o Atlântico, e os passageiros são finalmente despejados em Santa Marina, um local totalmente inventado, mistura do Caribe com a costa do Brasil. Onde se instalam numa casa colonial junto a um hotel onde já se encontram hospedados outros súbditos de Sua Majestade.
São conhecidas as personagens que correspondem a figuras próximas de Virgínia como por exemplo a sua irmã Vanessa (transmutada em Helen) e Lytton Strachey na pele de St John (“Muito inteligente e muito feio”). Quando estava a escrever “A Viagem” Virgínia vivia rodeada de amigos do irmão e, como faz notar a sua biógrafa Hermione Lee, “ … essas relações foram-se erotizando. A princípio esses jovens pareciam a Virgínia inatingíveis e, comodamente, assexuados. Mas à medida que todos se tornavam amigos íntimos passaram a ser considerados como possibilidades de escolha (sexual)”. Num curto espaço de tempo Virgínia recebeu seis (possivelmente sete) propostas de casamento mas o que lhe interessava verdadeiramente eram temas como o sufrágio feminino, a religião, a liberdade e a estética que se tornaram a base de uma plataforma vanguardista na qual ela passou a desempenhar um papel dominante e que integrou na sua obra.
Começado numa altura em que ninguém antecipava o horror da Iª Grande Guerra, “A Viagem” foi pensado como uma réplica “modernista” e “feminista” a “Coração das Trevas” de Joseph Conrad, publicado em 1899. Virgínia admirava o escritor polaco, embora tivesse notado que ele não queria mulheres nos seus livros e as substituísse por belos navios “mais femininos do que as mulheres que são, ou montanhas de mármores ou apenas sonhos de um rapaz encantador que contempla o retrato de uma atriz”. Em paralelo com o Congo de Conrad e a aventura de Marlowe – com a sua dura crítica ao imperialismo – Woolf dá conta de outro “continente” expropriado, desconhecido e devastado, o “ser feminino”. Ao colocar Rachel, tal como ela própria, destituída das armas necessárias para levar a cabo a demanda da “verdade” das leis, tanto naturais como sociais, retira-lhe as hipóteses de vencer essa, “…Grande Guerra travada em prol de coisas como pedras, jarros, destroços no fundo do mar, árvores, estrelas, música, contra aqueles que (só) acreditam no que vêm”.
Confrontada com o sistema de oposição de gêneros e com a diferença de classes – “ é maravilhoso sermos ingleses” exclama uma personagem ao ver os navios de guerra britânicos ancorados ao largo – Rachel/ Virgínia percebe que, por muito sábios que sejam esses rapazes tão bem educados nas suas Universidades medievais e que a rodeiam atraídos pela sua juventude, a “moral” revela-se como uma simples máscara do código de opressão que valida a castidade feminina. Tal como a “verdade monstruosa” de Conrad, uma prerrogativa masculina, esse sistema eternizava a ideia de que as mentiras são atribuídas às mulheres, embora os homens mintam, se assim o entenderem, principalmente às mulheres. No final, a abrupta morte de Rachael – vítima desses “tristes trópicos” implacáveis - é a representação da angústia da autora, embora o desenlace seja considerado como inevitável para uma jovem mulher que se recusa a ser sacrificada no altar do casamento, com as suas rígidas leis patriarcais.
“A Viagem” é um romance ao qual têm sido apontadas várias falhas, principalmente quando saiu a edição americana: o livro é demasiado longo, as personagens entediantes, os heróis banais, as conversas arrastam-se, não há tigres na América do Sul, Woolf é preconceituosa em relação aos “nativos” ( e aos judeus, embora tenha casado com um) e não acontece nada de relevante. Como em Jane Austen há bailes e passeios (de burro e de barco), a paisagem é devidamente apreciada, a convivência faz-se baseada em equívocos e as inclinações amorosas levam à frustração. No entanto, se Austen era impiedosamente irênica, Virgínia Woolf é demolidora em relação aos seus concidadãos, caricaturados sem atenuantes na sua pomposidade e na sua incapacidade de perceberem o “novo mundo”, para onde arrastam as suas poeirentas, ignorantes e arrogantes opiniões e definições de vida. Até mesmo Rachel, supostamente a figura principal do romance, é uma personagem indefinida, opaca. O hotel onde todos se juntam é um “não-lugar” , um espaço fora da geografia e do tempo, uma plataforma onde as pessoas se limitam a esperar. Para trás, deixaram o antigo universo vitoriano com as suas múltiplas regras ridículas e atravessaram o oceano até aquele éden luxuriante onde as possibilidades são infinitas. Mas a verdade é que as senhoras garridas, os acadêmicos empedernidos e os jovens educados na perfeição em Oxford e Cambridge não têm qualquer hipótese de vingar, não estão preparados. Têm vagos projetos – Hewet quer escrever um livro sobre o “silêncio” – e não pressentem que estão à beira do caos e no final de uma era. Woolf mostra o seu brilhantismo, o seu lirismo exacerbado, a capacidade encantatória de transformar o que é banal em épico, defendendo a “corrente da consciência” como matéria-prima de ficção, no rasto de Walter Pater, o ensaísta e crítico literário do século XIX que foi em parte responsável pelo Movimento Estético (um dos seus mais fervorosos discípulos foi Oscar Wilde).
Woolf viveu o fim do Império, as grandes transformações da época moderna e duas Guerras e fez do acto de pensar uma prática intensa, o suporte de uma luta para a paz e para a igualdade numa economia global, a favor da defesa dos direitos humanos. Numa entrada do seu Diário escreveu sobre a loucura e a escrita nos seguintes termos: “ O meu cérebro é, para mim, uma máquina incontrolável – sempre a zumbir, a murmurar, a ir-se a baixo, a bramir, a mergulhar e a ser, depois, sepultado em lama. E porquê? Para que serve esta paixão?”
–––––––––––
Nota: Em 1981, a acadêmica americana Louise DeSalvo ( autora de “Virginia Woolf: The Impact of Sexual Abuse on her Life and Work”) publicou uma versão de “A Viagem” intitulada “Melymbrosia” que ela sustenta ter sido a primeira . DeSalvo trabalhou durante sete anos para reconstruir o romance como ela supõe que foi terminado em 1912, antes da grande revisão levada a cabo por Woolf. As alterações teriam surgido porque a autora receava que a primeira versão, mais dura em termos de crítica política e com comentários mais alargados a questões como a homossexualidade e o colonialismo, pudesse desencadear críticas violentas. Os seus amigos aconselharam-na a “amenizar” o conteúdo do texto com receio que este viesse a prejudicar-lhe a carreira.
Nota: Texto publicado no Jornal Público - Suplemento Ípsilon - Agosto, 2011
Fonte:
http://www.storm-magazine.com/
“A Viagem” foi um projecto ambicioso desde o início. Virgínia escrevia artigos e ensaios para o Times Literary Supplement e, com este romance, queria encontrar um lugar firme entre os seus pares. Rodeada pelos “ sábios rapazes de Cambridge” e em vivo contraste com Vanessa – artista, feminina, sensual, extrovertida, apaixonada – Virgínia sofria e debatia-se com os seus terrores. O marido, Leonard que regressara de Ceilão (Sri Lanka) em 1911 – ele e Virginia casaram em 1912 – falou de “uma espécie de tortura intensa” que atingiu o seu apogeu nos meses de Janeiro e Fevereiro de 1913, enquanto ela acabava o manuscrito. Em Março de 1913 “ A Viagem” estava terminado, Virgínia deu-o a ler a Leonard e este levou-o a Gerald Duckworth (meio irmão de Virgínia) que possuía uma editora. Em Abril a publicação estava assegurada mas, enquanto esperava, Woolf passava noites insones a repensar a sua arte, questionando-se acerca da dificuldade em usar a linguagem para veicular a intensidade de tudo o que a interessava e preocupava. A 25 de Janeiro de 1915 Virginia fez 33 anos e parece ter-se sentido feliz, mimada por Leonard e pelos amigos. Dois dias depois escreveu no seu célebre diário que estava à espera que toda a gente lhe dissesse que o livro era “brilhante” enquanto, nas suas costas, o iriam condenar como “ ele, aliás, merecia”. A 25 de Março, véspera da tão esperada publicação, o seu estado mental deteriorou-se de tal maneira que teve de ser internada. Mais tarde Leonard levou-a para casa, onde ficou ao cuidado de quatro enfermeiras que a ajudaram a superar lentamente os seus violentos ataques de demência e uma tentativa de suicídio. O livro foi recebido benevolamente pelos críticos e E.M. Forster, por quem Virgínia tinha grande apreço, escreveu no Daily News: “Aqui está, finalmente, um livro que atinge a unidade de “O Monte dos Vendavais” embora o faça por outro caminho”.
Quando Woolf imaginou Rachel Vinrace, a heroína de 24 anos de “A Viagem” na sua travessia iniciática do Atlântico, ao encontro de um despertar emocional e sexual, estava a pensar na sua própria passagem da abandonada casa da infância em Hyde Park Gate – a maior parte da mobília foi vendida ao Harrods – para o ambiente de boemia criativa de Bloomsbury, onde era constantemente desafiada a escrever e a viver de acordo com as suas próprias opções.
No início de “A Viagem” o professor Ridley Ambrose e Helen, sua mulher, atravessam uma Londres labiríntica, desolada e hostil para embarcarem no “Euphrosyne”, um pequeno navio propriedade de Willoughby Vinrace, homem de negócios com ambições políticas, cunhado de Helen e pai de Rachel. O barco deixa a foz do Tamisa em direcção a Lisboa onde embarca o casal Dalloway – Richard, um membro do Parlamento e Clarissa, uma beldade, surgirão mais tarde como principais protagonistas num outro romance de Woolf, de 1925 – que vai fazer companhia aos outros passageiros, alegrando com a sua sofisticação, a enfadonha vida a bordo. Antes de desembarcarem – supõe-se que algures no norte de África - o casal Dalloway deixa marcas: Clarissa passa a representar um ideal de mulher para Rachel que vê nela uma promessa de “glamour” futuro e Richard, num momento de fraqueza libidinosa, beija-a secretamente, “despertando-lhe os sentidos”. O “Euphrosyne” – frágil lugar de passagem – retoma a sua rota, cruzando o Atlântico, e os passageiros são finalmente despejados em Santa Marina, um local totalmente inventado, mistura do Caribe com a costa do Brasil. Onde se instalam numa casa colonial junto a um hotel onde já se encontram hospedados outros súbditos de Sua Majestade.
São conhecidas as personagens que correspondem a figuras próximas de Virgínia como por exemplo a sua irmã Vanessa (transmutada em Helen) e Lytton Strachey na pele de St John (“Muito inteligente e muito feio”). Quando estava a escrever “A Viagem” Virgínia vivia rodeada de amigos do irmão e, como faz notar a sua biógrafa Hermione Lee, “ … essas relações foram-se erotizando. A princípio esses jovens pareciam a Virgínia inatingíveis e, comodamente, assexuados. Mas à medida que todos se tornavam amigos íntimos passaram a ser considerados como possibilidades de escolha (sexual)”. Num curto espaço de tempo Virgínia recebeu seis (possivelmente sete) propostas de casamento mas o que lhe interessava verdadeiramente eram temas como o sufrágio feminino, a religião, a liberdade e a estética que se tornaram a base de uma plataforma vanguardista na qual ela passou a desempenhar um papel dominante e que integrou na sua obra.
Começado numa altura em que ninguém antecipava o horror da Iª Grande Guerra, “A Viagem” foi pensado como uma réplica “modernista” e “feminista” a “Coração das Trevas” de Joseph Conrad, publicado em 1899. Virgínia admirava o escritor polaco, embora tivesse notado que ele não queria mulheres nos seus livros e as substituísse por belos navios “mais femininos do que as mulheres que são, ou montanhas de mármores ou apenas sonhos de um rapaz encantador que contempla o retrato de uma atriz”. Em paralelo com o Congo de Conrad e a aventura de Marlowe – com a sua dura crítica ao imperialismo – Woolf dá conta de outro “continente” expropriado, desconhecido e devastado, o “ser feminino”. Ao colocar Rachel, tal como ela própria, destituída das armas necessárias para levar a cabo a demanda da “verdade” das leis, tanto naturais como sociais, retira-lhe as hipóteses de vencer essa, “…Grande Guerra travada em prol de coisas como pedras, jarros, destroços no fundo do mar, árvores, estrelas, música, contra aqueles que (só) acreditam no que vêm”.
Confrontada com o sistema de oposição de gêneros e com a diferença de classes – “ é maravilhoso sermos ingleses” exclama uma personagem ao ver os navios de guerra britânicos ancorados ao largo – Rachel/ Virgínia percebe que, por muito sábios que sejam esses rapazes tão bem educados nas suas Universidades medievais e que a rodeiam atraídos pela sua juventude, a “moral” revela-se como uma simples máscara do código de opressão que valida a castidade feminina. Tal como a “verdade monstruosa” de Conrad, uma prerrogativa masculina, esse sistema eternizava a ideia de que as mentiras são atribuídas às mulheres, embora os homens mintam, se assim o entenderem, principalmente às mulheres. No final, a abrupta morte de Rachael – vítima desses “tristes trópicos” implacáveis - é a representação da angústia da autora, embora o desenlace seja considerado como inevitável para uma jovem mulher que se recusa a ser sacrificada no altar do casamento, com as suas rígidas leis patriarcais.
“A Viagem” é um romance ao qual têm sido apontadas várias falhas, principalmente quando saiu a edição americana: o livro é demasiado longo, as personagens entediantes, os heróis banais, as conversas arrastam-se, não há tigres na América do Sul, Woolf é preconceituosa em relação aos “nativos” ( e aos judeus, embora tenha casado com um) e não acontece nada de relevante. Como em Jane Austen há bailes e passeios (de burro e de barco), a paisagem é devidamente apreciada, a convivência faz-se baseada em equívocos e as inclinações amorosas levam à frustração. No entanto, se Austen era impiedosamente irênica, Virgínia Woolf é demolidora em relação aos seus concidadãos, caricaturados sem atenuantes na sua pomposidade e na sua incapacidade de perceberem o “novo mundo”, para onde arrastam as suas poeirentas, ignorantes e arrogantes opiniões e definições de vida. Até mesmo Rachel, supostamente a figura principal do romance, é uma personagem indefinida, opaca. O hotel onde todos se juntam é um “não-lugar” , um espaço fora da geografia e do tempo, uma plataforma onde as pessoas se limitam a esperar. Para trás, deixaram o antigo universo vitoriano com as suas múltiplas regras ridículas e atravessaram o oceano até aquele éden luxuriante onde as possibilidades são infinitas. Mas a verdade é que as senhoras garridas, os acadêmicos empedernidos e os jovens educados na perfeição em Oxford e Cambridge não têm qualquer hipótese de vingar, não estão preparados. Têm vagos projetos – Hewet quer escrever um livro sobre o “silêncio” – e não pressentem que estão à beira do caos e no final de uma era. Woolf mostra o seu brilhantismo, o seu lirismo exacerbado, a capacidade encantatória de transformar o que é banal em épico, defendendo a “corrente da consciência” como matéria-prima de ficção, no rasto de Walter Pater, o ensaísta e crítico literário do século XIX que foi em parte responsável pelo Movimento Estético (um dos seus mais fervorosos discípulos foi Oscar Wilde).
Woolf viveu o fim do Império, as grandes transformações da época moderna e duas Guerras e fez do acto de pensar uma prática intensa, o suporte de uma luta para a paz e para a igualdade numa economia global, a favor da defesa dos direitos humanos. Numa entrada do seu Diário escreveu sobre a loucura e a escrita nos seguintes termos: “ O meu cérebro é, para mim, uma máquina incontrolável – sempre a zumbir, a murmurar, a ir-se a baixo, a bramir, a mergulhar e a ser, depois, sepultado em lama. E porquê? Para que serve esta paixão?”
–––––––––––
Nota: Em 1981, a acadêmica americana Louise DeSalvo ( autora de “Virginia Woolf: The Impact of Sexual Abuse on her Life and Work”) publicou uma versão de “A Viagem” intitulada “Melymbrosia” que ela sustenta ter sido a primeira . DeSalvo trabalhou durante sete anos para reconstruir o romance como ela supõe que foi terminado em 1912, antes da grande revisão levada a cabo por Woolf. As alterações teriam surgido porque a autora receava que a primeira versão, mais dura em termos de crítica política e com comentários mais alargados a questões como a homossexualidade e o colonialismo, pudesse desencadear críticas violentas. Os seus amigos aconselharam-na a “amenizar” o conteúdo do texto com receio que este viesse a prejudicar-lhe a carreira.
Nota: Texto publicado no Jornal Público - Suplemento Ípsilon - Agosto, 2011
Fonte:
http://www.storm-magazine.com/
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