Aqui ninguém duvida de que marmota existe. Quase todo o mundo já viu. De noite, nas conversas do terreiro, é raro quem não tenha seu caso a contar. Marmota não é bem fantasma, pode ser alma do outro mundo, ou é uma aparência, uma coisa do mato, quem sabe? Às vezes é um bicho. Em geral é um vulto; e também um ruído, uma chama. Aparece de noite ou de dia.
Todo mundo encara as marmotas como realidades do cotidiano, que fazem um medo desgraçado, mas com as quais se tem que contar. E há delas passageiras, como há outras muito antigas. No caminho de chegada à fazenda de minha irmã, no Choró, existe uma pedra grande, escura, bem na descida de um alto. O povo a chama "Pedra do Bicho", porque ali costuma aparecer uma marmota; e já faz mais de cem anos que ela se mostra. Milhares de pessoas já a encontraram. Pode ser do tamanho de um porco, ou do tamanho de um cavalo, mas é sempre preta e com uma barriga mole, se arrastando. Às vezes se encontra cascavel morta junto da pedra, às vezes um preá. É o bicho que mata. Alguns falam que há muitos anos apareceu ali uma ossada de gente, ainda com as carnes. Engraçado, nesses anos todos nunca mudaram o caminho.
No corte da estrada de ferro, na saída da lagoa da Carnaúba, compadre Chico Barbosa vinha uma noite com o seu filho Eliseu e de repente lhes surgiu à frente aquele vulto preto, de andar arrastado, como um bicho grande e disforme, tomando o caminho. Eles desviaram à esquerda, o bicho também, desviaram à direita, o bicho também bandeou. Chico trazia um facão, brandiu o ferro, a marmota nem se importou. Riscaram um fósforo, sacudiram em cima, o bicho nada. Afinal resolveram fechar os olhos e o pai esgrimindo com o facão, o filho açoitando o ar com uma vara, correram em frente, com bicho e tudo. Não sabem como atravessaram nem como chegaram em casa. Mas ainda hoje ficam com as carnes tremendo quando se lembram.
Pedro Ferreira vinha de uma noitada de jogo, sozinho, pela meia-noite. Eis que numa vereda lhe apareceu a marmota - alta, de braços abertos, no sistema de uma pessoa. Ele trazia um pau grosso na mão, plantou o pau no bicho, facheou o pau todo, a visagem não se espantou. Pedro sentiu que o cabelo lhe crescia na cara, na nuca. Sentou-se no chão, ficou de olhos fechados, esperando, com vontade até de chorar. Afinal olhou - a marmota tinha sumido. E o pau, que ele largara no chão, ao seu lado, tinha sumido também.
Comadre Delurdes ia de manhã ao roçado, levar ao marido o “sonhim” de pão de milho. Junto à capoeira velha deu com uma coisa - não era bem uma marmota, era mais uma aparência, um rasgar forte de pano, e um rufar de asas grandes, uma coisa agitando o ar, aquele sorvo, que não se via mas se sentia. Ela correu tanto que ao chegar em casa teve uma oura, quase morreu. O marido zombou, no outro dia foi com ela - e aí quem correu foi ele. Ninguém da família vai mais sozinho ao roçado.
Certa noite um bando de gente vinha de uma festa, pela rodagem do Quixadá. Zéza, a hoje finada Dora, Terezinha, seu marido Chico Ferreira, e outros. Ao passarem perto do local onde foi encontrada a ossada de Chico Preto (morto misteriosamente há alguns anos), viram um vulto agachado ao pé de uma imburana. A coisa olhava de um lado e de outro da árvore, como quem brinca com criança. Chico Ferreira soltou um uivo e desabou; e as mulheres correram atrás, lutando para ver se chegavam na frente dos homens. E, se a visagem quisesse tinha até apanhado um menino, coitadinho, que ficou por último na disparada. Na hora do medo parece que até coração de mãe se esquece.
O mesmo Pedro Ferreira tem outra recordação do seu tempo de jogador. Vinha em noite escura, por um caminho que passa perto da represa do açude velho do Junco, cansado, com fome e frio. Nisso avistou um fogo e se alegrou - deviam ser uns amigos que planejavam uma pescaria. Parece que tinham tocado fogo num toco e as suas sombras iam e vinham ao redor. Pedro chamou, ninguém respondeu. Aí a chama baixou e voou brasa pra todo lado, como se alguém batesse com uma vara no fogo, estilhaçando-o. Assustado ele parou - firmou a vista - agora não tinha mais toco, nem fogo, nem brasa, só um escuro mais escuro, como um vulto, no lugar onde o fogo estivera. O chapéu lhe subiu nas alturas; ele sentiu que o vulto se deslocava em sua direção. Correu, botando a alma pela boca. Mas o bicho, lerdo, não o perseguiu.
E até mesmo aqui perto de casa, antes de se atravessar o riacho do açude, tem uma moita de mofungo, junto a um pé de violeta, onde o povo sempre encontra uma marmota. Tem dia em que ela balança a moita, e solta gemidos, aqueles ais. Ou se divisa um vulto por baixo da moita, e então se escuta um ruído forte de dentes, como um cachorrão quebrando ossos.
As pessoas que contam esses casos nunca mentem em outras coisas. São gente de respeito, nem é impressão de bebida - como se diz: "visagem de bêbedo fede a cachaça". Será que elas mentem só nesses casos? Ou se enganam, ou sonham?
Fonte:
Governo da Paraíba – A União.
Todo mundo encara as marmotas como realidades do cotidiano, que fazem um medo desgraçado, mas com as quais se tem que contar. E há delas passageiras, como há outras muito antigas. No caminho de chegada à fazenda de minha irmã, no Choró, existe uma pedra grande, escura, bem na descida de um alto. O povo a chama "Pedra do Bicho", porque ali costuma aparecer uma marmota; e já faz mais de cem anos que ela se mostra. Milhares de pessoas já a encontraram. Pode ser do tamanho de um porco, ou do tamanho de um cavalo, mas é sempre preta e com uma barriga mole, se arrastando. Às vezes se encontra cascavel morta junto da pedra, às vezes um preá. É o bicho que mata. Alguns falam que há muitos anos apareceu ali uma ossada de gente, ainda com as carnes. Engraçado, nesses anos todos nunca mudaram o caminho.
No corte da estrada de ferro, na saída da lagoa da Carnaúba, compadre Chico Barbosa vinha uma noite com o seu filho Eliseu e de repente lhes surgiu à frente aquele vulto preto, de andar arrastado, como um bicho grande e disforme, tomando o caminho. Eles desviaram à esquerda, o bicho também, desviaram à direita, o bicho também bandeou. Chico trazia um facão, brandiu o ferro, a marmota nem se importou. Riscaram um fósforo, sacudiram em cima, o bicho nada. Afinal resolveram fechar os olhos e o pai esgrimindo com o facão, o filho açoitando o ar com uma vara, correram em frente, com bicho e tudo. Não sabem como atravessaram nem como chegaram em casa. Mas ainda hoje ficam com as carnes tremendo quando se lembram.
Pedro Ferreira vinha de uma noitada de jogo, sozinho, pela meia-noite. Eis que numa vereda lhe apareceu a marmota - alta, de braços abertos, no sistema de uma pessoa. Ele trazia um pau grosso na mão, plantou o pau no bicho, facheou o pau todo, a visagem não se espantou. Pedro sentiu que o cabelo lhe crescia na cara, na nuca. Sentou-se no chão, ficou de olhos fechados, esperando, com vontade até de chorar. Afinal olhou - a marmota tinha sumido. E o pau, que ele largara no chão, ao seu lado, tinha sumido também.
Comadre Delurdes ia de manhã ao roçado, levar ao marido o “sonhim” de pão de milho. Junto à capoeira velha deu com uma coisa - não era bem uma marmota, era mais uma aparência, um rasgar forte de pano, e um rufar de asas grandes, uma coisa agitando o ar, aquele sorvo, que não se via mas se sentia. Ela correu tanto que ao chegar em casa teve uma oura, quase morreu. O marido zombou, no outro dia foi com ela - e aí quem correu foi ele. Ninguém da família vai mais sozinho ao roçado.
Certa noite um bando de gente vinha de uma festa, pela rodagem do Quixadá. Zéza, a hoje finada Dora, Terezinha, seu marido Chico Ferreira, e outros. Ao passarem perto do local onde foi encontrada a ossada de Chico Preto (morto misteriosamente há alguns anos), viram um vulto agachado ao pé de uma imburana. A coisa olhava de um lado e de outro da árvore, como quem brinca com criança. Chico Ferreira soltou um uivo e desabou; e as mulheres correram atrás, lutando para ver se chegavam na frente dos homens. E, se a visagem quisesse tinha até apanhado um menino, coitadinho, que ficou por último na disparada. Na hora do medo parece que até coração de mãe se esquece.
O mesmo Pedro Ferreira tem outra recordação do seu tempo de jogador. Vinha em noite escura, por um caminho que passa perto da represa do açude velho do Junco, cansado, com fome e frio. Nisso avistou um fogo e se alegrou - deviam ser uns amigos que planejavam uma pescaria. Parece que tinham tocado fogo num toco e as suas sombras iam e vinham ao redor. Pedro chamou, ninguém respondeu. Aí a chama baixou e voou brasa pra todo lado, como se alguém batesse com uma vara no fogo, estilhaçando-o. Assustado ele parou - firmou a vista - agora não tinha mais toco, nem fogo, nem brasa, só um escuro mais escuro, como um vulto, no lugar onde o fogo estivera. O chapéu lhe subiu nas alturas; ele sentiu que o vulto se deslocava em sua direção. Correu, botando a alma pela boca. Mas o bicho, lerdo, não o perseguiu.
E até mesmo aqui perto de casa, antes de se atravessar o riacho do açude, tem uma moita de mofungo, junto a um pé de violeta, onde o povo sempre encontra uma marmota. Tem dia em que ela balança a moita, e solta gemidos, aqueles ais. Ou se divisa um vulto por baixo da moita, e então se escuta um ruído forte de dentes, como um cachorrão quebrando ossos.
As pessoas que contam esses casos nunca mentem em outras coisas. São gente de respeito, nem é impressão de bebida - como se diz: "visagem de bêbedo fede a cachaça". Será que elas mentem só nesses casos? Ou se enganam, ou sonham?
Fonte:
Governo da Paraíba – A União.
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