sábado, 1 de setembro de 2012

Rui Barbosa (Dois Poemas)

À MARIA AUGUSTA

Dantes o ondeado cabelo
Deixavas-me sempre vê-lo
Em longos anéis sombrios
Nos ombros teus a chover.
Pendia daqueles fios
Minha alma de amores presa;
E a vista, em volúpia acesa,
Não se cansava de ver.

Como é que agora oprimido,
Tão contrafeito e escondido,
A nativa formosura
Não lhe deixas expandir?
Não vês que em teu rosto a alvura,
Que os próprios lírios suplanta,
Ri mais viva, mais encanta,
Se o deixas solto cair.

Por que as lindas madeixas,
Desfeitas baixar não deixas,
De aroma inefável cheias
Ao colo cândido e nu?
Louquinha, que das cadeias,
Com que os olhos cativas,
Assim sem pena te privas!
Criança ingênua que és tu!...

Olha as rosas nas roseiras
Como se miram faceiras
Naquelas tranças viçosas
De que o estio as adornou:
Se, pois, inveja nas rosas,
Feiticeira linda, as passas,
Por que desprezas as graças
Com que Deus te avantajou?

Primores do céu não tolhas:
As madeixas mais não colhas!
Sedução tão graciosa
Não na queiras tu perder!
Em moldura caprichosa
Deixa a coma deslumbrante,
Livre, airosa, flutuante
Tuas faces envolver!
(*) Poema dedicado à noiva de Rui Barbosa, no ano do casamento

A XXX

Feiticeira Moreninha,
Casta flor da minha vida,
Quando cismas à tardinha
Nos teus sonhos embebida
Não sentes a aragem trêmula
Que em teus cabelos se enlaça,
E o murmúrio que perpassa
Como uma queixa perdida
Do dia que além se esvai?
Dize — sabes o segredo
Que essa linguagem te diz,
Quando a brisa oscula a medo
As tuas tranças gentis?...

Pois ouve... não fujas, não...
Escuta o gemer da brisa;
É minha alma que desliza
Nas asas da viração
 
Fonte:
"Obras completas de Rui Barbosa", prefácio de Américo Jacobina, vol. 1, MEC, 1971, RJ

Nilton Manoel (Trovas Esparsas)

1
Dos meus sonhos eu bendigo
as passadas frustrações;
Hoje é mais puro o meu trigo
sendo humilde nas ações.
2
A noite calada e escura
que silencia meu pranto,
revela toda a amargura
na falta de teu encanto.
3
Quem tem coração de paz
vive de culpa liberto,
porque faz do bem que faz
um céu de Sol mais aberto.
4
Não existe culpa imensa
para quem crê no perdão,
tendo o Deus de sua crença
tranqüilo em seu coração
5
Deriva, momento incerto,
em que a vida segue a esmo,
mas quem vai de peito
vence a tudo,até a si mesmo .
6
Talento é ter arte e graça
brincando com a vida séria;
pobre curte até a desgraça
com o salário da miséria.
7
Sem ter calçado e camisa
pra não cair na prisão,
salário de pobre é a brisa
mal dá pra comprar o calção.
8
Com meu freeser sem nadinha,
vou amargando o rosário;
Quem come pão com farinha
sabe o que vale o salário.
9
Com esse salário de fome...
sem ver a cor do dinheiro,
pobre, nem papel consome...
Fazer o que no banheiro.
10
O mundo - pleno em magia,
nossa bola de cristal,
mesmo amargo, traz poesia,
aos momentos mais sem sal.
11
Sem ter bolas de cristal,
quem sabe onde pisa faz
de sua estrada um rosal
se é do Bem e pela paz.
12
Leia a sorte,meu senhor!
-Que sorte tenho cigana?
mãos de pobre professor
vive sem linhas e e grana.
13
Viver pobre é contramão
mundo triste de agüentar;
A sorte que traz o pão
enfrenta os jogos de azar.
14
Por entre as pedras da fonte,
cantante em sai alegria,
o bardo vê no horizonte
sua fonte de poesia.
15
Na rua, toda nuazinha,
escondendo a cara santa,
no carnaval da Lurdinha,
até morto se levanta
16
Do jeito que a coisa vai
em tudo se põe durex...
pobre, sem panela sai
pra comer de marmitex.
17
No espaço da folha branca
o universo do escritor,
torna a vida bem mais franca
se traça versos de amor.
18
Em férias, certo doutor,
ganha auréola de moleque,
quando perde sua cor,
no exagero de um pileque.
19
Ribeirão Preto é café
-terra amiga e sempre nova-
quinze décadas de fé
que todos cantam em trova.
20
Homem maduro tem força;
firme, enfrenta ondas e ventos...
por mais que os anos lhe torça,
jamais perde os bons momentos.
21
Na caminhada, maduro,
ponho fogo na fornalha;
quero deixar no futuro,
as lições de quem trabalha.
22
Muda o mundo...tudo muda!
mas no campo do saber
há quem todo o tempo estuda,
mas é “verde” de morrer.
23
Nesse comércio bizarro
de promoção de viés.
Ainda venderão carro
dando de brinde mais dez.
24
Promoção de negro humor
em grandes filas, à vista;
qualquer “lixo” tem valor,
na glória do varejista...

Fonte:
O Autor

Isabel Furini (O Caçador e o Anjo)

Era uma vez um jovem Anjo que duvidava da existência dos homens.

Ele via uma forma de carne, ossos, sangue, pele, cabelos, uma forma material. Essa forma se movia, alimentava-se e descansava, mas ainda assim o Anjo duvidava de que fosse um homem.

O Anjo sabia que os homens são espírito e matéria, e que ele tinha uma missão: cuidar de um deles. Porém, questionava se a forma rude que via era mesmo de um ser humano.

O homem, chamado Estevão, só acreditava no mundo material e ria quando alguém lhe dizia que existiam anjos. Um dia ele foi caçar numa floresta e, correndo sobre o mato úmido atrás de um veado, bateu contra o tronco de uma árvore morta que estava caída no chão. A arma escorregou de suas mãos e um forte estrondo, como o rugido de um leão, agitou a floresta. Rapidamente os pássaros revoaram e animais pequenos voltaram a suas tocas. Ao cair no chão a espingarda disparara e o caçador, com tão pouca sorte, foi ferido.

Estevão,  lá deitado, vendo o sangue escorrendo de seu peito, olhou para o céu a fim de pedir socorro e, num raio de sol que penetrava pela copa das árvores, divisou a imagem de um anjo com suas aas brancas. O Anjo, por sua vez, ao ver o homem clamando por Deus, percebeu seu espírito. Ambos se olharam com curiosidade e, em seguida, passaram a se examinar mutuamente

– Você é um Anjo? Então os anjos existem! – disse o homem, admirado.

– Você é um homem? Então os homens existem! – exclamou o Anjo.

Ambos deram-se as mãos. Estevão, no entanto, havia perdido muito sangue e desmaiou. Foi acordar num quarto simples, da casa de um lenhador que por acaso passara por onde ele se encontrava na floresta e, ao vê-lo ferido, decidiu a ajudá-lo.

Desde esse dia o caçador se fez amigo do Anjo, e o Anjo se fez amigo do homem. O humano sentiu-se tão feliz com seu companheiro celeste que deixou de matar outras criaturas. Agora, sua maior diversão era observar os seres da natureza:  ondinas e gnomos, silfos e salamandras. Mostrou também seu mundo a seu amigo: casas e fábricas, lojas e clubes, cinemas, teatros e shoppings. Mas o ser celeste preferia as florestas, as montanhas e os mares, o ruído dos ventos, das ondas e dos pássaros.

O homem e o Anjo sempre permaneciam juntos, e os sensitivos que por acaso os viam, detinham-se perplexos a observá-los: ambos caminhavam juntos, tão serenamente que ninguém sabia se o homem era guiado pelo Anjo ou se o Anjo era guiado pelo homem.

Fonte:
http://www.recantodasletras.com.br/contos/1325081

Nilton Manoel (Poeta, Trovador, Escritor)

Ribeirão Preto tem história como terra de poesia. Tantos são os poetas de ontem e de hoje que, cita-los nos leva a pesquisas diversas e em fases sociais. O início cívico e cultural resgatamos no jornal A Palavra e nos jornais municipalistas de todos os tempos. Hoje não encontramos mais difusão poética nos jornais. Os espaços são para as reprises estapafúrdias de noticiários. Não sobram nem 20 linhas para a poesia. Outras coisas tem todos os espaços. Enfim “um lugar pra cada coisa... Cada coisa em seu lugar.”. É hora de acontecer um novo Movimento de Poesia. . Poetas... movimentem-se!
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Nilton Manoel
O APAGADOR

Um apagador
não apaga a dor
nem uma lousa
de sala de aula.

O apagador
não apaga uma lousa!
apaga só o que nela está escrito
com giz branco ou não
e tem o nome de lição
de classe,
ou de casa.
O apagador
é a borracha de professor.
Senão como seria
a tarefa do mestre na lousa?
O quê?

TROVAS

No amor às cousas pequenas,
no cultivo da humildade,
residem as mais serenas
conquistas da humanidade.
Wilson Clóvis Andrade

Quando a escultura dengosa
balança leve na areia,
sinto,a musa mais gostosa,
se o sangue ferve na veia.
Nilton Manoel

Deus, o maior escritor,
que temos a céu aberto,
em linhas tortas, com amor,
escreve sempre o que é certo.
Nilton Manoel

Quando o verde da esperança
vem doce no coração...
Nem sempre há temperança
para regar a emoção.
Arlete Luiza


Nilton Manoel
O GIRASSOL

Gira,
girassol
flor  amarela
que enfeita a lapela
de um cantor
Gira
Gira
Girassol
Substantivo composto
flor de pétalas gigantes
e sementes gordinhas
que servem para os pássaros,
aos gerbis ou aos  hamisters.
Como é lindo o girassol
num dia de sol,
no meu jardim dos sentidos.
Para o girassol,
faço haicai, cordel, trova...
poemas que leio e declamo.
Declamo? Clamo!
Conclamo:
-Viva o girassol!

MAIS TROVAS

Neste sesquicentenário
faço uma declaração,
guardada num relicário:
amo você Ribeirão!.
Wanda Duarte da Silva

Com a verde camisola
de detalhes provocantes,
a boazuda Carola
morre de sonhos picantes.
Eliane Ap.Pereira

Vou indo por este mundo,
para tudo tenho sinônimo;
mas meu desgosto é profundo
pois sou um poeta anônimo!
Nilton da Costa Teixeira

“ É a trova em seu natural
mordaz, alegre ou dolente,
lindo trecho musical
de quatro notas somente.”
Lilinha Fernandes

Carregador da estação,
letrado como ninguém,
leu na cartilha o rifão:
-“há malas que vêm pro trem”...
Josué de Vargas Ferreira

Quando o amor maduro,na alma
acende o fogo,a paixão,
faz a poesia que acalma
na forma do coração.
Sueli Tornici

Bendito seja o escritor
que concretiza o saber
e nos transforma em leitor
para o mundo conhecer!...
Oefe de Souza

Fonte:
http://www.movimentodasartes.com.br/trovador/pop_101/100719a.htm

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 655)


Uma Trova de Ademar 

Em humor não me destaco,
mas, por pura peraltice;
mesmo não sendo macaco,
vou fazendo macaquice.
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Pelos gemidos do cara,
o doutor não vê problema.
Se a dor que sente é tão clara,
é natural que ele gema!
–Edmar Japiassú Maia/RJ–

Uma Trova Potiguar 

Se eu ganhar, minha querida
na Mega, muito dinheiro
vou lhe tirar dessa vida...
(contratando um pistoleiro.)
–Heliodoro Morais/RN–

Uma Trova Premiada 


2012 > Acad.Mageense de Letras/RJ
Tema > LIVRO > 8º Lugar


Eu, fazendo errado ou certo,
nada escondo de vocês;
minha vida é um livro aberto...
Todo escrito em japonês!
–Ademar Macedo/RN–

...E Suas Trovas Ficaram 

Informo com desprazer,
que chato é aquele infeliz
que, nada tendo a dizer,
insistentemente diz...
–Eno Teodoro/PR–

U m a P o e s i a 


Filho de rico se chora,
a mãe vem lhe acalentar
e para ele não chorar
compra logo sem demora,
um tênis Nike da hora
numa loja chique e mega,
pobre vai em banca brega
comprar um do Paraguai;
rico pega o carro e sai,
pobre sai e o carro pega.
Júnior Adelino/PB

Soneto do Dia 

CAUSA MORTIS.
–Dorothy J. Moretti/SP–


Todo mundo que chegava
ao velório do Candinho,
penalizado, falava:
- Morreu como um passarinho.

Um bebum que ali se achava,
curioso, entre o burburinho,
a cada passo escutava:
- Morreu como um passarinho.

Chega alguém que, comovido,
pergunta-lhe ao pé do ouvido:
- De que a morte foi causada?

E o bebum, em tom de prece:
- Também não sei, mas parece
que foi de uma estilingada.

Fonte:
Textos selecionados por Ademar Macedo
Imagem obtida em Recados OnLine

Monteiro Lobato (O Jardineiro Timóteo)

conto integrante do livro "Negrinha", de Monteiro Lobato.

O casarão da fazenda era ao jeito das velhas moradias: – frente com varanda, uma ala e pátio interno. Neste ficava o jardim, também à moda antiga, cheio de plantas antigas cujas flores punham no ar um saudoso perfume d’antanho. Quarenta anos havia que lhe zelava dos canteiros o bom Timóteo, um preto branco por dentro.

Timóteo o plantou quando a fazenda se abria e a casa inda cheirava a reboco fresco e tintas d’óleo recentes, e desd’aí – lá se iam quarenta anos – ninguém mais teve licença de pôr a mão em “seu jardim”.

Verdadeiro poeta, o bom Timóteo.

Não desses que fazem versos, mas desses que sentem a poesia sutil das coisas. Compusera, sem o saber, um maravilhoso poema onde cada plantinha era um verso que só ele conhecia, verso vivo, risonho ao reflorir anual da primavera, desmedrado e sofredor quando junho sibilava no ar os látegos do frio.

O jardim tornara-se a memória viva da casa. Tudo nele correspondia a uma significação familiar de suave encanto, e assim foi desd’o começo, ao riscarem-se os canteiros na terra virgem ainda recendente à escavação. O canteiro central consagrava-o Timóteo ao “Sinhô-velho”, tronco da estirpe e generoso amigo que lhe dera carta d’alforria muito antes da Lei Áurea. Nasceu faceiro e bonito, cercado de tijolos novos vindos do forno para ali ainda quentes, e embutidos no chão como rude cíngulo de coral; hoje, semidesfeitos pela usura do tempo e tão tenros que a unha os penetra, esses tijolos esverdecem nos musgos da velhice.

Veludo de muro velho, é como chama Timóteo a essa muscínea invasora, filha da sombra e da umidade. E é bem isso, porque o musgo foge sempre aos muros secos, vidrentos, esfogueados de sol, para estender devagarinho o seu veludo prenunciador de tapera sobre os muros alquebrados, de emboço já corcomido e todo aberto em fendas.

Bem no centro erguia-se um nodoso pé de jasmim-do-cabo, de galhos negros e copa dominante, ao qual o zeloso guardião nunca permitiu que outra planta sobreexcedesse em altura. Simbolizava o homem que o havia comprado por dois contos de réis, dum importador de escravos de Angola.

– Tenha paciência, minha negra! – conversa ele com as roseiras de setembro, teimosas em espichar para o céu brotos audazes. Tenha paciência, que aqui ninguém olha de cima para o Sinhô-velho.

E sua tesoura afiada punha abaixo, sem dó, todos os rebentos temerários.

Cercando o jasmineiros havia uma coroa de periquitos, e outra menor cravinas.

Mais nada.

– Ele era um homem simples, pouco amigo de complicações. Que fique ali sozinho com o periquito e as irmãzinhas do cravo.

Dos outros canteiros dois eram em forma de coração.

– Este é o de Sinhazinha; e como ela um dia há de casar, fica a par dele o canteiro do Sinhô-moço.

O canteiro de Sinhazinha era de todos o mais alegre, dando bem a imagem de um coração de mulher rico de todos as flores do sentimento. Sempre risonho, tinha a propriedade de prender os olhos de quantos penetravam no jardim.

Tal qual a moça, que desde menina se habituara a monopolizar os carinhos da família e a dedicação dos escravos, chegando esta a ponto de, ao sobrevir a Lei Áurea, nenhum ter ânimo de afastar-se da fazenda. Emancipação? Loucura! Quem, uma vez cativo de Sinhazinha, podia jamais romper as algemas da doce escravidão?

Assim ela na família, assim o seu canteiro entre os demais. Livro aberto, símbolo vivo, crônica vegetal, dizia pela boca das flores toda a sua vidinha de moça. O pé de flor-de- noiva, primeira “planta séria” ali brotada, marcou o dia em que foi pedida em casamento. Até então só vicejavam neles flores alegres de criança: – esporinhas, bocas-de-leão, “borboletas”, ou flores amáveis da adolescência – amores-perfeitos, damas-entre-verdes, beijos-de-frade, escovinhas, miosótes.

Quando lhe nasceu, entre dores, o primeiro filho, plantou Timóteo os primeiros tufos de violeta.

– Começa a sofrer...

E no dia em que lhe morreu esse malogrado botãozinho de carne rósea, o jardineiro, em lágrimas, fincou na terra os primeiros goivos e as primeiras saudades. E fez ainda outras substituições: as alegres damas-entre-verdes cederam o lugar aos suspiros roxos, e a sempre-viva foi para o canto onde viçavam as ridentes bocas-de-leão.

Já o canteiro de Sinhô-moço revelava intenções simbólicas de energia. Cravos vermelhos em quantidade, roseiras fortes, ouriçadas de espinhos; palmas-de-santa-rita, de folhas laminadas; junquilhos nervosos.

E tudo mais assim.

Timóteo compunha os anais vivos da família, anotando nos canteiros, um por um, todos os fatos dalgumas significações. Depois, exagerando, fez do jardim um canhenho de notas, o verdadeiro diário da fazenda. Registrava tudo.

Incidentes corriqueiros, pequenas rusgas de cozinha, um lembrete azedo dos patrões, um namoro de mucama, um hóspede, uma geada mais forte, um cavalo de estimações que morria – tudo memorava ele, com hieróglifos vegetais, em seu jardim maravilhoso.

A hospedagem de certa família do Rio – pai, mãe e três sapequíssimas filhas – lá ficou assinalada por cinco pés de ora-pro-nóbis. E a venda do pampa calçudo, o melhor cavalo das redondezas, teve a mudança de dono marcada pela poda de um galho do jasmineiro.Além desta comemoração anedótica, o jardim consagrava uma planta a subalterno ou animal doméstico. Havia a roseira-chá da mucama de Sinhazinha; o sangue-de-adão do Tibúrcio; a rosa-maxixe da mulatinha Cesária, sirigaita enredeira, de cara fuxicada como essa flor. O Vinagre, o Meteoro, a Manjerona, a Tetéia, todos os cães que na fazenda nasceram e morreram, ali estavam lembrados pelo seu pezinho de flor, um resedá, um tufo de violetas, uma touça de perpétuas. O cão mais inteligente da casa, Otelo, morto hidrófobo, teve as honras duma sempre-viva rajada.

– Quem há de esquecer um bico daqueles, que até parecia gente?

Também os gatos tinham memória.

Lá estava a cinerária da gata branca morta nos dentes do Vinagre, e o pé de alecrim relembrativo do velho gato Romão.

Ninguém, a não ser Timóteo, colhia flores naquele jardim. Sinhazinha o tolerava desde o dia em que ele explicou:

– Não sabem, Sinhazinha! Vão lá e atrapalham tudo. Ninguém sa be apanhar flor...

Era verdade. Só Timóteo sabia escolhê-las com intenção e sempre de acordo com o destino. Se as queriam para florir a mesa em dia de anos da moça, Timóteo combinava os buquês como estrofes vivas. Colhia-as resmungando:

– Perpétua? Não. Você não vai pra mesa hoje. É festa alegra. Nem você, dona violetinha!... Rosa-maxixe? Ah! Ah! Tinha graça a Cesária em festa de branco!...

E sua tesoura ia cortando os caules com ciência de mestre. Às vezes parava, a filosofar:

– Ninguém se lembra hoje do anjinho... Pra que, então, goivo nos vasos? Quieto fique aqui o senhor goivo, que não é flor de vida, é flor de cemitério...

E sua linguagem de flores? Suas ironias, nunca percebidas de ninguém? Seus louvores, de ninguém suspeitados? Quantas vezes não depôs na mesa, sobre um prato, um aviso a um hóspede, um lembrete à patroa, uma censura ao senhor, composto sob forma dum ramalhete? Ignorantes da língua do jardim, riam-se eles da maluquice do Timóteo, incapazes de lhe alcançar o fino das intenções.

Timóteo era feliz. Raras criaturas realizam na vida mais formoso delírio de poeta. Sem família, criara uma família de flores; pobre, vivia ao pé de um tesouro.

Era feliz, sim. Trabalhava por amor, conversando com a terra e as plantas – embora a copa e a cozinha implicassem com aquilo.

– Que tanto resmunga o Timóteo! Fica ali mamparreando horas, a cochichar, a rir, como se estivesse no meio duma criançada!...

É que na sua imaginação as flores se transfiguravam em seres vivos. Tinham cara, olhos, ouvidos... O jasmim-do-cabo, pois não é que lhe dava a benção todas as manhãs? Mal Timóteo aparecia, murmurando “A benção, Sinhô”, e já o velho, encarnado na planta, respondia com voz alegre: “Deus te abençoe, Timóteo”.

Contar isso aos outros? Nunca! “Está louco”, haviam de dizer. Mas bem que as plantinhas falavam...

– E como não hão de falar, se tudo é criatura de Deus, hom’essa!...

Também dialogava com elas.

– Contentinha, hein? Boa chuva a de ontem, não?

– ...

– Sim, lá isso é verdade. As chuvas miúdas são mais criadeiras, mas você bem sabe que não é tempo. E o grilo? Voltou? Voltou, sim, o ladrão... E aqui roeu mais esta folhinha... Mas deixe estar, que eu curo ele!

E punha-se a procurar o grilo. Achava-o.

– Seu malfeitor!... Quero ver se continua agora a judiar das minhas flores.

Matava-o, enterrava-o. “Vira esterco, diabinho!”

Pelo tempo da seca era um regalo ver Timóteo a chuviscar amorosamente sobre as flores com o seu velho regador.– O sol seca a terra? Bobice!... Como se o Timóteo não estivesse aqui de chovedor na mão.

– Chega também, ué! Então quer sozinho um regador inteiro? Boa moda! Não vê que as esporinhas estão com a língua de fora?

– E esta boca-de-leão, ah! ah! está mesmo com uma boca de cachorro que correu veado! Tome lá, beba, beba!

– E você também, seu rosedá, tome lá seu banho pra depois, namorar aquela dona hortênsia, moça bonita do “zóio” azul...
E lá ia...

Plantas novas que abrolhavam o primeiro botão punham alvoroço de noivo no peito do poeta, que falava do acontecimento na copa provocando as risadinhas impertinentes da Cesária.

– Diabo do negro velho, cada vez caducando mais! Conversa com flor como se fosse gente.

Só a moça, com seu fino instinto de mulher, lhe compreendia as delicadezas do coração.

– Está aqui Sinhá, a primeira rainha margarida deste ano!

Ela fingia-se extasiada e punha a flor no corpete.

– Que beleza!

E Timóteo ria-se, feliz, feliz...

Certa vez falou-se na reforma do jardim.

– Precisamos mudar isto – lembrou-se o moço, de volta dum passeio a São Paulo. – Há tantas flores modernas, linda, enormes, e nós toda a vida com estas cinerárias, estas esporinhas, estas flores caipiras... Vi lá crisandálias magnífias, crisântemos deste tamanho e uma rosa nova, branca, tão grande que até parece flor artificial.

Quando soube da conversa, Timóteo sentiu gelo no coração. Foi agarrar-se com a moça. Ele também conhecia essas flores de fora, vira crisântemos na casa do Coronel Barroso, e as tais dálias mestiças no peito duma faceira, no leilão do Espírito Santo.

– Mas aquilo nem é flor, Sinhá! Coisas da estranja que o Canhoto inventa para perder as criaturas de Deus. Eles lá que plantem. Nós aqui devemos zelar das plantas de família. Aquela dália rajada, está vendo? É singela, não tem o crespo das dobradas; mas quem troca uma menina de sainha de chita cor-de-rosa por uma semostradeira da cidade, de muita seda no corpo, mas sem fé no coração? De manhã “fica assim” de abelhas e cuitelos em volta delas!...

E eles sabem, eles não ignoram quem merece. Se as das cidades fossem mais de estimação, por que é que esses bichinhos de Deus ficam aqui e não vão pra lá? Não, Sinhá! É preciso tirar essa idéia da cabeça de Sinhô-moço. Ele é criança ainda, não sabe a vida. É preciso respeitar as coisas de dantes...

E o jardim ficou.

Mas um dia... Ah! Bem sentira-se Timóteo tomado de aversão pela família dos ora-pro- nóbis! Pressentimento puro... O ora-pro-nóbis pai voltou e esteve ali uma semana em conciliábolo com o moço. Ao fim deste tempo, explodiu como bomba a grande notícia: estava negociada a fazenda, devendo a escritura passar-se dentro de poucos dias.

Timóteo recebeu a nova como quem recebe uma sentença de morte. Na sua idade, tal mudança lhe equivalia a um fim de tudo. Correu a agarrar-se à moça, mas desta vez nada puderam contra as armas do dinheiro os seus pobres argumentos de poeta.

Vendeu-se a fazenda. E certa manhã viu Timóteo arrumarem-se no trole os antigos patrões, as mucamas, tudo o que constituía a alma do velho patrimônio.

– Adeus, Timóteo! – disseram alegremente os senhores-moços, acomodando-se no veículo.

– Adeus! Adeus!...

E lá partiu o trole, a galope... Dobrou a curva da estrada... Sumiu-se para sempre...

Pela primeira vez na vida Timóteo esqueceu de regar o jardim. Quedou-se plantando a um canto, a esmoer o dia inteiro o mesmo pensamento doloroso:– Branco não tem coração...

Os novos proprietários eram gente da moda, amigos do luxo e das novidades. Entraram na casa com franzimentos de nariz para tudo.
– Velharias, velharias...

E tudo reformaram. Em vez da austera mobília de cabiúna, adotaram móveis pechisbeques, com veludinhos e friso. Determinaram o empapelamento das salas, a abertura de um hal l, mil coisas esquisitas...

Diante do jardim, abriram-se em gargalhadas. – É incrível! Um jardim destes, cheirando a Tomé de Sousa, em pleno século das crisandálias!

E correram-no todo, a rir, como perfeitos malucos.

– Olhe, Ivete, as esporinhas! É inconcebível que inda haja esporinhas no mundo!

– E periquito, Odete! Pe-ri-qui-to!... – disse uma das moças, torcendo-se em gargalhadas.

Timóteo ouvia aquilo com mil mortes n’alma. Não restava dúvida, era o fim de tudo, como pressentira: aqueles bugres da cidade arrasariam a casa, o jardim e o mais que lembrasse o tempo antigo. Queriam só o moderno.

E o jardim foi condenado. Mandariam vir o Ambrogi para traçar um plano novo, de acordo com a arte moderníssima dos jardins ingleses. Reformariam as flores todas, plantando as últimas criações da floricultura alemã. Ficou decidido assim.

– E para não perder tempo, enquanto o Ambrogi não chega ponho aquele macaco e me arrasar isto – disse o homem apontando para Timóteo.

– Ó tição, vem cá!

Timóteo aproximou-se com ar apatetado.

– Olha, ficas encarregado de limpar de limpar este mato e deixar a terra nuazinha. Quero fazer aqui um lindo jardim. Arrasa-me isto bem arrasadinho, entendes?

Timóteo, trêmulo, mal pôde engrolar uma palavra:

–Eu?

– Sim, tu! Por que não?

O velho jardineiro, atarantado e fora de si, repetiu a pergunta:

– Eu? Eu, arrasar o jardim?

O fazendeiro encarou-o, espantado da sua audácia, sem nada compreender daquela resistência.

– Eu? Pois me acha com cara de criminoso?


E, não podendo mais conter-se, explodiu num assomo estupendo de cólera – o primeiro e o único de sua vida.

– Eu vou mas é embora daqui, morrer lá na porteira como um cachorro fiel. Mas, olhe, moço, que hei de rogar tanta praga que isto há de virar um tapera de lacraias! A geada há de torrar o café. A peste há de levar até as vacas de leite! Não há de ficar aqui nenhuma galinha, nem um pé de vassoura! E a família amaldiçoada, coberta de lepra, há de comer na gamela com os cachorros lazarentos!... Deixa estar, gente amaldiçoada! Não se assassina assim uma coisa que dinheiro nenhum paga.

Não se mata assim um pobre negro velho que tem dentro do peito uma coisa que lá na cidade ninguém sabe o que é. Deixa estar, branco de má casta! Deixa estar, caninana! Deixa estar!...

E fazendo com a mão espalmada o gesto fatídico, saiu às arrecuas, repetindo cem vezes a mesma ameaça:

– Deixa estar! Deixa estar!

E longe, na porteira, ainda espalmava a mão para a fazenda, num gesto mudo:

– Deixa estar!

Anoitecia. Os curiangos andavam a espacejar silenciosamente vôos de sombra pelas estradas desertas. O céu era todo um recamo fulgurante de estrelas. Os sapos coaxavam nos brejos e vagalumes silenciosos piscavam piques de luz no sombrio das capoeiras.

Tudo adormecera na terra, em breve pausa de vida para o ressurgir do dia seguinte.Só não ressurgirá Timóteo. Lá agoniza ao pé da porteira. Lá morre.

E lá encontrará a manhã enrijecido pelo relento, de borco na grama orvalhada, com a mão estendida para a fazenda num derradeiro gesto de ameaça:

– Deixa estar!...

Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha. Ed. Brasiliense.

Fernando Augusto Buarque Franco Netto (Poemas Escolhidos)

A GRANDE ESPERA

As palavras que disseste nesta noite
Não foram pronunciadas em vão;
Tampouco dissiparam-se os teus gestos
E o brilho dos teus olhos,
Ou se perdeu o teu prazer efêmero.

O som de tua voz e de outras vozes,
O cinto das nuvens carregadas,
A melancólica nudez das ruas molhadas,
O bater de tua porta quando entraste,

Tudo ficou gravado invisivelmente
Na lousa branca do tempo,
E no dia da revelação,
Teus olhos espantados
Ver-se-ão a si próprios.

A VOLTA INÚTIL

Um canto de cigarras se acomoda
Na amplidão da tarde e da saudade.
As flores trocam segredos
Que o vento trouxe de longe;
Só tu não estas.

Mas tua evocação se dilata no pensamento,
E na tua presença de milagre
Eu contemplo os tens olhos abatidos
Pela longa espera.
Eu contemplo os teus olhos apagados
Que não me dizem nada,
Como a boca que não sorri ,
E os braços que não se movem.
Quisera que me visses, que falasses,
Como se não estivesses imóvel e fria
Entre as coisas que nunca mais retornam.

BEATRIZ

Beatriz temerosa, subindo a velha escada,
Balançando a medo quadris de vinte anos.
(Até a escada era voluptuosa).

Beatriz furtiva, empurrando um sorriso meigo
Detrás do pudor quase intransponível.
Beatriz de pupilas de criança,
Em que havia uma pequenina mulher adormecida..
Beatriz lânguida, de olhos quase amorosos
(Beatriz ainda não sabia o que era o amor)

Beatriz quase mulher.

A tarde cora de lhe ver os olhos,
E encosta suavemente nas vidraças
O biombo negro da noite.

OUTONAL

Olhei a noite e senti-me só.
Olhei a noite que te abraçava
Com infinitos braços de treva;
De tanto te desejar,
Senti os braços imensos,
E abracei a noite toda
Para abraçar-te dentro dela.

Não posso juntar as estrelas,
Por meus olhos dentro delas.
Se pudesse, não cegava:
Não ceguei quando chegaste.

O forro negro do céu
São teus olhos dissolvidos
Na pele azul do Inf inito,
E teu sorriso se oculta
Atrás dos raios da lua;
Mas a lua se esconde aflita
Atrás de nuvens de chumbo,
Cansada de ser ferida
Que verte sangue de prata.

Que alvura invade o ar!
Sempre imaginei teus seios
De indefinida brancura -

Desce de leve a neblina,
Trama de chuva tão fina
Como o ouro entretecido
Na seda dos teus cabelos.

As nuvens negras castigam
Meu caminhar solitário
Com finas gotas geladas,
Que me escorrem pela face.

E eu beijo a chuva que cai
Longe, nos teus cabelos.

RECUERDO

Imagens preciosas de outros dias
Irrompem como flores na lembrança,
Enchendo de perfume e esquecimento
Os momentos tristíssimos de hoje.

Aquele amor das tardes muito azuis
Em que o mundo eram teus olhos, o céu e teus cabelos...
Amor era uma rosa perfeita.

Teus cabelos douraram a despedida,
Do azul de teus olhos partia uma angústia
Maior que toda as lágrimas.
Amor despedaçou-se em adeuses
Na dor da tarde vermelha.

TODA VESTIDA DE AZUL

Toda vestida de azul.
As pálpebras tenuemente fechadas,
Como à espera de minha voz
Para descobrirem os olhos infinitamente límpidos.

Toda vestida de azul.
A cabeça suavemente reclinada
No travesseiro e no último sonho,
E os cabelos se desmanchando pelos ombros
Como rios de luz.

Fechei todas as janelas,
Para não deixar o vento apagar
O sorriso levíssimo que seduziu teus lábios.

Estas tão pura dormindo!
Para acordar-te pura assim
É preciso chamar Deus..

- Estás toda vestida de azul, Meu Senhor,
E morta.

Fonte:
JORGE, J. G. de Araújo. Antologia da Nova Poesia Brasileira. 1a ed. 1948.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 654)

 Uma Trova de Ademar 

Toda dor deixa sequela,
mas devido eu sofrer tanto,
minha dor só se revela
na angústia triste do pranto.
–Ademar Macedo/RN–

 Uma Trova Nacional 


Nas noites claras de lua,
no desenho da calçada,
vejo a silhueta sua
à minha sombra abraçada.
–Olympio Coutinho/MG–

 Uma Trova Potiguar 


A lua cheia de agosto
é de uma beleza infinda...
nos olhos de um lindo rosto
é duas vezes mais linda.
–Djalma Mota/RN–

 Uma Trova Premiada 


2006  -  CTS/Caicó/RN
Tema  -  PONTE  -  6º Lugar.


No seco botão da rosa
que me deste em tenra idade,
vejo a ponte afetuosa
que me conduz à saudade.
–Renato Alves/RJ–

 ...E Suas Trovas Ficaram 


Presença é luz, sol que arde,
no firmamento incendido.
Saudade é sombra da tarde,
pungente como um gemido.
–Pe. Celso de Carvalho/MG–

 Uma  Poesia 


Casinha à beira da estrada
com chão de terra batida,
fiz do teu portão de entrada
o meu portão de saída,
parti morto de saudade
tangendo os sonhos da idade
pelas estradas da vida!
–Prof. Garcia/RN–

 Soneto do Dia 

CONTRADIÇÃO.
–Maria Nascimento/RJ–


Hoje, mais uma vez, desesperada
por ser injustamente preterida,
vejo que já nasci predestinada
a amar sem nunca ser correspondida...

Mas o que me dói mais, na despedida,
é saber que fui sempre desprezada
porque foste o anjo bom da minha vida
e eu, da tua, jamais pude ser nada.

Se me pudesse ver da eternidade,
chorando de tristeza e de saudade
pelo amor que no tempo se perdeu,

Carlos Drummond de Andrade me diria:
"E agora", como vais viver Maria
sem o José que achavas que era teu?!

Fontes:
Textos enviados por Ademar Macedo/RN
Imagem formatada por Dáguima Veronica/MG

A. A. De Assis (Trovia – Ano 13 – n. 153 – Setembro de 2012)

Coordenador: A. A. de Assis - Maringá/PR
  Revista virtual de trovas
                         
                                

Maringá 2009

                         
                     
São Paulo 2012
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Inesquecíveis

Gostar de ti, quem não há de?
Inspiras tal simpatia,
que a gente sente saudade
se deixa de ver-te um dia.
Colombina

Na distância, ao teu aceno,
quanta tristeza me invade...
O trem ficando pequeno
e em mim crescendo a saudade!
Hermoclydes Franco

Quem tem a luz do saber,
muito mais que outro qualquer,
tem de cumprir o dever
de ser luz... onde estiver.
João Freire Filho

Quem entra em meu coração
fica lá por  toda a vida.
Ele é igual a um alçapão:
não tem porta de saída!
Miguel Russowsky

É Deus que forja o destino,
distribuindo talento.
O poeta é só um menino
soltando letras – ao vento...
Newton Meyer

Sei que é tarde, não me iludo,
e o que mais me dói agora
é pensar que tive tudo
que acabei jogando fora...
Nydia Iaggi Martins
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BRINCANTES

Todo mundo acha um regalo
comer galinha com a mão…
Mas, pela farra do galo,
ele é a única exceção!
Edmar Japiassú Maia – RJ

Vou pondo no paletó
as lembranças do meu fado.
Acho que as boas – que dó! –
coloco em bolso furado...
José Fabiano – MG

É minha a dívida: assumo,
e hei de saldá-la... porém,
enquanto a grana eu arrumo,
que tal me emprestar mais cem???
José Ouverney – SP

A deturpação dos fatos
é tão comum entre a gente
que a corrente dos boatos
passou a ser voz corrente.
Jotão Silva – RJ

Com franguinhas alopradas
é natural que aconteça,
por serem descabeçadas,
terem “galos” na cabeça...
Osvaldo Reis – PR

Depois da aviária e a suína,
mais folga o aluno cobiça:
quer que venha, repentina,
a gripe  bicho-preguiça!
Roza de Oliveira – PR

Tive um trabalho danado
com a vaca hoje cedinho:
não deu leite empacotado
nem quis sentar no banquinho...
Ruth Farah – RJ
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LÍRICAS E FILOSÓFICAS

Que alegre alívio provoca,
na alma e no coração,
o abraço que a gente troca
numa troca de perdão!
A. A. de Assis – PR

Se tu vais, por gentileza,
deixa a porta sem trancar!
Não me roubes a certeza
de que logo irás voltar!
Adélia Victória Ferreira – SP

Vejo sentadas no chão,
trajadas de desamor,
crianças comendo pão
amanteigado de dor!
Ademar Macedo – RN

O amor é doce alimento,
orvalho regando a flor;
é o mais belo sentimento
que herdamos do Criador.
Agostinho Rodrigues – RJ

Ah se eu pudesse algum dia
ter asas para voar...
Quem sabe talvez iria
em tua boca pousar!
Almir Pinto de Azevedo – RJ

A solidão enlouquece,
põe a vida à revelia...
Então o mar escurece
e de tristeza esvazia.
Ari Santos de Campos – SC

Tal e qual meu pé de rosa,
que ao ser podado floresce,
esta saudade teimosa,
quanto mais podo, mas cresce!
Carolina Ramos – SP

Antes fosse incêndio... fogo,
pois teu gelo me atormenta:
me impede de abrir o jogo
e minha alma não aguenta.
Cida Vilhena – PB

A cortina solta ao vento
dança, insone, o seu bailado:
– revolve o velho aposento
e os segredos do passado.
Conceição Abritta – MG

Ao relembrar nossa história,
que foi breve, mas foi linda,
no jazigo da memória
uma luz fulgura ainda...
Conceição de Assis – MG

Da minha terra encantada
eu guardo a estação mais bela,
o canto da passarada
e os meus sonhos de janela!
Dáguima Verônica – MG

Quem faz o bem com prazer,
mesmo que seja um incréu,
reserva, sem perceber,
um bom tesouro no céu.
Dari Pereira – PR

A  criança que eu trazia
dentro de mim, escondida,
hoje vive da  poesia,
chorando restos de vida!
Delcy Canalles – RS

Na casa de quem escreve
há sempre papel no chão:
não perde tempo quem deve
segurar a inspiração!
Diamantino Ferreira – RJ

Descubro ao longo da vida
meus mais íntimos segredos,
quando, qual harpa tangida,
vibro ao toque dos teus dedos...
Divenei Boseli – SP

Distante é grande a vontade,
saudade no peito bate...
Antes matar a saudade
que deixar que ela nos mate.
Djalma da Mota – RN

Nossa terra e a terra lusa,
na doce língua que as liga,
são cordas nas mãos da musa,
cantando a mesma cantiga.
Dorothy J. Moretti – SP

Trovadores, em verdade,
são irmãos na inspiração,
na partilha da amizade,
no carinho e na emoção.
Eliana Jimenez – SC

As flores, dupla função
representam nesta vida:
alegria e emoção,
ou então a dor sentida.
Euclymar Porto – RJ

O vento varre a ansiedade
e as folhas secas do chão;
só não varre esta saudade
que corta o meu coração.
Flávio Stefani – RS

A ilusão da meninice
com meus netos se refez:
agora, em plena velhice,
eu sou criança outra vez!...
Fernando Câncio – CE

O retrato na moldura,
da corrosão, dá sinais!
Mesmo assim, guarda a candura
da graça de nossos pais!
Francisco Garcia – RN

Nos olhos o mesmo brilho
e este orgulho que nos trai,
quando no peito de um filho
bate um coração de pai!
Gabriel Bicalho – MG

Solidão, tu és um elo
entre o que foi e o que é...
Fiz de areia o meu castelo,
sem me lembrar da maré!
Gislaine Canales – SC

Começa a lua num traço,
vai crescendo e nos seduz...
Como é formoso, no espaço,
esse trapinho de luz!
Humberto Del Maestro – ES

A inspiração que aparece
e me impele a escrever
é um tesouro que abastece
e enriquece o meu viver.
Istela Marina – PR

O vento, que varre a mata
e pelos campos caminha,
traz um som de serenata
à minha vida sozinha.
Jeanette De Cnop – PR

Luzes! Músicas! E à mesa
como nunca alguém sonhou.
Mas havia uma tristeza
que eu não sei por onde entrou...
Janske Schlenker – PR

Mantenha a cabeça erguida,
sorria, volte a cantar...
Sem ânimo para a vida,
você não sai do lugar!
Jorge Fregadolli – PR

Cultivemos o jardim
do amor, com perseverança,
para que seja o estopim
de um futuro de esperança.
José Feldman – PR

Trova, meu pombo-correio,
Voa longe, por favor!
Diz ao mundo que inda creio
na paz que brota do amor!
José Lucas de Barros – RN

Tento fugir da rotina,
conquistar um novo espaço...
mas minha tristeza assina
seu nome, por onde passo...
José Valdez – SP

Nas nuvens vejo ajoelhada
minha mãe a orar comigo,
sempre que a fé é abalada
e nem rezar eu consigo.
Lisete Johnson – RS

Contrassenso é eu ter na vida
por meu sol os olhos teus,
se ao te olhar, minha querida,
bem ceguinhos deixo os meus.
Luiz Hélio Friedrich – PR

A trova levou-me aos céus,
pois entre joios e trigos
perdi pequenos troféus
mas ganhei grandes amigos.
Manoel Cavalcante – RN

Que a lei, com todo o seu porte,
seja um escudo do bem...
E que a justiça do forte
seja a do fraco também!
Mara Melinni Garcia – RN

O presente mais bonito
fui eu mesma que me dei:
num momento de conflito,
dei-me a paz... e perdoei.
Maria Ignez Pereira – SP

Sabedoria... só cabe
a quem tem por diretriz
não dizer tudo o que sabe,
mas... saber tudo o que diz.
Ma. Madalena Ferreira – RJ

A ciranda traz lembranças
que a saudade perpetua,
de um tempo em que nós, crianças,
éramos todas de rua...
Marina Bruna – SP

De uma única costela,
nosso Deus fez a mulher;
se há criatura mais bela?
-Desdiga-me quem puder!
Maurício Friedrich – PR

Deus fez tudo à nossa espera,
fez a luz e fez as flores,
fez o mar e a primavera,
e inspirou os trovadores.
Nei Garcez – PR

Ficou mais lento o meu passo?
Caminharei mesmo assim.
Só temeria o cansaço
se me cansasse de mim...
Newton Vieira – MG

As dores e os desencantos,
lancem ao pó das estradas...
– Façam dos lares recantos
que lembrem contos de fadas!
Olga Agulhon – PR

A saudade e o abandono
deste meu leito vazio
mostram as horas sem sono
plenas de dor e de frio.
Olga Ferreira – RS

Amor cigano, utopia,
triste  busca por alguém;
quem tem um amor por dia
não tem o amor de ninguém.
Olympio Coutinho – MG

Trovador que espalha o sonho
que lhe mora n’alma inquieta
revela ao mundo tristonho
a bênção que é ser um poeta!
Renato Alves – RJ

Quando o  passado me embala
e o sono,aos poucos, se evade
até o relógio da sala
vem acordar a saudade!
Rodolpho Abbud – RJ

No gérmen que se faz planta
a promessa é chama acesa
dourando o trigo que encanta
e que põe o pão na mesa!...
Sônia Martelo – PR

Querida, eu tenho ciúme
– não há desdouro em dizê-lo...
Ciúme até do perfume
que perfuma o teu cabelo.
Thalma Tavares – SP

Eu olho a rua e, se o vejo,
a razão já sai de perto.
Fecho a janela... e o desejo
esquece o cadeado aberto!
Therezinha Brisolla – SP

A vida, em sua beleza,
deu-me tantas emoções,
que, mesmo ao sentir tristeza,
há doces recordações.
Vanda Alves – PR

Por mais que o progresso iluda,
deturpe e inverta valor,
o que Deus fez ninguém muda:
amor será sempre Amor.
Vanda Fagundes Queiroz – PR

O tempo passou... e agora...
já é mais que entardecer,
mas tua presença é aurora
na noite do meu viver.
Zeni de Barros Lana – MG
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Fonte:
O Autor

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Cecília Meireles (Serenata)


José Bonifácio (Poemas)


SAUDADE

I
Eu já tive em belos tempos
Alguns sonhos de criança;
Já pendurei nas estrelas
A minha verde esperança;
Já recolhi pelo mundo
Muita suave lembrança.

Sonhava então - e que sonhos
Minha mente acalentaram?!
Que visões tão feiticeiras
Minhas noites embalaram?!
Como eram puros os raios
De meus dias que passaram?!

Tinha um anjo de olhos negros,
Um anjo puro e inocente,
Um anjo que me matava
Só c'um olhar - de repente,
- Olhar que batia na alma,
Raio de luz transparente!

Quando ela ria, e que riso?!
Quando chorava - que pranto?!
Quando rezava, que prece!
E nessa prece que encanto?!
Quando soltava os cabelos,
Como esparzia quebranto!

Por entre o chorão das campas
Minhas visões se ocultaram;
Meus pobres versos perdidos
Todos, todos acabaram;
De tantas rosas brilhantes
Só folhas secas ficaram!

II

Oh! que já fui feliz! - ardente, ansioso
Esta vida boiou-me em mar de encantos!
Os meus sonhos de amor eram mil flores
Aos sorrisos de aurora, abrindo a medo
Nos orvalhados campos!

Ela no agreste monte; ela nos prados;
Ela na luz do dia; ela nas sombras
Pardacentas do vale; ela no monte,
No céu, no firmamento - ela sorrindo!
Então o sol surgindo feiticeiro,
Entre nuvens de cores recamadas,
Segredava mistérios!

Como era verde o florejar das veigas,
Brandinha a viração, múrmura a fonte,
Meigo o clarão da lua, a estrela amiga
Na solidão do Céu!

Que sedes de querer, que amor tão santo,
Que crença pura, que inefáveis gozos,
Que venturas sem fim, calcando ousado
Humanas impurezas!
Deus sabe se por ela, em sonho estranho
A divagar sem tino em loucos êxtases,
Sonhei, penei, vivi, morri de amores!
Se um quebro fugitivo de seus olhos
Era mais do que a vida em plaga edênica,
Mais do que a luz ao cego, o orvalho às flores,
A liberdade ao triste prisioneiro,
E a terra da pátria ao foragido!!!
Mas, ai! - tudo morreu!...

Secou-se a relva, a viração calou-se,
Os queixumes da fonte emudeceram,
Mórbida a lua só prateia lousa,
A estrela amorteceu e o sol amigo
No verde-negro seio do oceano
Chorando a face esconde!

Meus amores talvez morreram todos
Da lua no clarão que eu entendia,
Nessa réstia do sol que me falava,
Que tantas vezes me aqueceu a fronte!

III

Além, além, meu pensamento, avante!
Que idéia agora a mente me assalteia?!
Lá surge afortunada,
Da minha infância a imagem feiticeira!
Quadra risonha de inocência angélica,
Minha estação no Céu, por que fugiste?
E que vens tu fazer - agora à tarde
Quando o sol já desceu os horizontes,
E a noite do saber já vem chegando
E os lúgubres lamentos?
 
Minha aurora gentil - tu bem sabias
Como eu falava às brisas que passavam,
Às estrelas do Céu, à lua argêntea,
sobre nuvem purpúrea ao Sol já frouxo!
Ante mim se erguia então o venerando
O vulto de meu Pai - perto, ao meu lado
Minha irmãs brincavam inocentes,
Puras, ingênuas, como a flor que nasce
Em recatado ermo! - Ai! minha infância
Não voltarás... oh! nunca!... entre ciprestes
Dormes daqueles sonhos esquecida!
 
Na solidão da morte - ali repoisam
Ossos de Pai, de Irmãos!... embalde choras
Coração sem ventura... a lousa é muda,
E a voz dos mortos só a campa a entende.
Tive um canteiro de estrelas,
De nuvens tive um rosal;
Roubei às tranças da aurora
De pérolas um ramal.

De aurinoturno véu
Fez-me presente uma fada;
Pedi à lua os feitiços,
A cor da face rosada.

Contente à sombra da noite
Rezava a Virgem Maria!
De noite tinha esquecido
Os pensamentos do dia.
Sabia tantas histórias
Que não me lembra nenhuma;
Ao meus prantos apagaram
Todas, todas - uma a uma!

IV

Ambições, que eu já tive, que é delas?
Minhas glórias, meu Deus, onde estão?
A ventura - onde vivi na terra?
Minha rosas - que fazem no chão?

Sonhei tanto!... Nos astros perdidos
Noites... noites inteiras dormi;
Veio o dia, meu sono acabou-se,
Não sei como no mundo me vi!

Esse mundo que outrora habitava
Era Céu... paraíso... eu não sei!
Veio um anjo de formas aéreas,
Deu-me um beijo, depois acordei!

Vi maldito esse beijo mentido,
Esse beijo do meu coração!
Ambições, que eu já tive, que é delas?
Minhas glórias, meu Deus, onde estão?

A cegueira vendou-me estes olhos,
Atirei-me num pego profundo;
Quis coroas de glória... fugiram,
Um deserto ficou-me este mundo!

As grinaldas de louro murcharam,
Nem grinaldas - somente a loucura!
Vi no trono da glória um cipreste,
Junto dele uma vil sepultura!

Negros ódios, infames traições,
E mais tarde... um sudário rasgado!
O futuro?... Uma sombra que passa,
E depois... e depois... o passado!

Ai! maldito esse beijo sentido
Esse beijo do meu coração!
A ventura - onde vive na terra?
Minhas rosas - que fazem no chão?

Por entre o chorão das campas
Minhas visões se ocultaram;
Meus pobres versos perdidos
Todos, todos acabaram;
De tantas rosas brilhantes
Só folhas secas ficaram....

ENLEVO

Se invejo as coroas, os cantos perdidos
Dos bardos sentidos, que altivos ouvi,
Bem sabes, donzela, que os loucos desejos,
Que os vagos almejos, são todos por ti.

Bem sabes que, às vezes, teu pé sobre o chão,
No meu coração faz eco, passando;
Que sinto e respiro teu hálito amado;
E, mesmo acordado, só vivo sonhando!

Bem sabes, donzela, na dor ou na calma,
Que é tua a minha alma, que é meu o teu ser,
Que vivo em teus olhos; que sigo teus passos;
Que quero em teus braços viver e morrer.

A luz do teu rosto - meu sol de ventura,
Saudade, amargura, não sei o que mais -
Traduz meu destino, num simples sorriso,
Que é meu paraíso, num gesto de paz.

Se triste desmaias, se a cor te falece,
A mim me parece que foges pro céu,
E eu louco murmuro, nos amplos espaços,
Voando a teus braços: - És minhas!... Sou teu!...

Da tarde no sopro suspira baixinho,
No sopro mansinho suspira... Quem és?
Suspira... Hás de ver-me de fronte abatida,
Sem força, sem vida, curvado a teus pés.

IMPROVISADO

DERMINDA, esses teus olhos soberanos
Têm cativado a minha liberdade;
Mas tu cheia, cruel, de impiedade
Não deixas os teus modos desumanos.

Por que gostas causar dores e danos?
Basta o que eu sofro: tem de mim piedade!
Faze a minha total felicidade,
Volvendo-me esses olhos mais humanos.

Já tenho feito a última fineza
Para ameigar-te a rija condição;
És mais que tigre, foi baldada empresa.

Podem meus ais mover a compaixão
Das pedras e dos troncos a dureza,
E não podem abrandar um coração?

Fonte:
Portal São Francisco

Monteiro Lobato (Dona Expedita)

- ...

- Minha idade? Trinta e seis...

- Então, venha.

Sempre que dona Expedita se anunciava no jornal, dando um número de telefone, aquele diálogo se repetia. Seduzidas pelos termos do anúncio, as donas de casa telefonavam-lhe para “tratar” – e vinha inevitavelmente a pergunta sobre a idade, com a também inevitável resposta dos 36 anos. Isso desde antes da grande guerra. Veio o 1914 – ela continuou nos 36. Veio a batalha do Marne; veio o armistício – ela firme nos 36. Tratado de Versalhes – 36. Começos de Hitler e Mussolini – 36. Convenção de Munich – 36...

A futura guerra a reencontrará nos 36. O mais teimoso dos empaques! Dona Expedita já está “pendurada”, escorada de todos os lados, mas não tem ânimo de abandonar a casa dos 36 anos – tão simpática!

E como se tem 36 anos, veste-se à moda dessa idade um pouco mais vistosamente do que a justa medida aconselha. Erro grande! Se à força de cores, rugas e batons, não mantivesse aos olhos do mundo os seus famosos 36, era provável que desse a idéia duma bem aceitável matrona de 60...

Dona Expedita é “tia”. Amor só teve um, lá pela juventude, do qual às vezes, nos “momentos de primavera”, ainda fala. Ah, que lindo moço! Um príncipe. Passou um dia de cavalo pela janela. Passou na tarde seguinte e ousou um cumprimento. Passou e repassou durante duas semanas – e foram duas semanas de cumprimentos e olhares de fogo. E só. Não passou mais – desapareceu da cidade para sempre.

O coração da gentil Expedita pulsou intensamente naqueles maravilhosos quinze dias – e nunca mais. Nunca mais namorou ou amou alguém – por causa da casmurrice do pai.

Seu pai era caturra de barbas à Von Tirpitz, português irredutível, desses que fogem de certos romances de Camilo e reentram na vida. Feroz contra o sentimentalismo. Não admitia namoros em casa, e nem que se pronunciasse a palavra casamento. Como vivesse setenta anos, forçou as duas únicas filhas a se estiolarem ao pé de sua catarreira crônica. “filhas são para cuidar da casa e da gente”.

Morreu, afinal, e arruinado. As duas “tias” venderam a casa para pagamento das contas e tiveram de empregar-se. Sem educação técnica, os únicos empregos antolhados foram os de criada grave, dama de companhia ou “tomadeira de conta” – graus levemente superiores à crua profissão normal de criada comum. O fato de serem de “boa família” autorizava-as ao estacionamento nesse degrau um pouco acima do último.

Um dia a mais velha morreu. Dona Expedita ficou só no mundo. Quer fazer, senão viver? Foi vivendo e especializando-se em lidar com patroas. Por fim, distraía-se com isso. Mudar de empregos era mudar de ambiente – ver caras novas, coisas novas, tipos novos. Um cinema – o seu cinema! O ordenado, sempre mesquinho. O maior de que se lembrava fora de 150 mil réis. Caiu depois para 120; depois para 100; depois 80. Inexplicavelmente as patroas iam-lhe diminuindo a paga a despeito da sua permanência na linda idade dos 36 anos...

Dona Expedita colecionava patroas. Teve-se de todos os tipos e naipes – das que obrigam as criadas a comprar o açúcar com que adoçam o café, às que voltam para casa de manhã e nunca lançam os olhos sobre o caderno de compras. Se fosse escritora teria deixado o mais pitoresco dos livros. Bastava que fixasse metade do que viu e “padeceu”. O capítulo das pequeninas decepções seria dos melhores – como aquele caso dos 400 mil réis...

Foi vez que, saída de emprego, andava em procura de outro. Nessas ocasiões costumava encostar-se à casa de uma família que se dera com a sua, e lá ficava um mês ou dois até conseguir nova colocação. Pegava a hospedagem fazendo doces, no que era perita, sobretudo um certo bolo inglês que mudou de nome, passando a chamar-se o “bolo de cona Expedita”. Nesses interregnos comprava todos os dias um jornal especializado em anúncios domésticos, no qual lia atentamente a seção do “procura-se”. Com a velha experiência adquirida, adivinhava pela redação as condições reais do emprego.

- Porque “elas” publicam aqui uma coisa e querem outra – comentava filosoficamente, batendo no jornal. – para esconder o leite, não há como as patroas!

E ia lendo, de óculos na ponta do nariz: “precisa-se de uma senhora de meia idade para servicinhos leves”.

- Hum! Quem lê isto pensa que é assim mesmo – mas não é. O tal servicinho leve não passa de isca – é a minhoca do anzol. A mim é que não me enganam, as biscas...

Lia todos os “procura-se”, com um comentário para cada um, até que se detinha no que lhe cheirava melhor. “Precisa-se duma senhora de meia-idade para serciços leves em casa de fino tratamento”.

- Este, quem sabe? Se é casa de fino tratamento, pelo menos fartura há de aver. Vou telefonar.

E vinha a telefonada de costume com a eterna declaração dos 36 anos.

O hábito de lidar com patroas manhosas levou-a a lançar mão de vários recursos estratégicos; um deles: só “tratar” pelo telefone e não dar-se como ela mesma.

“Estou falando em nome duma amiga que procura emprego.” Desse modo tinha mais liberdade e jeito de sondar a “bisca.”

- Essa amiga é uma excelente criatura – e vinham bem dosados elogios. - Só que não gosta de serviços pesados.

- Que idade?

- Trinta e seis anos. Senhora de muito boa família – mais por menos de 150 mol réis nunca se empregou.

- É muito. Aqui o mais que pagamos é 110 – Sendo boa.

- Não sei se ela aceitará. Hei de ver. Mas qual é o serviço?

- Leve. Cuidar da casa, fiscalizar a cozinha, espanar – arrumar...

- Arrumar? Então é arrumadeira que a senhora quer?

E dona Expedita pendurava o fone, arrufada, murmurando: “Outro ofício!”

O caso dos 400 mil réis foi o seguinte. Ela andava sem emprego e a procurá-lo na seção do “precisa-se”. O súbito, esbarrou com esta maravilha: “Precisa-se duma senhora de meia-idade para fazer companhia a uma enferma; ordenado, 400 mil réis”.

Dona Expedita esfregou os olhos. Leu outra vez. Não acreditou. Foi em busca duns óculos novos adquiridos na véspera. Sim. Lá estava escrito 400 mil réis!...

A possibilidade de apanhar um emprego único no mundo fê-la pular. Correu a vestir-se, a pôr o chapeuzinho, a avivar as cores do rosto e voou pelas ruas afora.

Foi dar com os costados numa rua humilde; nem rua era – numa “avenida”. Defronte à casa indicada – casinha de porta e duas janelas – havia uma dúzia de pretendentes.

- Será possível? O jornal saiu agorinha e já tanta gente por aqui?

Notou que entre as postulantes predominavam senhoras bem-vestidas, como o aspecto de “damas envergonhadas”. Natural que assim fosse porque um emprego de 400 mil réis. Era positivamente um fenômeno. Nos seus... 36 anos de vida terrena jamais tivera notícia de nenhum. Quatrocentos por mês! Que mina! Mas com um emprego assim em casa tão modesta? “Já sei. O emprego não é aqui. Aqui é onde se trata – casa do jardineiro, com certeza...”

Dona Expedita observou que as postulantes entravam de cara risonha e saíam de cabeça baixa. Evidentemente a decepção da recusa. E o seu coração batia de gosto ao ver que todas iam sendo recusadas. Quem sabe? Quem sabe se o destino marcara justamente a ela como a eleita?

Chegou, por fim, a sua vez. Entrou. Foi recebida por uma velha na cama. Dona Expedita nem precisou falar. A velha foi logo dizendo:

“Houve erro no jornal. Mandei por 40 mil réis e puseram 400... Tinha graça eu pagar 400 a uma criada, eu que vivo à custa do meu filho, sargento da polícia, que nem isso ganha por mês...”

Dona Expedita retirou-se com cara exatamente igual à das outras.

O pior da luta entre criados e patroas é que estas são compelidas a exigir o máximo, e as criadas, por natural defesa, querem o mínimo, e as criadas, por natural defesa, querem o mínimo. Nunca jamais haverá acordo, por que é choque de totalitarismo com democracia.

Um dia, entretanto, dona Expedita teve a maior das surpresas: encontrou uma patroa absolutamente identificada com suas idéias quanto ao “mínimo ideal”- e, mais que isso, entusiasmada com esse minimalismo – a ajudá-la a minimizar o minimalismo!

Foi assim. Dona Expedita estava pela vigésima vez na tal família amiga, à espera de nova colocação. Lembrou-se de recorrer a uma agência, para a qual telefonou. “Quero uma colocação assim, de 200 mil réis, em casa de gente arranjada, fina e, se for possível, em fazenda. Serviços leves, bom quarto, banho. Aparecendo qualquer coisa deste gênero, peço que me telefone” – e deu o número do aparelho e de casa.

Horas depois retinia a campainha do portão.

- É aqui que mora madame Expedita? – perguntou, em língua atrapalhada, uma senhora alemã, cheia de corpo, e de bom aspecto.

A criadinha que atendeu disse que sim, fê-la entrar para o hall de espera e foi correndo avisar a dona Expedita. “Uma estrangeira gorda querendo falar c madame!”

- Que pressa meu Deus! – murmurou a solicitada, correndo ao espelho para os retoques.

– Nem três horas que telefonei. Agência boa, sim...

Dona Expedita apareceu no hall com um excessozinho de ruge nos beiços de múmia. Apareceu e conversou – e maravilhou-se, porque, pela primeira vez na vida, encontrava a patroa ideal. A mais sui-generis das patroas, de tão integrada no ponto de vista das “senhoras de meia-idade que procuram serviços leves”.

O diálogo travou-se num crescendo de animação.

- Muito boa tarde! – disse a alemã, com a maior cortesia. – Então foi madame quem telefonou para a agência?

0 “madame” causou espécie a dona Expedita.

- É verdade. Telefonei e dei as condições. A senhora gostou?

- Muito, mas muito mesmo! Era exatamente o que eu queria. Perfeito. Mas vim ver pessoalmente, porque o costume é anunciarem uma coisa e a realidade ser outra.

A observação encantou dona Expedita, cujos olhos brilharam.

- A senhora parece que está pensando com a minha cabeça. É justamente isso o que se dá, vivo eu dizendo. As patroas escondem o leite. Anunciam uma coisa e querem outra. Anunciam serviços leves e botam em cima das pobres criadas a maior trabalheira que podem. Eu falei, insisti com a agência: servicinhos leves...

- Isso mesmo! – concordou a alemã, cada vez mais encantada. – Serviços leves, porque afinal de contas uma criada é gente – não é burro de carroça.

- Claro! Mulheres de certa idade não podem fazer serviços de mocinhas, como arrumar, lavar, cozinhar quando a cozinheira não vem. Ótimo! Quanto à acomodação, falei à agência em “bom quarto”...

- Exatamente! – concordou a alemã. – Bom quarto – com janelas. Nunca pude conformar-me com isso das patroas meterem as criadas em desvão escuros, sem ar, como se fossem malas. E sem banheiro em que tomem banho.

Dona Expedita era toda risos e sorrisos. A coisa lhe estava saindo maravilhosa.

- E banho quente! – acrescentou com entusiasmo.

- Quentíssimo! – berrou a alemã, batendo palmas. – Isso para mim é ponto capital.

Como pode haver asseio numa casa onde nem banheiro há para criadas?

- Há, minha senhora, se todas as patroas pensassem assim! – exclamou dona Expedita, erguendo os olhos para o céu. – Que felicidade não seria o mundo! Mas no geral as patroas são más – e iludem as pobres criadas, para agarrálas e explorá-las.

- Isso mesmo! – apoiou a alemã. A senhora está falando como um livro de sabedoria. Para cem patroas haverá cinco ou seis que tenham coração – que compreendam as coisas...

- Se houver! – duvido dona Expedita.

O entendimento das duas era perfeito: uma parecia o Double da outra. Debateram o ponto dos “serviços leves” com tal mútua compreensão que os serviços foram levíssimos, quase-nulos – e dona Expedita viu erguer-se diante de si o grande sonho de sua vida: um emprego em que não fizesse nada, absolutamente nada...

- Quanto ao ordenado, disse ela (que sempre pedia 200 para deixar por 80), fixei-o em 200...

Avançou medrosamente e ficou à espera da inevitável repulsa. Mas a repulsa do costume pela primeira vez não veio. Bem ao contrário disso, a alemã concordou com entusiasmo.

- Perfeitamente! Duzentos por mês – e pagos no último dia de cada mês.

- Isso! – berrou dona Expedita, levantando-se da cadeira. – Ou no comecinho. Essa história de pagamento em dia incerto nunca foi comigo. Dinheiro de ordenado é sagrado.

- Sacratíssimo! – urrou a alemã, levantando-se também.

- Ótimo – exclamou dona Expedita. – Está tudo como eu queria.

- Sim, ótimo- repetiu a alemã. – Mas a senhora também falou em fazenda...

- Ah, sim fazenda. Uma fazenda bonita, toda frutas, leite e ovos, extasiou a alemã. Que maravilha...

Dona Expedita continuou:

- Gosto muito de lidar com pintinhos.

- Pintos! Ah, é o maior dos encantos! Adoro os pintos – as ninhadas... o nosso entendimento vai ser absoluto, madame...

O êxtase da ambas sobre a vida de fazenda foi subindo numa vertigem. Tudo quanto havia de sonhos incubados naquelas almas refloriu viçoso. Infelizmente, a alemã teve a idéia de perguntar:

- E onde fica a sua fazenda, madame?

- A minha fazenda? – repetiu dona Expedita, refranzindo a testa.

- Sim, a sua fazenda – fazenda para onde madame quer que eu vá...

- Fazenda para onde eu quero que a senhora vá? – tornou a repetir dona Expedita, sem entender coisa nenhuma. – Fazenda, eu? Pois se eu tivesse fazenda lá andava a procurar emprego?

Foi a vez da alemã arregalar os olhos, atrapalhadíssima. Também não estava entendendo coisa nenhuma. Ficou uns instantes no ar. Por fim:

- Pois madame não telefonou para a agência dizendo que tinha um emprego, assim, na sua fazenda?

- Minha fazenda uma ova! Nunca tive fazenda. Telefonei procurando emprego, se possível numa fazenda. Isso sim...

- Então, então, então... – e a lema enrusbeceu como uma papoula.

- Pois é – respondeu dona Expedita percebendo afinal o qüiproquó. – Estamos aqui feito duas idiotas, cada qual querendo emprego e pensando que a outra é a patroa...

O cômico da situação fê-las rirem-se – e gostosamente, já retornadas à posição de “senhoras de meia-idade que procuram serviços leves”.

- Esta foi muito boa! – murmurou a alemã, levantando-se para sair. – Nunca me aconteceu coisa assim. Que agência, hein?
Dona Expedita filosofou.

- Eu bem que estava desconfiada. A esmola era demais. A senhora ia concordando com tudo que eu dizia – até com os banhos quentes! Ora, isso nunca foi linguagem de patroa – dessas biscas. A agência errou, talves por causa do telefone, que estava danado hoje – além do que sou meia dura de ouvidos...

Nada mais havia a dizer. Despediram-se. Depois que a alemã bateu o portão, dona

Expedita fechou a porta, com um suspiro arrancado do fundo das tripas.

- Que pena, meu Deus! Que pena não existirem no mundo patroas que pensem como as criadas...

Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha (contos). Ed. Brasiliense.