Varando a névoa do anoitecer, o vulto de um homem bastante esguio, montado num mulo e acompanhado de um vira-latas adentrou a Grande Porteira, para, lentamente, vir na nossa direção, com a montaria trotando e ziguezagueando entre os corpos das reses que rotineiramente pernoitavam no grande pátio da fazenda Engenho Novo.
Se, naquela tarde-noite, fosse outra a minha idade e outros os meus conhecimentos, eu teria certamente fantasiado o cavaleiro, como o faço atualmente, mais de seis décadas depois, quando sua figura me invade a memória com um elmo na cabeça, armadura cobrindo-lhe o corpo e uma longa lança numa das mãos, montado num rocinante, e emparelhado com um cachorro bem pançudo. Mas estas imaginações de agora não devem emoldurar um quadro real, que, vindo de tão longe, ficou-me dependurado neste meu brumoso e exorcizante memorial. Entretanto, ainda que tentando ser fiel à realidade, retomo, nas descendentes linhas, a minha narrativa, sem ser também demasiadamente avesso à ficção.
Após vários "Quem será?...", "Será algum conhecido?...", "Será que vem pedir para pousar?...", além de outras cogitações da platéia que o aguardava, o viajante, já a uns cinco metros do casarão, puxou o freio da montaria e, do alto da sela e de uma fidalguia incomum, estranha mesmo naquele sertão, indagou: "É com o Coronel Totonho que tenho a satisfação de falar?...".
- Às suas ordens!... - respondeu meu pai, que, juntamente com o nosso capataz e alguns dos agregados, já se posicionara para a recepção.
- Martinho Lobo Penteado, seu criado!... - apresentou-se o desconhecido.
- Obrigado!... Vamos apear, seu moço!...
Só após o convite do meu pai, o homem pisou o chão e tirou o chapéu, não só para reverências não menos incomuns, mas também para as necessárias preocupações com o seu cachorro, o "Leão", que já estava tendo dos nossos três fiéis cães uma recepção de rosnados e ranger de dentes.
Curta foi a prosa ali no pátio, tendo o senhor Martinho, com gestos e palavras que lhe davam credenciais de pessoa educada e respeitável, recusado aceitar qualquer alimento ou mesmo a água que lhe foram oferecidos, já que se dizia bem abastecido de matula e de provisão de líquidos.
Cerca de meia hora depois, o Sr. Martinho Lobo Penteado e seu cão já estavam acomodados num galpão que ficava no lado direito da nossa casa, e que proporcionava, em redes, sono para alguns agregados da nossa fazenda e para rudes viajantes que, com certa freqüência, nos pediam uma pousada. Naquela noite, o Sr. Martinho Lobo Penteado, pelos seus requintados modos, pela seriedade e serenidade, e até mesmo pela impostação com que declinava o seu nome, era uma raríssima exceção na nossa fazenda - um nobre pernoitando numa rústica estalagem.
Recomposta a nossa platéia, o inesperado visitante, cujo nome tinha curiosa sonoridade, transformou-se no tema do resto das conversações daquela noite. "Martinho Lobo Penteado, seu criado!... O Lobo e o Leão!... Não é engraçado?!..." - comentou meu pai, sorrindo e adivinhando a jocosidade que aquela apresentação havia provocado em praticamente todos os que, liderados por ele, compunham a rotineira assembléia vespertina da fazenda, na calçada do casarão.
No dia seguinte, logo cedo, o Sr. Martinho Lobo Penteado, depois de esclarecer que, vindo do norte do estado, estava indo para a Capital, resolveu deixar conosco o Leão, com o compromisso de recambiá-lo quando estivesse em viagem de volta, que deveria ocorrer dentro de poucas semanas.
E "Martinho Lobo Penteado, seu criado..." ficou como expressão jocosa não só na noite da sua chegada, mas também durante muito tempo, uma vez que muito tempo se passou sem que o Sr. Martinho sequer desse quaisquer notícias suas. Tanto tempo que, quando dele se lembravam, durante os soturnos bate-papos, na porta do casarão, quase que o transformavam num personagem meio mítico, de origem e destino nebulosos, uma vez que nem meu pai nem os agregados da fazenda se lembravam da cidade de onde ele viera, nem punham muita fé naquela história de estar indo para a Capital, a negócios.
Tanto tempo que, aos poucos, eu e meus irmãos fomos esquecendo as nossas zombarias e as tentativas de nos apelidarmos de "Martinho Lobo Penteado, seu criado". Tanto tempo que o Leão se apegou à nossa família, enturmou-se com os nossos cachorros, engordou, e passou a fazer parte das nossas vidas.
E assim foi até que, num entardecer não muito nebuloso, um cavaleiro no dorso de um belo corcel surgiu lá na porteira de entrada do grande pátio da fazenda, para provocar mais uma rodada daqueles "Quem será?...", "Será algum conhecido?...", indagações estas que foram prematuramente interrompidas porque, quando o forasteiro estava a uns trinta metros do casarão, um dos nossos cachorros ergueu-se e correu em sua direção abanando prazerosamente a cauda.
– É o seu Martinho!... Como é que pode?... Fazendo mais de dois anos e o cachorro já farejou ele... – exclamou o nosso capataz.
– E você já viu um Leão esquecer um Lobo?... Ainda mais quando os dois se dão muito bem um com o outro!... Mesmo que fossem dez anos, o Leão estaria com o suor do Lobo nas ventas...
– Isso é verdade, patrão!... – asseverou o capataz.
Nessa noite, quando eu e meus dois irmãos mais velhos fomos dormir, levamos o Sr. Martinho para o nosso quarto, pelo menos durante o tempo que durou nossos protestos contra ele, que, nas nossas cogitações, cometeria uma grande ingratidão se quisesse reaver o Leão, depois de tão longa temporada de hospedagem e dos bons tratos que demos ao cachorro. Antes do mergulho no sono, ainda ouvi um dos meus irmãos afirmar: "Se ele quiser mesmo levar o cachorro, o papai devia cobrar dele um dinheirão".
No dia seguinte, cedo, depois de mais um pernoite na nossa fazenda, o Sr. Martinho Lobo Penteado manteve, com o meu pai e o capataz, próximo do casarão, longa e meio sussurrada cerimônia de despedida e de uma certa negociação a que eu e meus irmãos assistíamos de longe, muito apreensivos, aguçando os ouvidos e captando apenas algumas palavras. O esquálido mulo, da primeira visita, fora substituído por um belo cavalo de ancas robustas, apetrechado com arreio novo e sofisticado, testemunhando que a capital do estado havia sido, naqueles dois anos, praça de bons negócios para aquele homem cujo reaparecimento não mais esperávamos, muito menos desejávamos. Mas, se ele, pronto para retornar às suas origens no norte do estado, confabulava com meu pai e o capataz, eu, meus irmãos e os nossos cachorros, inclusive o Leão, éramos apenas uma platéia agitada e ansiosa, à espera de uma decisão, que acabou chegando pela voz do Sr. Martinho, propositadamente alteada:
– Os senhores querem saber de uma coisa?... Ele é quem vai decidir!...
Após renovados agradecimentos e repetidas reverências, o Sr. Martinho, já com as rédeas nas mãos, ficou, por alguns instantes, do alto do seu trono e da sua fidalguia, a olhar para o Leão, lançando-lhe o anunciado desafio.
Como ansiosos espectadores, mais sentimos do que vimos o cão a olhar, com um ganido sofredor, ora para o seu antigo dono, ora para nós. Entretanto, o Sr. Martinho não lhe concedeu muito tempo. Manobrando as rédeas, fez com que sua montaria se virasse e saísse trotando em direção à Grande Porteira. Na verdade, ele, não o cachorro, acabava de tomar a decisão. E definitivamente o cão ficaria e ele se iria...
Fonte:
O Conto Brasileiro Hoje – vol. II.
Se, naquela tarde-noite, fosse outra a minha idade e outros os meus conhecimentos, eu teria certamente fantasiado o cavaleiro, como o faço atualmente, mais de seis décadas depois, quando sua figura me invade a memória com um elmo na cabeça, armadura cobrindo-lhe o corpo e uma longa lança numa das mãos, montado num rocinante, e emparelhado com um cachorro bem pançudo. Mas estas imaginações de agora não devem emoldurar um quadro real, que, vindo de tão longe, ficou-me dependurado neste meu brumoso e exorcizante memorial. Entretanto, ainda que tentando ser fiel à realidade, retomo, nas descendentes linhas, a minha narrativa, sem ser também demasiadamente avesso à ficção.
Após vários "Quem será?...", "Será algum conhecido?...", "Será que vem pedir para pousar?...", além de outras cogitações da platéia que o aguardava, o viajante, já a uns cinco metros do casarão, puxou o freio da montaria e, do alto da sela e de uma fidalguia incomum, estranha mesmo naquele sertão, indagou: "É com o Coronel Totonho que tenho a satisfação de falar?...".
- Às suas ordens!... - respondeu meu pai, que, juntamente com o nosso capataz e alguns dos agregados, já se posicionara para a recepção.
- Martinho Lobo Penteado, seu criado!... - apresentou-se o desconhecido.
- Obrigado!... Vamos apear, seu moço!...
Só após o convite do meu pai, o homem pisou o chão e tirou o chapéu, não só para reverências não menos incomuns, mas também para as necessárias preocupações com o seu cachorro, o "Leão", que já estava tendo dos nossos três fiéis cães uma recepção de rosnados e ranger de dentes.
Curta foi a prosa ali no pátio, tendo o senhor Martinho, com gestos e palavras que lhe davam credenciais de pessoa educada e respeitável, recusado aceitar qualquer alimento ou mesmo a água que lhe foram oferecidos, já que se dizia bem abastecido de matula e de provisão de líquidos.
Cerca de meia hora depois, o Sr. Martinho Lobo Penteado e seu cão já estavam acomodados num galpão que ficava no lado direito da nossa casa, e que proporcionava, em redes, sono para alguns agregados da nossa fazenda e para rudes viajantes que, com certa freqüência, nos pediam uma pousada. Naquela noite, o Sr. Martinho Lobo Penteado, pelos seus requintados modos, pela seriedade e serenidade, e até mesmo pela impostação com que declinava o seu nome, era uma raríssima exceção na nossa fazenda - um nobre pernoitando numa rústica estalagem.
Recomposta a nossa platéia, o inesperado visitante, cujo nome tinha curiosa sonoridade, transformou-se no tema do resto das conversações daquela noite. "Martinho Lobo Penteado, seu criado!... O Lobo e o Leão!... Não é engraçado?!..." - comentou meu pai, sorrindo e adivinhando a jocosidade que aquela apresentação havia provocado em praticamente todos os que, liderados por ele, compunham a rotineira assembléia vespertina da fazenda, na calçada do casarão.
No dia seguinte, logo cedo, o Sr. Martinho Lobo Penteado, depois de esclarecer que, vindo do norte do estado, estava indo para a Capital, resolveu deixar conosco o Leão, com o compromisso de recambiá-lo quando estivesse em viagem de volta, que deveria ocorrer dentro de poucas semanas.
E "Martinho Lobo Penteado, seu criado..." ficou como expressão jocosa não só na noite da sua chegada, mas também durante muito tempo, uma vez que muito tempo se passou sem que o Sr. Martinho sequer desse quaisquer notícias suas. Tanto tempo que, quando dele se lembravam, durante os soturnos bate-papos, na porta do casarão, quase que o transformavam num personagem meio mítico, de origem e destino nebulosos, uma vez que nem meu pai nem os agregados da fazenda se lembravam da cidade de onde ele viera, nem punham muita fé naquela história de estar indo para a Capital, a negócios.
Tanto tempo que, aos poucos, eu e meus irmãos fomos esquecendo as nossas zombarias e as tentativas de nos apelidarmos de "Martinho Lobo Penteado, seu criado". Tanto tempo que o Leão se apegou à nossa família, enturmou-se com os nossos cachorros, engordou, e passou a fazer parte das nossas vidas.
E assim foi até que, num entardecer não muito nebuloso, um cavaleiro no dorso de um belo corcel surgiu lá na porteira de entrada do grande pátio da fazenda, para provocar mais uma rodada daqueles "Quem será?...", "Será algum conhecido?...", indagações estas que foram prematuramente interrompidas porque, quando o forasteiro estava a uns trinta metros do casarão, um dos nossos cachorros ergueu-se e correu em sua direção abanando prazerosamente a cauda.
– É o seu Martinho!... Como é que pode?... Fazendo mais de dois anos e o cachorro já farejou ele... – exclamou o nosso capataz.
– E você já viu um Leão esquecer um Lobo?... Ainda mais quando os dois se dão muito bem um com o outro!... Mesmo que fossem dez anos, o Leão estaria com o suor do Lobo nas ventas...
– Isso é verdade, patrão!... – asseverou o capataz.
Nessa noite, quando eu e meus dois irmãos mais velhos fomos dormir, levamos o Sr. Martinho para o nosso quarto, pelo menos durante o tempo que durou nossos protestos contra ele, que, nas nossas cogitações, cometeria uma grande ingratidão se quisesse reaver o Leão, depois de tão longa temporada de hospedagem e dos bons tratos que demos ao cachorro. Antes do mergulho no sono, ainda ouvi um dos meus irmãos afirmar: "Se ele quiser mesmo levar o cachorro, o papai devia cobrar dele um dinheirão".
No dia seguinte, cedo, depois de mais um pernoite na nossa fazenda, o Sr. Martinho Lobo Penteado manteve, com o meu pai e o capataz, próximo do casarão, longa e meio sussurrada cerimônia de despedida e de uma certa negociação a que eu e meus irmãos assistíamos de longe, muito apreensivos, aguçando os ouvidos e captando apenas algumas palavras. O esquálido mulo, da primeira visita, fora substituído por um belo cavalo de ancas robustas, apetrechado com arreio novo e sofisticado, testemunhando que a capital do estado havia sido, naqueles dois anos, praça de bons negócios para aquele homem cujo reaparecimento não mais esperávamos, muito menos desejávamos. Mas, se ele, pronto para retornar às suas origens no norte do estado, confabulava com meu pai e o capataz, eu, meus irmãos e os nossos cachorros, inclusive o Leão, éramos apenas uma platéia agitada e ansiosa, à espera de uma decisão, que acabou chegando pela voz do Sr. Martinho, propositadamente alteada:
– Os senhores querem saber de uma coisa?... Ele é quem vai decidir!...
Após renovados agradecimentos e repetidas reverências, o Sr. Martinho, já com as rédeas nas mãos, ficou, por alguns instantes, do alto do seu trono e da sua fidalguia, a olhar para o Leão, lançando-lhe o anunciado desafio.
Como ansiosos espectadores, mais sentimos do que vimos o cão a olhar, com um ganido sofredor, ora para o seu antigo dono, ora para nós. Entretanto, o Sr. Martinho não lhe concedeu muito tempo. Manobrando as rédeas, fez com que sua montaria se virasse e saísse trotando em direção à Grande Porteira. Na verdade, ele, não o cachorro, acabava de tomar a decisão. E definitivamente o cão ficaria e ele se iria...
Fonte:
O Conto Brasileiro Hoje – vol. II.
Nenhum comentário:
Postar um comentário