domingo, 19 de agosto de 2012

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (S. Tomé e Príncipe – 1. Lírica)

1.    LÍRICA

Em capítulo anterior assinalámos que Caetano da Costa Alegre, poeta oitocentista são-tomense, fora o primeiro, em todo o espaço africano de língua portuguesa, a dar ao tópico da cor um tratamento poético, embora numa visão marcadamente alienatória, constituindo-se como produtor de uma expressão de negrismo.

Curiosamente é também são-tomense o poeta que primeiro, em língua portuguesa, chamou a si a expressão da negritude. Trata-se de Francisco José Tenreiro (1921-1966), que irá assumir uma posição inversa à de Costa Alegre. Desalienado, liberto dos mitos da inferioridade social, identifica-se com a dor do homem negro e repõe-no no quadro que lhe cabe da sabedoria universal:

Mãos, mãos negras que em vós estou sentido!
Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a
[rosa-dos-ventos
mas que da terra, da árvore, da água e da música das nuvens beberam as palavras dos corás, dos quissanges e das timbila
[que é o mesmo dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em
[coração [103].

A sua voz é a voz real do homem africano, uma voz que vem das origens e ressoa no tempo: «cantando: nós não nascemos num dia sem sol!», e aí vamos com essa raça humilhada percorrendo a «estrada da escravatura», mas entretanto iluminada por «um rio» que «vem correndo e cantando/desde St. Louis e Mississipi.» (Obra poética de Francisco José Tenreiro, 1967, p. 100).

Poeta bivalente («Nasci do negro e do branco/e quem olhar para mim/é como que se olhasse/para um tabuleiro de xadrez») [104] na sua vocação para exprimir o mulato, que ele era, e o negro, que ele era, fundindo-se assim no poeta africano que ele foi, guinda-se à categoria de poeta da negritude de expressão portuguesa, e tão lucidamente que o surto da literatura angolana e moçambicana, que se impôs a partir de cinquenta, e muito lhe deve, o não teria ultrapassado na pertinência e na genuinidade dos temas.

Interessante notar que a estrutura externa da poesia de F. J. Tenreiro adquire características diferentes, consoante a substância manipulada: poemas longos de longos versos para a negritude, poemas curtos de curtos versos enquanto poeta mestiço:

Dona Jóia dona dona de lindo nome; tem um piano alemão desafinando de calor [105].

Ou então:

De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas
[de Guillén de coração em África com a impetuosidade viril de I too
[am American
de coração em África contigo amigo Joaquim [106] quando
[em versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade do [Congo de coração em África [107]

Há uma distância solar, como se vê, entre a humilhação da Costa Alegre e a glorificação dos valores culturais africanos por parte de Francisco Tenreiro que obviamente corresponde à amplitude consciencializadora que vai do século XIX ao século XX.

O discurso de Alda do Espírito Santo descreve-se entre o relato quotidiano da ilha, impregnado de alusões simbólicas de esperança, ou do registo de anseios de transparência política: «uma história bela para os homens de todas as terras/ciciando em coro, canções melodiosas/numa toada universal» 108 até ao clamor da revolta de um povo oprimido como em «Onde estão os homens caçados neste vento de loucura»:

Que fizeste do meu povo?...
Que respondeis?...
Onde está o meu povo?...
E eu respondo no silêncio
das vozes erguidas
clamando justiça...
Um a um, todos em fila...
Para vós, carrascos,
o perdão não tem nome [109].

O mesmo clamor da revolta percorre o discurso de Maria Manuela Margarido:

A noite sangra no mato,
ferida por uma lança de cólera [110].

A cólera. A revolta. Duas constantes que, associadas ao movimento dialéctico da vida que tudo destrói e reconstrói, trazem a esperança: «Na beira do mar, nas águas,/estão acesas a esperança/o movimento/a revolta/do homem social, do homem integral», e é ainda o verbo de Maria Manuela Margarido. Daí a certeza inscrita no devir histórico:

No céu perpassa a angústia austera
da revolta
com suas garras suas ânsias suas certezas.

Em meio da denúncia (do «cheiro da morte»), da acusação («eu te pergunto, Europa, eu te pergunto: AGORA?») [112] perpassa a certeza. Ou a esperança. Não mera esperança idealista. A esperança concretizada na dialéctica do real. Tomaz Medeiros:

Amanhã,
Quando as chuvas caírem, As folhas gritarem d'esperança Nos braços das árvores,
Irei
Desafiar os mais trágicos destinos,
à campa de Nhana, ressuscitar o meu amor.
Irei [113].

Poesia vinculada à sedimentação de uma consciência anticolonialista, mais do que a fala de cada poeta ela se consubstancia na voz colectiva do homem são-tomense. Mas não só poesia de signos, de símbolos, de imagística protestatária, aliás de descodificação facilitada. Não só poesia de anunciação e assunção. Não só. Poesia tocada pelo afago lírico das coisas da «Ilha Verde, rubra de sangue». As «palmeiras e cacoeiros», «o aroma dos mamoeiros», o «cajueiro»; as «modinhas da terra», os «murmúrios doces dos silêncios», «as canoas balouçando no mar», o «sòcòpé», os deuses e os mitos, «orações dos ocas», os «cazumbis».

Por derradeiro, Marcelo Veiga. Numa ordem cronológica Marcelo Veiga (1892-1976) deveria ter sido considerado logo após Costa Alegre. Marcelo Veiga, pequeno proprietário da ilha do Príncipe, estudou no liceu em Lisboa, aqui viveu por períodos intermitentes, foi amigo de Almada-Negreiros, Mário Eloy, Mário Domingues, José Monteiro de Castro, Hernâni Cidade. Passou despercebido até ao momento em que Alfredo Margarido o incluiu na antologia por ele organizada e publicada, da Casa dos Estudantes do Império, Poetas de S. Tomé e Prínrípe (1963). Ultimamente obtivemos alguns poemas seus, inéditos, datados a partir de 1920, cedidos pelo poeta, pouco antes de falecer na sua ilha. Ele dá, assim, antes de F. J. Tenreiro, o sinal do «regresso do homem negro», o sinal da negritude não só em S. Tomé e Príncipe como em toda a área africana da língua portuguesa: «África não é terra de ninguém,/De qualquer que sabe de onde vem, [...] A África é nossa!/É nossa! é nossa!» [114].

Eis, nítida e insofismável, a consciência da revolta:

Filhos! a pé! a pé! que éjá manhã!
Esta África em que quem quer dá co'o pé,
Esta negra África escarumba, olé!
Não a q'remos mais sob jugo de alguém,
Ela é nossa mãe! [115]

Irónico,   mordaz,   a   língua   destravada   e   rebelde, associada ao veneno lúcido da desafronta:

«Sou preto — o que ninguém escuta;
O que não tem socorro;
O — olá, tu rapaz!
O — ó meu merda! O cachorro!
O — ó seu filho da puta!
E outros mimos mais...[116]

Ou

O preto é bola, É pim-pam-pum! Vem um:
Zás! na cachola...
Outro — um chut — bum! [117]

A terminar, diríamos que a poesia de S. Tomé e Príncipe constitui uma expressão africana mais uniforme do que a de Moçambique ou mesmo de Angola, ainda considerando a franja de mestiçagem que a percorre. Construída apenas por negros ou mestiços, este punhado de poetas baliza a área temática no centro do universo da(s) sua(s) ilha(s) e organiza um signo cuja polissemia é de uma África violentada, inchada de cólera, a esperança feita revolta.
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Notas

103    Francisco José Tenreiro,  Obra poética de Francisco José Tenreiro, 1967, p. 90.

104    Idem, idem, p. 48.

105    Idem, idem, p. 120.

106    Trata-se  de Joaquim  Namorado.  Autor  do  poema «África», publicado n'0 Diabo, n.° 309, 24 de agosto de 1940, a primeira expressão literária duma visão dialéctica de África, enquanto   continente  explorado,  por  parte  de  um  poeta português que nunca viveu no continente africano.

107    Francisco José Tenreiro,  Obra poética de Francisco José Tenreiro, 1967, p. 11.

108    Alda do Espírito Santo, «Em torno da minha baía» in A. Margarido, Poetas de S. Tomé e Príncipe, 1963, p. 64. Tem como referência o massacre de Batepá ocorrido em S. Tomé, em fevereiro   de   1953,   sendo   governador   o   tenente-coronel Gorgulho.

109    Idem, «Onde estão os homens caçados neste vento de loucura», idem, pp. 65-66.

110    Maria Manuela Margarido, «Roça» in A. Margarido, Poetas de S. Tomé e Príncipe, 1963, p. 81.

111    Idem, «Paisagem», idem, p. 81.

112    Tomaz Medeiros, «Meu canto Europa» in A. Margarido, Poetas de S. Tomé e Príncipe, 1963, p. 76.

113    Idem, «Caminhos» in «Cultura» (II), n.°s 9-10. Luanda, dezembro de 1959.

114    Marcelo Veiga, «África é nossa» in M. Ferreira No reino de Caliban, 2.° vol., 1976, pp. 466-467.

115    Idem, idem, p. 466.

116    Idem, «Regresso do homem negro» in A. Margarido, Poetas de S. Tomé e Príncipe, 1964, p. 87.

117    Idem, «A João Santa Rosa», idem, p. 89.


Continua…

Fonte:
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I Biblioteca Breve / Volume 6 – Instituto de Cultura Portuguesa – Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica – 1. edição — Portugal: Livraria Bertrand, Maio de 1977

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