segunda-feira, 1 de abril de 2013

Fred Goés (Literatura e Vida na Cidade)

Libreria Fogola Pisa (facebook)
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 Quando ensinamos aos nossos alunos as estratégias de análise de um texto, um dos principais aspectos salientados por nós é o espaço onde se dão os acontecimentos na narrativa. Esse espaço, passamos a nomear como ambiente, sempre que ele ganha carga significativa, ou seja, é importante no desenvolvimento do enredo e de fundamental expressividade para sua compreensão. A partir dos finais do século XVIII e, de forma superlativa, no século XIX, com o fortalecimento da burguesia e o aumento populacional urbano, a cidade passa a ser a grande moldura do enredo literário e, mais que isso, torna-se o mais fiel retrato de um certo tipo de vida que se estabelece em diferentes momentos da história das cidades e consequentemente de suas populações.

 Lembro-me com emocionada saudade das aulas do Prof. José Carlos Lisboa em um dos últimos cursos por ele ministrado sobre Federico Garcia Lorca. O Prof. Lisboa, do alto dos seus oitenta e muitos anos, um dos maiores especialistas em estudos hispânicos, descrevia com tal precisão a Andaluzia lorquiana que, quando lá estive, anos depois, me sentia guiado por ele ao visitar Granada. As sensações, o clima, as percepções expressas pelo dramaturgo e poeta espanhol e transmitidas pelo mineiro Lisboa se davam com tanta intensidade que éramos física e espiritualmente transportados para o universo gitano de Lorca. Para nossa grande surpresa, ficamos perplexos quando, no final do curso, com a simplicidade que caracteriza os seres superiores, os sábios, os verdadeiros mestres, ele confessou jamais ter visitado a Andaluzia. Ele a conhecia, na palma da mão, pelos olhos de Garcia Lorca.

 Uma das formas literárias que melhor revela a cidade e os diferentes grupos sociais que nela vivem é, sem dúvida, a crônica.

 A crônica é, ao mesmo tempo, a mais polêmica e, de acordo com parte da crítica, a mais brasileira das expressões literárias. A maioria esmagadora dos nossos escritores (poetas e prosadores) se exercitou, nas folhas cotidianas, como cronista. Meio jornalismo, meio história, meio ficção, meio poesia, ela é um profícuo espaço de experimentação criativa. Talvez por seu caráter camaleônico, se adaptando às diferentes mídias (jornal, rádio, televisão, novas tecnologias), não tenha passado desapercebida de nossos compositores populares. É mesmo possível, por meio das canções com este viés, como ocorre no texto narrativo, se reconstruir diferentes aspectos da vida brasileira (costumes sociais, momentos econômicos, acontecimentos históricos, fatos relevantes, etc).


 Sabemos que a musa maior desta forma literária é a cidade. Urbana pela própria natureza, a crônica nasce e se alimenta dos acontecimentos citadinos. No Brasil, por circunstâncias históricas de um lado (antiga capital da metrópole colonial, do império e da república), e do outro, por sua singular beleza, fonte inesgotável de inspiração poética, o Rio de Janeiro ocupa lugar central da nossa cronicidade. E não podemos nos furtar da observação de que este substantivo (cronicidade) incorpora e justapõe em sua formação os dois elementos próprios da crônica, o tempo (cronos , em grego, ??????) e a cidade.

 Quando sublinhamos o fato de ser o Rio de Janeiro a musa maior do gênero, não queremos dizer que outras cidades não tenham também sido merecedoras do olhar do cronista. São Luis, por exemplo, além da crônica literária de jornal, objeto da pesquisa de alguns mestres,[...] está tão presente nos versos dos sambas enredo, quanto a Bahia, a cidade da Bahia, espécie de Pasárgada do nosso cancioneiro. Mas também São Paulo tem, na figura de Adoniran Barbosa, na década de 1950, seu grande cronista musical. Ele transcreve para os versos da canção a fala estropiada, ítalo-caipira (o tal português macarrônico) do proletariado paulistano descendente de italianos. O compositor amplia, populariza o que Alcântara Machado propusera, ao retratar este segmento da sociedade em Brás, Bexiga e Barra Funda (1927). Adoniran, na música popular, tal qual Alcântara Machado e Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (Juó Bananére,1892-1933), na literatura, reinventa situações tão poéticas, quanto patéticas vividas pelos “paulistalianos” do povo. O lirismo tragicômico ímpar se apresenta pleno em Saudosa Maloca, Tiro ao Álvaro, Trem das Onze, entre tantas outras canções.

 Mas nada e ninguém mereceram maior atenção que a capital fluminense quando o tema é crônica. Tomemos como ponto de partida da sistematização e da fixação deste gesto a presença de nossos escritores nos jornais de grande circulação. Desde meados do século XIX, militaram na crônica, dando-lhe feição e sotaque brasileiros, José de Alencar e, na sequência, Machado de Assis, Olavo Bilac, Lima Barreto, João do Rio e, posteriormente, os escritores brasileiros em peso (narradores, dramaturgos e poetas). Contemporaneamente, merece destaque a singular figura de Rubem Braga, o mestre dos mestres de gênero, que se notabilizou nas letras como o cronista por excelência.

 Nossos cronistas, os da imprensa ou os da canção, põem em foco o dia-a-dia, os fatos circunstanciais, as bugigangas poéticas da cidade, dando voz a ela. E antes que nos esqueçamos de mencionar, não só no cancioneiro tradicional se observa a narrativa da cidade pela lente da crônica. O que a rapaziada do rap, funk e hip-hop faz nada mais é que crônica, sendo que agora, nos é apresentada a vivência, o cotidiano das comunidades carentes, marginalizadas, periféricas que, até pouco tempo, não tinham a oportunidade de serem ouvidas. “Eu só quero ser feliz / Andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, era, há poucos anos, o recado pacífico cantado por Claudinho e Bochecha. Da mesma forma, sem muitas vezes a pretensão de “cronicar”, participantes das redes sociais exercem esta atividade literária.

 Em verso ou em prosa, a cidade segue atraindo os olhares ora atentos, ora perplexos, ora aterrorizados, mas sempre apaixonados de quem faz a crônica.

 Quem melhor que Noel Rosa retratou o Rio de Janeiro da década de trinta do século passado? Se Olavo Bilac, Lima Barreto e João do Rio são os que registram a cidade nas duas primeiras décadas do século XX, é Noel quem vai comentar a verticalização, o surgimento dos arranha-céus, o nascedouro da industrialização. É quem ouve o apito da fábrica de tecidos que ecoa entre as chaminés do progresso em Três Apitos.

 Foi por meio dessa percepção que a cidade é senhora plena da crônica e que nela, como em nenhum outro lugar, a língua apresenta a potência das suas variantes e dos seus falares que construímos, em equipe, o livro Vozes da Cidade: língua portuguesa em textos e conversas.

 [...]

 Notícias e reportagens também revelam o cotidiano urbano, suas múltiplas faces e, claro, suas variedades de vozes. Mas de forma mais direta, objetiva, com foco nos fatos e nos dados, sem a dimensão ficcional da crônica. E assim, em mais um exemplo das muitas possibilidades de uma língua, crônicas e textos jornalísticos fazem ecoar as vozes da cidade e do mundo do trabalho. A escolha dessa diversidade de textos baseou-se na certeza de que o estudo da língua portuguesa deve incluir o conhecimento de todas as variantes e também de que todas as pessoas, independentemente da classe social ou situação cultural, são igualmente competentes para falar a sua língua materna.

 A partir desses pressupostos, é possível afirmar que o aprendizado do português se dá na compreensão da experiência viva e dinâmica dessa língua e que o desempenho linguístico melhora na medida em que o usuário da língua ganha intimidade com os recursos que ela oferece e confiança na capacidade de usá-los de forma adequada.

 Nossa pátria é nossa língua, disse o poeta, e a morada de sua diversidade está especialmente no espaço urbano, na cidade. [...]

 (Fragmento da palestra Literatura e Vida na Cidade, proferida pelo professor e escritor Fred Góes, na UEMA, em 02/04/2012)

Fonte:
http://www.guesaerrante.com.br/2012/9/27/literatura-e-vida-na-cidade-4359.htm

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