quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Luís Coelho (Ninguém mais se perderá por Luba)

A história de Luba Soares é difícil de contar, mormente depois do crime, desde que se queira contá-la de uma maneira interessante. Eu conheci bem o caso e, por isso, vou tentar.

Luba, antes de ser Soares, fora Luchesi e, antes de Luchesi, Veletch. Filha de imigrante lituano, desde cedo trabalhou duro para ajudar o pai. Mas, Luba era bonita demais para continuar trabalhando daquele jeito. Foi eleita rainha dos comerciários e, no ano seguinte, a mais bela do Estado. Assediada pelos “gaviões”, a pobrezinha andou às tontas com as ofertas, preferindo, Sandro Luchesi, um fabricante de torneiras que ganhava dinheiro como água. Luchesi financiou a "política" do concurso, porém um senador do Nordeste fechou a questão em torno de sua pupila.

Foi-se o título de "Miss Brasil", mas Luba ganhou um marido e tanto. Sim, porque Luchesi se casou com Luba. Ela saiu do mercado por uns tempos, até que certo dia um avião enfiou o nariz numa montanha do Rio Grande, tornando Luba a viúva mais bela e mais rica deste meu torrão natal. Eu, quando falo de Luba, me entusiasmo, porém preciso tomar cuidado, porque aos outros interessa apenas sua história.

Começou de novo a luta dos “gaviões”, mas dessa vez Luba tinha outro interesse: entrar para a sociedade. Casou-se com o pobretão Dorival Soares, herdeiro de um bom nome e de apreciáveis relações.

Um dia apareceu o marido, cheio de dedos, no meu escritório. (Esqueci-me de informar que sou detetive particular, mas não desses que anunciam: "O olhar de Lince", "O farol", e outras coisas. Fui bem educado, visto-me com esmero, freqüento lugares respeitáveis. Pouca gente conhece minha verdadeira profissão).

- Desconfiava Dorival que a mulher o traía; então, me contratou para esclarecer o caso. É desnecessário relatar os métodos que emprego, mas alguns dias depois eu conhecia a história da pomba-rola como a palma de minha mão. A gente pensa que uma mulher extraordinariamente bela, amada de todos os homens, tem prazer em alimentar paixões, mas não se apaixona por ninguém. Com Luba, pelo menos, não aconteceu assim. Perdeu-se de amores por um jovem bonitão, que trabalhava no interior. Vejam o que Luba chegou a fazer: alugou uma pequena chácara no começo da estrada de Lavínia, para se encontrar com o amante, que, dessa maneira, nem entrava na cidade.

Agora, o mais triste da história: Luba foi assassinada. Encontraram-na estrangulada no quarto da chácara, estendida na cama em desalinho. Os dedos do assassino ficaram marcados no pescoço níveo, assinalados em roxo, confundindo-se os polegares na garganta. De um lado havia uma escoriação acima da marca do mínimo e do anular e as duas outras manchas eram menos nítidas.

* * *

Quando o investigador abriu a porta de meu escritório, percebi que Dorival tinha dado com a língua nos dentes. Também não era para menos: haviam encontrado uma cigarreira de prata com as iniciais dele embaixo de um dos móveis do quarto. Além disso, as pontas de cigarro, de uso recente, depositadas nos cinzeiros, eram de duas marcas: "Lucky Strike", preferida por Luba, e "Continental", pelo marido. O negócio ficou preto para ele. E o extraordinário é que narrou à policia uma história comprometedora! Já vi criminosos fazerem coisas admiráveis: escondem a verdade, por exemplo, confessando uma versão perigosa, mas não suficientemente perigosa para levá-los à grade. Não sabia se esse era o caso de Dorival, mas o certo é que contou tudo à polícia: suas dúvidas quanto ao comportamento da mulher, o contrato que fez comigo, as informações por mim prestadas. Na noite do crime, segundo ele, Luba saiu às 8 horas, dizendo, apenas e como sempre, que ia jogar "pif-paf". Quando eu, pelo telefone, lhe comuniquei o endereço do ninho da pomba, Dorival pôs-se a matutar no que ia fazer. Nesse momento, chega ao apartamento Gregório Veletch, irmão e único parente de Luba, pois já lhe havia morrido o pai.

Esqueci-me de apresentar esse malandro. Fingia que trabalhava na fábrica de torneiras, mas, na verdade, vivia à custa da irmã.

Continuando, informou Dorival que pôs o cunhado a par da situação; envenenou-se a tal ponto com a própria narrativa que, de repente, abandonou o apartamento para acertar contas com a mulher, segundo declarou. Tomou o automóvel, rumou em direção à chácara, mas durante o trajeto esfriaram os propósitos do marido desonrado. Afirmou Dorival então que parou o carro nas imediações da chácara, no largo Ferreira de Sá, entrou num bar e lá ficou a beber para criar coragem. A coragem não passou dos primeiros vagidos, morrendo afogada no uísque. De lá voltou para casa, num meio pifão que o levou para a cama imediatamente.

Confirmei, no meu depoimento, as informações que prestara a Dorival, completando-as com os dados sobre o amante de Luba. Eu havia descoberto que se tratava de um engenheiro, Ernesto Azambuja, a quem o governo confiara parte das construções de uma usina em Iguatemi. Era o felizardo de quem Luba gostou de verdade. Morava em Caiapó com a família, ou melhor, com a esposa, que é completamente cega.

Certa noite, logo depois do casamento, Azambuja bebera demais numa festa. Apesar da insistência da esposa para que não guiasse o automóvel, ele teimou e acabou metendo o carro em cima de uma árvore; além de ter o rosto deformado, a mulher perdeu a vista no desastre.

Prenderam o pássaro no mesmo dia. Azambuja a princípio quis negar suas relações com Luba, mas em face de minhas informações sobre o automóvel, o lugar onde o colocava na chácara, os dias em que lá esteve ultimamente, o "Romeu" acabou entregando os pontos. É ocioso dizer: negou terminantemente a autoria do crime e declarou ter passado aquela noite no acampamento, na sua barraca.

Caso intrincado esse da morte de Luba. Sim, intrincado porque Gregório Veletch meteu-se nele também. O zelador do prédio informou que na noite do crime Gregório desceu do apartamento logo depois do cunhado, perguntou por ele, mas Dorival já havia ido. Explicou o irmão de Luba, ao depor, que não se impressionara com o planejado acerto de contas por parte do cunhado, pois já assistira a diversas brigas do casal. Informou, afinal, que saíra do prédio e perambulara pela cidade até entrar num cinema para assistir à última fita de Betty Grable (aliás, muito parecida com Luba).

Mas há cada uma neste mundo! Imaginem que naquela noite um operário andava pelos arredores da chácara, quando viu, escondido entre árvores, um automóvel abandonado, com as luzes traseiras acesas. Essa gente simples, em geral, é muito boa. Aproximou-se o rapaz do automóvel e desligou o contato, para que a bateria não se estragasse. Era o carro de Gregório Veletch. O operário reconheceu-o com segurança. Gregório negou de pé junto que o automóvel fosse o dele.

Procuro não falar em Luba, mas que vou fazer, se ela é o centro de toda esta história? Ela usava na noite em que morreu um vestido de linho azul que combinava com a cor de seus olhos. Sob o vestido, uma combinação branca, que chamou a atenção da polícia quando examinou o cadáver: estava vestida de trás para diante.

Sinto que me meti numa empresa difícil, esta de contar a história de Luba Veletch Luchesi Soares, mas agora vou até o fim.

Quando o mistério se instalou no caso, a policia recorreu ao velho Leite, especialista em deslindar enigmas criminais. Trata-se, sem dúvida, de uma autoridade excepcional, não só pelos dotes de argúcia e inteligência, como também porque sabe reconhecer o mérito alheio. É muito comum o pessoal da polícia desprezar e humilhar os detetives amadores ou particulares. A mim, por exemplo, chamam "Oito Dedos", estabelecendo, com perversidade, uma relação entre este honesto detetive e o célebre ladrão "Sete Dedos"!

Não é desses o velho Leite. Prestigia o trabalho da gente e às vezes, solicita com franqueza a nossa colaboração. Quando me telefonou, pedindo para passar na Delegacia, conclui que desejava trocar idéias sobre o caso de Luba. Dito e feito: a primeira coisa que perguntou foi a minha opinião, considerando os conhecimentos por mim adquiridos na investigação que fizera por conta de Dorival. Fiquei vaidoso, porque não confessar? Eu estava preparado para falar, pois meditara muito sobre o crime. Comecei logo a responder:

- Conhecidas as circunstâncias e as pessoas envolvidas num crime, se elas, por si sós, não proporcionam a solução ou não a proporcionam satisfatoriamente, deve o detetive consagrar a sua atenção ao exame dos motivos que poderiam ter levado cada suspeito a delinqüir. No nosso caso, por exemplo, Dorival tinha duplo interesse em sacrificar a esposa: vingava-se da traição e empolgava a fortuna. A Gregório interessava a morte da irmã, porém a herança só lhe chegaria às mãos se Dorival morresse também ou se ficasse impedido de herdar. O senhor sabe muito bem que ao marido, assassino da esposa, a lei nega o direito de receber a herança.

- E o motivo do amante, qual seria?

- Azambuja é o responsável pela cegueira da mulher. Por isso, desfaz-se em carinhos e cuidados com a esposa, procurando assim compensar a sua existência empobrecida e amenizar o próprio sentimento de culpa. Luba amava de verdade. Pela primeira vez, quem sabe. Era voluntariosa, até então tinha feito o que queria. Estava disposta a deixar Dorival para casar-se com Azambuja. Insistiu a princípio - exigiu depois - em que o amante procedesse da mesma forma e, por fim, ameaçou falar pessoalmente com a rival, a quem faltava o direito de prender um homem moço que gostava de outra mulher.

O velho Leite sorriu e disse com simpatia:

- Vai indo bem... continue.

- Pesam contra Dorival as provas colhidas no local do crime. O senhor há de concordar comigo que uma cigarreira de prata faz barulho quando cai ao chão e escorrega para debaixo de um móvel. Dorival teria notado. Mas que não notasse. É admissível que um homem dotado de mediana inteligência deixasse no cinzeiro, depois de cometer o crime, as pontas dos cigarros fumados por ele?

Assentindo com a cabeça, o delegado reconhecia a força do argumento. Prossegui:

- Vejamos, agora, o ponto central de nossos raciocínios. O fato de se ter encontrado a combinação de seda de trás para frente demonstra que alguém, pouco dado a esse mister, vestiu Luba. Uma mulher não se engana na prática desse gesto cotidiano. Se assim é, Luba estava nua quando foi assassinada. Vestiram-na depois. Não havia sinal de luta no quarto, podendo-se conseqüentemente supor que o criminoso lá se achava, num momento de intimidade com Luba. Isto exclui Gregório Veletch, mas não o afasta da cena: quando, à procura de Dorival, chegou ao quarto da chácara, Luba estava morta. Sentindo no bolso a cigarreira que o cunhado esquecera e que ele tentou entregar assim que desceu do apartamento, Gregório imaginou inculpar Dorival ou aumentar os indícios, caso fosse ele o assassino, largando no local a cigarreira, não sem antes fumar dois cigarros, abandonando as pontas no cinzeiro. Criminoso o cunhado, Gregório seria o herdeiro da fortuna.

- Admirável. Gregório, no novo depoimento, confessou exatamente isso.

- Restam Dorival e Azambuja. Jamais Dorival podia encontrar-se na situação do criminoso. Luba já não tinha mais interesse algum por ele, nem admitiria a sua presença na chácara. Não existe o menor indicio de violência ou de reação, como seria natural da parte de Luba se o marido surgisse inopinadamente pelo quarto adentro. O assassino gozava, naquele momento, da intimidade da vítima; passou de repente, do carinho para o estrangulamento. Somente Azambuja - Dr. Leite - poderia ter essa oportunidade e só ele tinha interesse em ocultar a nudez de Luba, presente que ela lhe dava com exclusividade, nos últimos tempos. O horror de que a amante fosse enfrentar a esposa cega levou Azambuja ao crime.

Eu me lembro até hoje. O velho Leite sorriu, movimentou-se na cadeira e falou com voz pausada:

- Meus parabéns, Luís Antonio, pela precisão dos raciocínios. Estou de pleno acordo com eles, exceto com a conclusão. E você tinha, como tem, todos os elementos para dar a solução absolutamente exata. Algumas vezes, um pormenor ilumina o mistério, desfazendo-o por inteiro.

Fez uma pausa e continuou:

- O criminoso deixou sua assinatura no pescoço de Luba. Com exceção dos polegares, confusamente marcados, as equimoses dos demais dedos são perfeitas, menos duas: a do indicador e a do médio da mão direita, mais raras e irregulares que as outras. Isso me faz crer, Luís Antonio, que o criminoso não tinha aqueles dois dedos. Notando, depois do crime, que deixara no corpo de Luba sua marca pessoal, o assassino imprimiu com os dedos da mão esquerda as equimoses complementares, mas sem a força e o jeito necessários para igualá-las, às outras manchas.

Olhei para as minhas mãos, como se não soubesse que, há dez anos, me faltam dois dedos da mão direita!

Luba, lindíssima Luba, vítima de minha paixão desvairada, vítima de minha chantagem, vitima de minhas mãos alucinadas contra a frieza com que resgatava o meu silêncio!

 Fonte:
Obras-Primas do Conto Policial

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