sábado, 4 de fevereiro de 2012

Trova 217 - Francisco José Pessoa (CE)

J. G. de Araújo Jorge (As Seis Faces da Mulher)


Uma vez, numa entrevista, quiseram saber qual era, para mim,a mulher ideal. Fisicamente? Não, o jornalista queria saber mais, referia-se ao espírito, a alma, a personalidade. Se a pergunta se cingisse ao físico, eu não resistiria a tentação de roubar alguns versos de Vinícius, da sua "Receita de Mulher". Só alguns, esta claro. Mas acrescentaria outros. Vinícius não se refere, por exemplo, aos cabelos. E para mim, mais que os, olhos, que os lábios, os cabelos são um elemento de importância definitiva. Não emolduram apenas o rosto, os olhos, os lábios, mas toda a mulher. Dão-lhe um toque de graça especial.

Naturalmente tem que ser leves, finos, soltos, para que o vento brinque de poesia com eles. Já perguntei num poema:

"A visão do teu pescoço branco, velado como um templo,
pelo véu de teus cabelos louros, que eu descubro
nos delírios de minha fantasia:
Ah! não será isto poesia?"

E num outro:

"Gosto de encher as mãos com os teus cabelos
como um lavrador a recolher, feliz
as louras messes de uma farta colheita."

Não importa, entretanto, a cor, o tom que apresentem: podem fazer noite, tarde ou manhã, virem carregados de sombra ou de sol.

" Quando em teus cabelos louros
ou negros
mergulho o rosto,
parece
que faz sempre sol-posto
que a noite mansamente nos meus olhos desce!"

Importa é que sejam bastos, esvoaçantes como gazes, como painas, como sonhos. Em matéria de mulher sou contra qualquer racionamento. Subscreveria, em que pese a minha vocação socialista, aquele verso de Vinícius:

". . . E que existe um grande latifúndio dorsal."

Também já confessara:

"Gosto de tuas costas (como um arco, flexível)
que se alargam em duas luas imensas, geminadas."

Mas estas respostas não serviriam a pergunta do entrevistador.
Qual a mulher ideal, para mim?

Lembro-me de que respondi que ideal é sempre a mulher que a gente gosta,
e que nos compreende. Mas pensei depois no assunto, e nasceu o poema. A mulher ideal, única, tem seis faces. Seis faces que a tornam múltipla, e infinita, para a nossa vida, a nossa ternura, o nosso amor. Na realidade, há todas as mulheres, na mulher que a gente ama. Disse isto no poema:

" As Seis Faces... "

Quando te encontro e observo que ficaste mais linda
e soltaste os cabelos para me agradar,
e me entregas os lábios num beijo leve e morno como a aragem,
e tranças os teus dedos em meus dedos, e me olhas
como no dia em que te tirei para dançar pela primeira vez,
é que percebo que continuas
a namorada.

Quando te preocupas com o tempo porque vou sair,
e recomendas detalhes como se me visse criança,
e repreendes a minha falta depois que as visitas se foram,
e endireitas a minha gravata, e escolhes a minha camisa,
e me fazes trocar os sapatos que não combinam;

quando surpreende o meu cansaço, e me enlaças,
e recosta a minha cabeça em teu colo,
e me dás conselhos como se eu pudesse segui-los,
é que descubro que há em ti, para mim, até mesmo
um pouco de mãe.

Quando te consomes muito mais com as minhas preocupações
e advinhas meus pensamentos, me prevines contra falsos amigos,
e te empenhas em partilhar também minha luta;

e economizas, como se com isso poupasses minhas forças,
e, sem querer, com uma palavra, desvendas uma solução
tão próxima e tão evidente, mas que meus olhos não percebiam;
quando à noite , na sombra, sem tocarmos os corpos,
conversamos, esquecidos, como dois amigos numa encruzilhada,
é que compreendo que tu és
a companheira.

Quando chego, e ao abrir a porta, estás à espera
com tua felicidade que me envolve e me aconchega,
e tirar da minha mão a pesada pasta de couro,
e me entregas os lábios (úmidos e trêmulos);

quando te encontro depois, em todos os detalhes cotidianos
e prosaicos, que fazem o melhor da vida:
minha toalha de banho no lugar; meus chinelos no seu canto;
minha roupa limpa sobre a cama; aquela jarra com flores arrumada;
aquela mesa posta, com seus talheres brilhando;
aquele odor de refeição que é o perfume do lar;
quando te vejo, leve e diligente, a circular pela casa
que consideras teu Reino, teu Mundo, teu Universo;
sei que tu és então
a esposa.

Quando à noite, de tarde, ou de manhã, (é um momento imprevisto
e nunca marcado) sinto que precisas de mim, que te faço falta,
como do ar, ou da água, de alimento, ou de vida,
e te encontro ao meu lado sempre irrevelada, e te dispo,
e se desencontraram as mãos e nossos corpos
e subitamente nos jogamos, como banhistas
contra o mar, contra as ondas, o mar desconhecido
as ondas que afogam e arrastam,
e de súbito estamos salvos na areia, como náufragos, és
a amante.

Quando te encontro ao meu lado, deitada numa nuvem
a acompanhar outras nuvens preguiçosas e itinenrantes
no céu do coração;

quando te pões a falar como crianças nas brincadeiras
em diminutivos, em “faz-de-contas” de pura imaginação,
e de ti restou apenas o contato dos nossos corpos, que
permaneceu em nós
entretanto distante, imaterial, a planar
como aquela gaivota na vaga luz da tarde que se esvai;
quando estirados na areia, cansados, mas felizes,
já podemos conversar, eu diria nesta hora que tu és
simplesmente
a irmã.

Quando penso em ti, e te sei tantas, no milagre da multiplicação
do amor,
recolho-me a ti, como pássaro às ramagens, onde encontra
a sombra, o ninho, o balanço, o fruto, - o impulso
para o vôo.

E amo, e trabalho, e sonho, e canto.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Qorpo Santo (Eu sou a Vida; eu não sou a Morte)


Personagens
Lindo
Linda
Rapaz
Manuelinha, filha de Linda

ATO PRIMEIRO

Lindo e Linda

Linda (cantando) —
Se não tiveres cuidado,
Algum Cão danado
Te há de matar;
Te há d'estraçalhar!

Lindo —
Eu sou vida;
Eu não sou morte!
E esta minha sorte;
É esta minha lida!

Linda —
Ind'assim, toma sentido!
Vê que é tudo fingido;
Não creias algum louvor:
Sabei: — Te trará dor!d

Lindo —
Se desrespeitará
A vida minha?
A desse, asinha,
— Ao ar voará!

Linda —
Não te fies, meu Lindinho,
Dos que te fazem carinho,
Crê que te devoram
Os lobos; e não coram!

Lindo —
Sabei, ó Lindinha:
Os que me maltratam
A si se matam:
Tu ouve; Anjinha!?

Linda — Meu Lindo, tu sabes quanto te amo! Quanto te adoro! Sim, meu querido amigo, quem melhor conhece do que tu o amor que neste peito mortal, mas animado por esta alma (pondo a mão na testa) imortal, te consagro!? Ninguém, certamente.
(Pegando-lhe na mão.) Adoças-me pois sempre com tuas palavras; com teus afetos; com teu amor ainda que fingido! Sim, meu querido amigo, bafeja-me sempre com o aroma de tuas palavras; com o perfume de tuas expressões! Sim, meu querido, lembra-te que hei sido baixel, sempre batido das tempestades, que por cinco ou seis vezes quase há soçobrado; mas que por graça Divina ainda viaja nos mares tempestuosos da vida!

Lindo — Ah! Minha adorada prenda, tu que foste a oferenda que me fez o Criador, em dias do mais belo amor, que pedes? Como pedes àquele que tanto te ama; mais que à própria cama?

Linda — Há! Há! Há! Meu queridinho; quanto me deste; quanto me felicitaste com as maviosas expressões desses teus bofes, ou pulmões — envoltórios dos corações!

Lindo — Estimo muito. E eu não sabia que tu tinhas o dom de adivinhar que sempre que vou apalpar, sinto bater neste peito — pancadas de ambos os lados; isto é, do esquerdo e direito. O que por certo convence que neste vácuo estreito abrigo dois grãos corações.

Linda — Há! Há! Há! Eu não digo (à parte) que este figo me foi enviado por cão danado? Quer me fazer crer que tem dois corações. (A ele:) Amiguinho, ainda não sabes de uma cousa. Queres saber? Eu vô-la digo Hem? Não responde!

Lindo — O que é; o que é, então!!?

Linda — Ora o que há de ser! Ê que tu tens dois corações dentro do peito, eu tenho duas cabeças por fora dos largos seios.

Lindo — Tu és o diabo! Ninguém pode contigo! És tripa que nunca se enche, por mais que dentro se lhe bote. És vasilha que não chocalha. És... o que eu não quero dizer, porque não quero que se saiba.

Linda — Pois já que me fazes comparações tão sublimes, eu também vou te fazer uma de que muito te deves agradar. Sabes qual é, não? Pois eu te digo: és o diabo em figura de homem! És... és... (atirando com as mãos e caminhando de um para outro lado) és... és! És! E então, que mais queres!? Quero comparações mais bonitas; mais finas; delicadas; e elevadas; ao contrário, ficaremos — figadais inimigos. Tem entendido, Sr. Sultãozinho? Pois se não tiver entendido, entenda!

Lindo — Bem. Vou fazer-lhe as mais mimosas que à minha imaginação abundante, crescente, e algumas vezes até demente — ocorrem! Lá vai uma: A Sra. é pêra que não se come!

Linda — Essa não presta!

Lindo — (batendo na testa) É preciso arrancar desta cabeça, ainda que seja com — algum gancho de ferro – uma comparação que satisfaça a esta mulher; ao contrário é capaz de...

Linda — E não se demore muito com as suas reflexões! Quero a comédia.

Lindo — Qual comédia, nem comédia! O que me comprometi a fazer-lhe foi comparação bonita; e não comédia. Espere, portanto. (Torna a bater na cabeça, mais no crânio. À parte:) Já que da testa não sai, vejamos se tiro do crânio! Ah! Sim; agora aparece uma; e que bela; que interessante; que agradável; que bonita; que delicada; que mimosa — é a comparação que vou fazer da Sra. D. Linda! Mesmo tão linda como ela! Tão formosa, como a flor mais mimosa! Tão rica, como a jorrosa bica! Tão fina, como a ignota si na! Tão... tão... tão... Quer mais? Quer melhor? Não lhe dou; não lhe faço; não quero! (A correr em roda dela:) Não lhe dou; não lhe faço; não lhe dou; não lhe faço; não quero; não posso; já disse. (Repete duas vezes esta última negativa.)

Linda — Este menino é o diabinho em figura humana! Dança, salta, pula, brinca... Faz o diabo! Sim, se não é o diabo em pessoa, há ocasiões em que parece o demônio; enfim, o que terá ele naquela cabeça!? (Lindo medita em pé e com uma mão encostada no rosto.) Pensa horas inteiras, e nada diz! Fala como o mais falador, e nada expressa! Come como um cavador, e nada obra! Enfim, é o ente mais extraordinário que meus olhos têm visto, que minhas mãos têm apalpado, que meu coração tem amado!

Lindo — Senhora: vou me embora (Voltando-se rapidamente para ela, com aspecto muito triste, e salpicado de indignação:) Vou; vou, sim! Não a quero mais ver; não sou mais seu!

Linda — (com sentimento) Cruel! Tirano! Suíço! Lagarto! Bicho feio! Mau! Onde queres ir? Por que não te casas, inda que seja com uma negra quitandeira?

Lindo — Também eu direi; Cruel! Ingrata! Má! Feia! Por que não te ligas ainda que seja a um preto cangueiro?

(Entra um rapaz todo paramentado, bengala, óculos, etc.)

O Rapaz — (para um, e depois para a outra) Vivam, madamas; mais que todos!

Lindo — (pondo-lhe as mãos, e empurrando) O que quer pois aqui!? Não sabe que esta mulher é minha esposa!?

O Rapaz — Dispense, eu não sabia! (Voltando-se para Linda:) Mas Sra., parece-me...

Linda — O que mais?! Não ouviu já ele dizer que sou mulher dele!? O que mais quer agora? Agora fique solteiro, e vá casar com uma enxada! Não quer acreditar que não há direito; que ninguém faz caso de papéis borrados; que isso são letras mortas; que o que serve, o que vale, o que dá direito – é a aquisição da mulher!?
Que quem se pega com uma, essa tem, e tudo o que lhe pertence! Sofra agora no isolamento, e na obscuridade! Seja solitário! Viva para Deus! Ou meta-se num convento, se quiser companhia. Não vá mais à reunião de outros homens.

O Rapaz (muito admirado) Esta mulher está doida! Casou comigo o ano passado, foram padrinhos Trico e Trica; e agora fala esta linguagem! Está; está! Não tem dúvida!

Lindo — Já lhe disse (muito formalizado) que fiz esta conquista! Agora o que quer?! Conquistei — é minha! Foi meu gosto: portanto, safe-se, senão o mato com este estoque!

(Pega em uma bengala e arranca um palmo de ferro.)

Linda — Não precisa tanto, Lindo! Deixai-o cá comigo... Eu basto para nos deixar tranqüilos!

O Rapaz — O Sr. tem estoque, pois eu tenho punhal e revólver! (Mete a mão na algibeira da calça, puxa e aponta um revólver.) Agora, de duas uma: ou Linda é minha, e triunfa o Direito, a Natureza, a Religião ou é tua, e vence a barbaria, a natureza em seu estado brutal, e a irreligião!

Linda — (para o rapaz) Mas eu o não quero mais; já o mandei para o leilão três vezes! Já o vendi em particular quinze! Já o aluguei oito! E já o libertei, seguramente por dez vezes! Não quero nem vê-lo, quanto mais tê-lo!

(O rapaz, gaguejando, querendo falar, e sem poder.)

Linda — Até a voz de sabiá, lhe tiraram! Até o canto de gaturama, lhe roubaram! E ainda quer se meter comigo!

O Rapaz — (fazendo trinta mil caretas para falar, e sem poder; ultimamente, desprende as seguintes palavras:) Ah! Mulher! Mulher! Diabo! Diabo! (Atira-se a ela, o revólver cai no chão; passa a derramar lágrimas, com os braços nos ombros dela, por espaço de cinco minutos.)

Lindo (querendo levantar o revólver, que estava perto do pé do rapaz; este dá-lhe um coice na cara.) — Safa! Pensei que a mulher já o tinha matado com o abraço, metendo-lhe nas entranhas todo o veneno da mais venenosa cascavel; e ele ainda dá ares de vida, e de força, pregando-me na cara a estampa de seus finos pés! — um morto que vive! Bem dizia certo médico que era capaz de conservar vivo um cavalo depois de morto, por espaço de oito meses, sempre a andar; e creio que até a rinchar!
— Demo! (Atirando com a bengala.) Não quero mais armas!

O Rapaz e Linda — (desprendem-se dos braços um do outro; desce então uma espécie de véu, de nuvens, sobre os dois. Lindo quer abrigar-se também, e não pode: chora; lamenta; pragueja. Levanta-se rapidamente a nuvem, torna a descer sobre os três; mas separando aquele. Ouve-se de repente uma grande trovoada; vêem-se relâmpagos; todos tremem, querem fugir, não podem. Gritam:) Punição Divina! (E caem prostrados de joelhos.)

SEGUNDO ATO

Cena Primeira

(Uma jovem vestida de negro com uma menina por diante. Atravessa um cavalheiro.)

A Jovem — (para este) Senhor! Senhor! Por quem sois, dizei-me onde está o meu marido, ou meu esposo, o meu amigo! (O cavalheiro embuçado numa capa desembuçando-se) Esquecestes que ainda ontem aqui o assassinastes com os horrores de tuas crueldades!?

Ele — Mulher! tu me conheces! Sabes quem sou, ou não sabes? (À parte:) Pérfida, cruel, ingrata! Vê seu marido diante de si, e apresenta-se a ele vestida de negro, luto que botou por sua morte.

Ela — (afastando-o com as mãos, como querendo fugir) Quem sois vós, ingrato, que assim me falais!?

Ele — Ainda perguntas. (Sacudindo a cabeça.) Ainda respondes. Quem sou eu? Desconheces o Lindo, teu afetuoso consorte, e ainda perguntas?!

Ela — Tirano! Foge de minha presença! Desprezaste os meus conselhos, não quiseste ouvir-me, e queixas-te. Bárbaro! Cruel! Eu não te disse que te não fiasses de pessoa Alguma! Por que te fiaste!?

Ele — E tu, Maga Circe: para que me iludiste! Para que me disseste que eras solteira, quando é certo eras casada com o mais belo rapaz!?

Ela — Eu... eu... não disse: mas você... não ignorava; bem sabia que eu era mulher de seu primo! Ignorava? Penso que não! Para que me botou fora! Para que me procurou?

Ele — Não sei onde estou, não sei onde me acho, não sei o que faça. Esta mulher (atirando-se, como para agarrá-la) é o demo em pessoa; é o ente mais admirável que eu tenho conhecido! É capaz de tudo! Já não digo de revolucionar uma província, de pôr em armas e mesmo de destruir um Império! Mas de revolucionar o mundo, de fazer, de converter os grãos em terras e as terras em águas; de, se tal tentasse, fazer do globo que habitamos — peteca!

Ela — É muito exagerado. Que atrevido conceito de mim forma! Que audácia! Nem ao menos quer ver que fala diante de uma filha de nove a dez anos!

Ele — Que fazeis por estas paragens, onde não vos é mais dado vir, porque já vos não pertencem?!

Ela — (com ar satírico e mordaz) Procuro-vos, cruel.

Ele — Sim: procuras-me para de novo cravar-me o punhal da traição! És bem má...és muito má!

A Menina — Papai! (Aproximando-se dele.) Que tem? Está doente? Me conte: — o que lhe aconteceu? O que foi? Diga, papai) diga, diga! Eu o curo, se estiver doente. E se não estiver, a Mamãe há de curar!

Ele — (tomando a menina nos braços; abraçando-a e beijando-a) Minha querida filha! Quanto adoçam a minha existência tuas ternas e maravilhosas palavras! Quanto transformam os furores de meu coração, as doçuras de tuas meigas expressões. [Para ambas:] Quanto apraz-me ver-vos! [Para a menina:] Ah! Sim! Tu és o fruto de um amor.. . Sim, és! Tua mãe, sem que eu soubesse, depois casou; procurou juntar-se a mim... iludia-me! Mas, querida filha, sinto uma dor neste peito.
(Desprendendo-se da filha.)
Este coração parece traspassado de dor. Esta alma, repassada de amargura. Este corpo, um composto de martírios! Céus... (Arrancando os cabelos) eu tremo! Vacilo!...

Ela — Célebre coisa! Quem havia de supor que este pobre homem havia de ficar no mais deplorável estado! Seu juízo é nenhum! Sua vista... não tem; é cego! Seus ouvidos, não têm tímpanos; já não são outra coisa mais que dois formidáveis buracos! Que hei de eu fazer dele!?

(Entra o Rapaz armado, vestido de militar, e com a mão no punho da espada)

O Rapaz — Hoje decidiremos (à parte) quem é o marido desta mulher, embora esta filha fosse fabricada pelo meu rival. (Desembainha a espada e pergunta para o rival:) A quem pertence esta mulher? A ti que a roubaste... que lhe deste esta filha? Ou a mim que depois com ela liguei-me pelo sangue; pelas Leis civis e eclesiásticas, ou de Deus e dos homens!? Fala! Responde! Ao contrário, varo-te com esta espada! Lindo — Ela quis; e como a vontade é livre, não podeis ter sobre ela mais direito algum!

O Rapaz — Em tal caso... e se ela amanhã disser que não quer? E se o mesmo fizer no dia seguinte para com outro? Onde está a ordem, a estabilidade em tudo que pode convir às famílias e aos Estados!? Onde iríamos parar com tais doutrinas!? O que seria de nós? De todos!?

Lindo — Não sei. O que sei é que as vontades são livres; e que por isso cada qual faz o que quer!

O Rapaz — Pois como as vontades são livres e cada qual faz o que quer; como não há leis, ordem, moral, religião!... Eu também farei o que quero! E porque esta mulher não me pode pertencer enquanto tu existires — varo-te com esta espada!
(Atravessando-o com a espada; há aparência de sangue.)
Jorra o teu sangue em borbotões. Exausto o corpo, exausta a vida! E com ela todas as tuas futuras pretensões e ambições! Morre (gritando e arrancando a espada), cruel! e a tua morte será um novo exemplo — para os Governos; e para todos os que ignoram que as espadas se cingem; que as bandas se atam; que os galões se pregam; não para calcar, mas para defender a honra, o brio, a dignidade, e o interesse das Famílias! A honra, o brio, a dignidade, a integridade Nacional!

(Lindo cai sobre um cotovelo; a mulher cobre-se com um véu e fica como se estivesse morta; a menina olha admirada para tão triste espetáculo.)

O Rapaz (voltando-se para a mãe e a filha) De hoje em diante, Senhora, quer queiras, quer não, serás minha mulher, consorte, esposa! Tu, minha querida menina, continuarás a ser a mimosa dos meus olhos, a flor que aromatiza; a santa que me diviniza! Eis como Deus ajuda a quem trabalha! Depois de milhares de trabalhos, incômodos, perdas e perigos! Depois de centenas de furtos; roubos; e as mais negras atrocidades! Depois de uma infinidade de insultos; penas; crueldades; o que não pude vencer, ou fazer triunfar com a pena, razões, discursos, acabo de fazê-lo com a espada!

(Estende esta; e assim deve terminar o Segundo Ato; e mesmo findar a comédia, que mais parece — Tragédia.)
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Já se vê pois que a mulher era casada, foi antes deflorada, depois roubada ao marido pelo deflorador, etc.; que passado algum tempo encontrou-se e juntou-se a este; que o marido sentou praça como oficial; e finalmente que para reaver sua legítima mulher, foi-lhe mister dar a morte física ao seu primeiro amigo, ou roubador. São portanto as figuras que nela entram:
Lindo, roubador.
Linda, mulher roubada.
Rapaz ou Japegão, legítimo marido.
Manuelinha, filha.

Fonte:
Virtualbooks

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 469)

Uma Trova de Ademar


Uma Trova Nacional

Jamais omita o passado
dos que lutaram com fé;
na construção de um legado
que mantem todos de pé!
–NILTON MANOEL/SP–

Uma Trova Potiguar


Uma pessoa egoísta
quer para si todo o bem.
O que chama de conquista
foi o que roubou de alguém.
–HELIODORO MORAIS/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Voltas a mim, convencido
de que entre nós tudo é calma,
depois de haveres partido
e destroçado minha alma...
–NYDIA IAGGI MARTINS/RJ

Uma Trova Premiada


2011 - Nova Friburgo/RJ
Tema: RECADO - 3º Lugar


Em meu olhar recatado,
teu olhar viu, mas não leu,
a ternura de um recado
que o meu amor escreveu.
–MARINA BRUNA/SP–

Simplesmente Poesia

Verbo Encarnado
–WALTER DE OLIVEIRA/PB–


O Verbo mais conjugado
Não é verbo nem sujeito:
Falo do Verbo Encarnado
No tempo mais que perfeito.

Assim foi no seu passado,
Verbo puro sem defeito,
O mais nobre predicado,
No mais sagrado conceito.

E o Verbo se fez homem.
Espero que todos tomem
Sua vida como exemplo

E habitou entre nós
Eu e Ele, tu e vós
E todos nós como templo.

Estrofe do Dia

Nosso saber é pequeno
Pra caminharmos sozinhos,
Pra nos mostrar o veneno
Das serpentes nos caminhos.
Vamos a Deus, numa prece,
Buscar forças que carece
O nosso saber insano,
E Ele há de nos dar a luz
Nas pegadas de Jesus
Que tem saber soberano.
–RAIMUNDO SALLES/BA–

Soneto do Dia

Cova
–ANTONIO ROBERTO FERNANDES/RJ–


Cova é palavra que naturalmente
lembra morte, mistério e nos encanta,
pois cova tanto é o lar de uma serpente
como na iria foi o altar da santa.

na cova o lavrador deita a semente
pra que ela morra e gere nova planta,
sempre uma cova espera por a gente
e quem se deita lá, não se levanta.

mas na lavoura da felicidade
somos a terra, o fruto e a semente
mistério da humaníssima trindade.

pois se louco de amor seu corpo enlaço,
penetro em sua cova e de repente,
deliro, morro, e me sepulto... e nasço.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá) Parte 4


SETE HORAS DE BATISMO

-Dias após, os jesuítas deram asilo a um chefe indígena chamado Tataurana, fugido das garras do próprio Raposo. O sertanista foi lá e exigiu o escravo de volta: ou devolviam Tataurana ou a missão seria invadida. Padre Mola endureceu, recusando entregar o nativo.

-O pé de briga que faltava...

-Era o dia 28 de janeiro de 1629. Os bandeirantes, com seus mamelucos, cercaram Santo Antônio. Dentro da aldeia generalizou-se o pânico. Com os índios reunidos na praça, os jesuítas celebraram várias missas, uma após outra. Aumentava a cada momento o nervosismo. Padre Mola mandou então que passassem à sua frente todos os que não haviam sido batizados, mesmo os que não tivessem completado o catecismo. Durante sete horas seguidas, abençoou crianças e adultos. No final já estava quase sem voz, e tão cansado que outros precisavam levantar seu braço para a bênção.

-Imagino o horror que se instalou ali.

-Justamente naquele dia, chegara a Santo Antônio um amigo do padre Mola, chamado Bartolomeu. Morador em Ciudad Real, onde nascera, filho de espanhóis fundadores daquela povoação, Bartolomeu Torales, 32 anos, exercia cargo de autoridade. Ao contrário, porém, da maioria dos castelhanos, mantinha bom relacionamento com os índios e com os religiosos e era muito respeitado pela sua generosidade. Ao ver na fila para o batismo um indiozinho que chorava muito, aproximou-se e soube que os pais do menino haviam sido capturados pelos paulistas horas antes, quando retornavam à missão. Bartolomeu simpatizou-se com o garoto e se ofereceu para ser o padrinho dele. Mais ainda: iria adotá-lo como filho. O indiozinho, de 7 anos, disse chamar-se Catu, que significa “bom”.

-Até que enfim vou conhecer o nosso Catu!

-Que no batismo recebeu o nome de Francisco Torales, meu mais antigo avô, como lhe falei no início desta nossa conversa.

-Agora estou começando a entender.

O GRANDE MASSACRE

-No dia seguinte, 29 de janeiro de 1629, logo ao amanhecer, os paulistas tomaram de assalto a redução. Lá dentro, 4 mil índios tentando desesperadamente se defender. Os invasores entraram atirando, incendiando casas, chutando porcos e galinhas, pisoteando mulheres e crianças; nem a igreja respeitaram. Em poucos instantes a aldeia inteira estava em chamas. Padre Mola, rouco e em lágrimas, procurava controlar o caos: “Homens de São Paulo, vocês estão violando uma reserva de Deus!”, dizia ele em tom dramático. Insensível, Raposo ordenava a seu bando que prosseguisse o massacre. “Raposo Tavares, você será amaldiçoado por isso. Deus condenará sua alma às penas eternas pelo que você está fazendo a essas crianças de Jesus!”, insistia o sacerdote. “Jesuíta, saia da minha frente”, rosnava o bandido, levantando a espada.

-Quanta estupidez!

-Morreram ali cerca de 500 índios. Outros tantos conseguiram fugir. No final, os paulistas levaram uns 1.500 para serem vendidos em leilões de escravos. Deixaram para trás apenas as mulheres e as crianças. Os prisioneiros, atrelados uns aos outros, foram postos a caminho de São Paulo sob os açoites dos mamelucos. Muitos morreram durante a viagem, não suportando a fadiga, os castigos e a fome. Quando nem o chicote podia obrigá-los a seguir em frente, eram simplesmente abandonados sem a mínima compaixão. Chegaram vivos uns 1.200, logo vendidos aos fazendeiros do planalto e do litoral.

-Barbaridade!

Dois jesuítas, os padres Mansilha e Maceta, seguiram de perto os índios aprisionados: iam distribuindo a unção aos moribundos encontrados no caminho. Chegando a São Paulo, foram queixar-se às autoridades, que entretanto não lhes deram atenção. Os padres continuaram até o Rio de de Janeiro, onde o governador geral os recebeu com aparente boa vontade, mandando um comissário acompanhá-los a São Paulo para impor justiça. O comissário foi recebido pelos paulistas com uma saraivada de insultos e posto a correr debaixo de tiros. Acabaram prendendo os próprios jesuítas. Libertados um mês depois, Manilha e Maceta, desconsolados, retornaram ao Guairá.

-O governo de Assunção também nada fez?

-Nesse meio tempo, outro missionário, o padre Tanho, foi a Assunção pedir ajuda ao governador, na época D. Luís de Céspedes y Xeria, que aliás era casado com uma sobrinha de Martin de Sá, governador do Rio de Janeiro. D. Luís limitou-se a comentar friamente: “Os senhores levantam grande alarido por pequenas coisas e se tornam odiados onde quer que apareçam”.

-Matar e escravizar indígenas eram ”pequenas coisas”...

-Segundo as más línguas, esse tal Luís de Céspedes teria um “acordo” com os paulistas: fecharia os olhos à invasão das reduções do Guairá e receberia em troca boa parte dos escravos capturados. Os índios seriam postos a seu serviço num engenho que ele tinha no Rio de Janeiro.

-Corrupção é coisa antiga...

–––––––––––-
continua…

O e-book completo pode ser feito o download no blog do Assis http://aadeassis.blogspot.com

Fonte:
A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá). e-book. 2011.

Oswald de Andrade (Um Homem Sem Profissão: Sob as ordens de mamãe)


No início de 1954, Oswald de Andrade publicou o primeiro volume de sua memórias, Um homem sem profissão: Sob as ordens de mamãe. O livro conta seus primeiros passos até o início da carreira jornalística, nos anos 10. Não teve repercussão alguma, o que desgostou o escritor.

Na obra, Oswald de Andrade constrói uma personagem acerca de si mesmo unindo pessoa e personagem. Segundo Antônio Cândido, no “prefácio inútil” do livro, nada separa Oswald de seus personagens, tornando-o o principal e operando a fusão poética do real e do fantástico, onde as pessoas tornam-se personagens, imperceptivelmente, e, quando menos esperamos, o real se compõe segundo as tintas da fantasia.

O autor tenta reconstruir o passado como relato, mas com uma visão crítica, adaptando uma persona (máscara em italiano) à sua história. Ele cria uma personagem revolucionária acima do que realmente foi, poetizando e dando ares retumbantes como justificativa de não pegar o bonde da história.

A máscara semântica funde pessoa a personagem na construção e um sujeito revolucionário que desde menino lê Vitor Hugo e se emociona a ouvir a palavra “liberdade” nos hinos da escola.

Esse clarão presidiu até hoje a toda minha vida. Como poucos, eu conheci as lutas e as tempestades. Como poucos, eu amei a palavra Liberdade e por ela briguei.

Assim ele constrói a lógica da personagem, apoiando-se no todo da obra pra criar essa ótica particular e vice-versa. A dimensão de suas escolhas sempre opta pelo viés que confronta uma reflexão sobre o passado, uma autocrítica que insiste na dinâmica do homem livre com seu lugar como sujeito na e da história.

O autor usa um clichê poético para metaforizar a força da primeira revolução daquele “menino” vindo da aristocracia do café e filho de vereador, que se intitula revolucionário, anarquistas e libertário, que odeia dançar, mas que no Largo São Francisco ensaiava passos de maxixe no meio da pretada no coreto.

Evidentemente definia-se assim minha intensa adesão ao povo, seus ideais e costumes.

O eixo do texto memorialístico, neste caso, se organiza a partir do sujeito, como uma espécie de fusão de mitos que pressupõe a fantasia da grandiosidade, de Narciso ou Ompahalos, si mesmo é o centro do mundo, em que o cerne estrutural é provido de tênue carga semântica.

Ou seja, toda revolução é uma aurora se visto a máscara do revolucionário.

Trecho da obra

Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos veículos puxados a burros, que cortavam a morna cidade provinciana, iam desaparecer para sempre. Não mais veríamos, na descida da ladeira de Santo Antônio, frente à nossa casa o bonde descer sozinho equilibrado pelo breque do condutor. E o par de burros seguindo depois.

Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as casas, os grupos. Como seriam os novos bondes que andavam magicamente, sem impulso exterior? Eu tinha notícia pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira de minha tia, vinda do Rio, que era muito perigoso esse negócio de eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos ficava ali grudado e seria esmagado facilmente pelo bonde. Precisava pular. (...)

O projeto aprovado, começaram logo os trabalhos da execução. E anunciaram que numa manhã apareceria o primeiro bonde elétrico. Indicaram-me a atual Avenida de São João como o local por onde transitaria o veículo espantoso.

Um mistério esse negócio de eletricidade. Ninguém sabia como era. Caso é que funcionava. Para isso, as ruas da pequena São Paulo de 1900 enchiam-se de fios e de postes. (...)

Um amigo de casa informava: - o bonde pode andar até a velocidade de nove pontos. Mas, aí é uma disparada dos diabos. Ninguém aguenta. É capaz de saltar dos trilhos. E matar todo o mundo...

A cidade tomou um aspecto de revolução. Todos se locomoviam, procuravam ver. E os mais afoitos queriam ir até a temeridade de entrar no bonde, andar de bonde elétrico!

Naquele dia de estréia ninguém pagava passagem, era de graça. A afluência tornou-se, portanto, enorme.

No centro agitado, eu desci a ladeira de São João que não era ainda a Avenida de hoje. Fiquei na esquina da rua Líbero Badaró, olhando para o largo de São Bento, de onde devia sair a maravilha mecânica.

A tarde caía. Todos reclamavam. Por que não vem?

Anunciava-se que a primeira linha construída era a da Barra Funda. É pra casa do prefeito! - O bonde deixava o Largo de São Bento, entrava na Rua Libero Badaró, subia a Rua São João, entrava na Rua do Seminário.

Um murmúrio tomou conta dos ajuntamentos. Lá vinha o bicho! O veículo amarelo e grande ocupou os trilhos do centro da via pública. Um homem de farda azul e boné o conduzia, tendo ao lado um fiscal. Uma alavanca de ferro prendia-o ao fio esticado, no alto. Uma campainha forte tilintava abrindo as alas convergentes do povo. Desceu devagar. Gritavam:

- Cuidado! Vem a nove pontos!

Um italiano dialetal exclamava para o filho que puxava pelo braço:

- Lá vem o bonde! Toma cuidado!

O carro lerdo aproximou-se, fez a curva. Estava apinhado de pessoas, sentadas, de pé. Uma mulher exclamou:

- Eta gente corajosa! Andá nessa geringonça!

Passou. Parou adiante, perto do local onde se abre hoje a Avenida Anhangabaú. Houve tumulto. Acidente?

Não andava mais, gente acorria de todos os lados. Muitos saltavam.

- Rebentaram a trave do lado! Não é nada!

Tiravam a trave quebrada, o veículo encheu-se de novo, continuou mais devagar ainda, precavido.

E ficou pelo ar, ante o povo boquiaberto que rumava para as casas, a atmosfera dos grandes acontecimentos. Nas ruas, os acendedores de lampião passavam com suas varas ao ombro acendendo os acetilenos da iluminação pública.


Fonte:
Passeiweb

Pedro Malasartes (De como Malasartes Cozinha sem Fogo)


Quando chegou à cidade Pedro meteu-se em divertimentos com os estudantes e gastou todo o dinheiro. E antes que ficasse de todo limpo comprou uma panelinha de trempe uma matula e seguiu viagem.

Já havia caminhado muito quando avistou um rancho desocupado. Resolveu descansar ali. Fez fogo, pôs a panela de três pés com a matula a aquecer. Mas nisto vem chegando uma tropa. Pedro Malasartes mais que depressa pôs um monte de terra sobre o fogo e ficou muito quieto diante da panela que fumegava.

Os tropeiros, vendo aquilo ficaram muito espantados e perguntaram:

-Que moda é esta, patrício de cozinhar sem fogo?

Pedro respondeu logo:

-Isto não é para todos. Pois não vêem logo que a minha panela é mágica?

-Então cozinha sem fogo?

-E como estão vendo, e a qualquer hora. Mas, como a fada me disse que estou por poucos dias, posso negociá-la.

Os tropeiros viram naquilo um achado; provaram da comida e acharam tudo muito bom.

Compraram a panela pagando por ela quanto lhes fora pedido.

Quando à hora da ceia foram cozinhar sem fogo deram com a marosca mas já era tarde. O Malasartes tinha-se posto a muita distância...

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 468)

Uma Trova de Ademar


Uma Trova Nacional

Bebida, droga ou cigarro,
males do mesmo quartel,
causando sangue ou escarro,
dão ao dono o beleléu.
– LEME FRANCO/PR -

Uma Trova Potiguar


Como o povo não se inunda
na transparência da luz,
a verdade mais profunda
foi cravada numa cruz.
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Sou feliz! Não vivo ao lado
das estrelas na amplidão,
mas posso ter um punhado
de vaga-lumes na mão.
–ANTONIO ROBERTO/RJ–

Uma Trova Premiada


1996 - ATRN – Natal/RN
Tema: POTENGI(Rio) - M/H.


Não há poema mais lindo
neste rincão potiguar:
– ver o Potengi dormindo
abraçado com o mar!
–JOAMIR MEDEIROS/RN–

Simplesmente Poesia


M O T E :
Quer matar o poeta, mate o sonho.
Que o poeta sem sonho se liquida.
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–


G L O S A:
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Nestes versos supimpas que componho,
navegando no mar da inspiração,
eu faço poética afirmação:
Quer matar o poeta, mate o sonho.
Se tentarem eu logo me transponho,
para o mundo incomum do suicida...
Para mim já não faz sentido a vida,
se formos impedidos de sonhar
e de dentro de mim posso afirmar,
que o poeta sem sonho se liquida.

Estrofe do Dia

Vamos para o meu sertão
ver no fim da tardezinha
a pequenina andorinha
nas telhas de um casarão,
formigas pelo oitão,
uma atrás outra na frente
e no janelão do poente
o sol dando adeus ao dia;
vamos beber poesia
na cacimba do repente.
–BIU SALVINO/PB–

Soneto do Dia

Delírio
(Soneto a duas mãos)
–EDMAR JAPIASSÚ/RJ E SÉRGIO BERNARDO/RJ–


Dentro dos olhos tenho sóis em brasa,
fagulhas vivas e clarões de luas.
Eu abro os olhos e eles, pela casa,
desenham sombras nas paredes nuas.

Formas disformes de lembranças tuas...
Rastros de um resto que meu peito abrasa...
Eu abro a boca e as expressões mais cruas
enxertam-me a saudade que me arrasa.

Já penso ouvir teus passos sobre a alfombra.
Eu fecho os olhos: o fulgor te ofusca...
Eu abro os olhos: traço a tua sombra...

Visões reais que, em dias enfadonhos,
no interno anseio de uma eterna busca,
vagueiam pelas sombras dos meus sonhos!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Guerra Junqueiro (O Valente Soldado de Chumbo)


Era uma vez vinte e cinco soldados de chumbo, todos irmãos, por todos terem nascido da mesma colher de chumbo. Vede-os: que atitude marcial, de espingarda ao ombro, olhar fixo, e ricos uniformes azuis e vermelhos! A primeira coisa que ouviram neste mundo, quando se levantou a tampa da caixa em que eles estavam, foi este grito:

«Olha, soldados de chumbo!» que soltou um rapazito, batendo as palmas de alegria. Tinham-lhos dado de presente no dia dos anos e o seu divertimento era formá-los sobre a mesa, em linha de batalha. Todos os soldados se pareciam maravilhosamente uns com os outros, exceto um, que tinha uma perna de menos, porque o tinham deitado na forma em último lugar e já não havia chumbo suficiente. Apesar deste defeito, os outros não se firmavam melhor nas duas pernas do que ele na sua única, e é este o que precisamente nos interessa.

Sobre a mesa em que os nossos soldados estavam formados havia mil outros brinquedos, mas o mais bonito de todos, era um lindíssimo castelo de papel. Pelas suas pequeninas janelas via-se-lhe o interior dos salões. À volta era circundado de uma floresta em miniatura, que se refletia poeticamente num pedaço de espelho que fingia um lago, onde nadavam pequeninos cisnes de cera. Tudo isto era encantador, mas não tanto como uma menina que estava à porta, e que era também de papel, vestia um lindo vestido de cassa, apertado com um cinto de fivela anil. A menina apresentava os braços arqueados, porque era dançarina, e uma pernita levantada a tal altura, que o soldado de chumbo a não podia ver, e imaginou que, como ele, não teria senão uma perna.

– Ali está a mulher que me convém, pensou, mas é uma grande fidalga. Mora num palácio, eu numa caixa em companhia de vinte e quatro camaradas, e não haveria cá lugar para ela. No entanto preciso conhecê-la.

Deitou-se atrás de uma caixa de tabaco, e dali podia ver à sua vontade a elegante dançarina, que estava sempre num pé único, sem perder o equilíbrio.

À noite todos os outros soldados foram metidos na caixa, e as pessoas da casa foram deitar-se. Apenas os brinquedos perceberam isto, começaram a divertir-se, fizeram guerras, e afinal deram um baile. Os soldados de chumbo mexiam-se e remexiam-se na caixa, porque queriam lá ir; mas como haviam eles de tiram a tampa? O quebra-nozes começou a dar cabriolas e saltos mortais, o lápis traçou mil arabescos fantásticos numa lousa, enfim o barulho tornou-se tal que o canário acordou, e pôs-se a cantar. Os únicos que estavam quietos eram o soldado de chumbo e a dançarinhazinha, ela no bico do pé, e ele numa perna só a espreitá-la.

Deu meia-noite, e zás! a tampa da caixa de rapé levanta-se, e em lugar de rapé, saiu um feiticeirozinho preto. Era um brinquedo de surpresa.

– Soldado de chumbo, disse o feiticeiro, trata de olhar para outro sítio.

Mas o soldado fez que não ouvia.

– Espera até amanhã e verás o que te acontece, continuou o feiticeiro.

No dia seguinte, quando os pequenos se levantaram, puseram o soldado de chumbo à janela, mas de repente, ou por influência do feiticeiro ou por causa do vento, caiu à rua. Que tombo! Ficou com a perna no ar, o peso do corpo todo sobre a barretina, e com a baioneta enterrada entre duas lajes.

A criada e o rapazito foram lá abaixo procurá-lo, mas estiveram quase a esmagá-lo, sem darem por ele.

Se o soldado tivesse gritado: «Cautela!» tê-lo-iam achado, mas ele julgou que seria desonrar a farda. A chuva começou a cair em torrentes, e tornou-se num verdadeiro dilúvio. Depois do aguaceiro passaram dois garotos.

– Olá! disse um deles, um soldado de chumbo por aqui! vamos fazê-lo navegar.

Construíram um barco de um bocado de jornal velho, meteram o soldado de chumbo dentro, e obrigaram-no a descer pelo regato abaixo. Os dois garotos corriam ao lado, e com gritos de prazer. Que ondas! Santo Deus! que força de corrente! Tinha chovido tanto! O barco jogava de uma maneira horrorosa, mas o soldado de chumbo conservava-se impassível, com os olhos fixos e a espingarda ao ombro.

De repente o barco foi levado para um cano, onde era tão grande a escuridão como na caixa dos soldados.

– Onde irei eu parar? pensou ele. Foi o tratante do feiticeiro quem me meteu nestes trabalhos. Se, apesar de tudo, aquela linda menina estivesse no barco, não importava, ainda que a escuridão fosse duas vezes maior.

Dali a pouco apresentou-se um enorme rato de água; era um habitante do cano.

– Venha o teu passaporte.

Mas o soldado de chumbo não disse nada, e agarrou com mais força na espingarda. O barco continuava o seu caminho, e o rato perseguia-o, rangendo os dentes e gritando às palhas e aos cavacos: – Façam-no parar, façam-no parar! Não pagou a passagem, não mostrou o passaporte.

Mas a corrente era cada vez maior, o soldado via já a luz do dia e sentia ao mesmo tempo um barulho capaz de assustar o mais valente. Havia na extremidade do cano uma queda de água tão perigosa para ele, como é para nós uma catarata.

Aproximava-se dela cada vez mais, sem poder suster-se, com uma rapidez vertiginosa. O barco lançou-se sobre a queda de água e o pobre soldado firmava-se o mais possível, e ninguém se atreveria dizer que o tinha visto fechar os olhos com o medo.

O barco depois de ter andado à roda durante muito tempo, encheu-se de água, e estava a ponto de naufragar. A água já chegava ao pescoço do soldado e o barco afundava-se cada vez mais. O papel desdobrou-se, e a água passou por cima da cabeça do nosso herói. Nesse momento supremo, pensou na gentil dançarinhazinha, e pareceu-lhe ouvir uma voz que dizia:

– Soldado: o perigo é enorme, a morte espera-te.

O papel rasgou-se, e o soldado passou através dele. Nesse momento foi devorado por um grande peixe.

Lá é que era escuro, ainda mais que dentro do cano. E além disso, que talas em que ele estava metido! Mas, sempre intrépido, o soldado estendeu-se ao comprido com a espingarda ao ombro.

O peixe mexia-se e remexia-se, dava saltos de meter medo, até que enfim parou, e pareceu que o atravessava um relâmpago. Apareceu a luz do dia, e alguém exclamou:

– Olha um soldado de chumbo!

O peixe tinha sido pescado, exposto na praça, vendido e levado para a cozinha, e a cozinheira tinha-o aberto com uma enorme faca. Pegou no soldado de chumbo com dois dedos, e levou-o para a sala, onde toda a gente quis admirar esse homem extraordinário, que tinha viajado na barriga de um peixe. No entretanto o soldado não se sentia orgulhoso. Colocaram-no em cima da mesa, e ali – tanto é verdade que acontecem coisas extraordinárias neste mundo – achou-se na mesma sala, de cuja janela tinha caído. Reconheceu os pequenos e os brinquedos que estavam em cima da mesa, o lindo palácio e a adorável dançarina sempre de perna no ar. O soldado de chumbo ficou tão comovido, que de boa vontade teria derramado lágrimas de chumbo, mas não era decente. Olhou para ela, ela olhou para ele, mas não disseram uma palavra um ao outro.

De repente um dos pequenos pegou nele e, sem motivo algum, deitou-o no fogão; eram obras do feiticeiro da caixa do rapé.

O soldado de chumbo lá estava perfilado, alumiado por um clarão sinistro, e sofrendo um calor terrível. Todas as cores lhe tinham desaparecido, sem que se pudesse dizer, se era por causa das suas viagens, ou por causa dos seus desgostos. Continuava a olhar para a dançarina, que também olhava para ele. Sentia-se derreter, mas, sempre intrépido, conservava a espingarda ao ombro. De repente abriu-se uma porta, o vento arremessou a dançarina ao fogão para junto do soldado, que apareceu no meio das labaredas. O soldado de chumbo, já não era mais que uma massa informe.

No dia seguinte, quando a criada veio tirar a cinza, encontrou um objeto que tinha o feitio de um pequeno coração de chumbo, e tudo o que restava da dançarina era a fivela do cinto azul, que o lume tinha enegrecido.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) - Pena de Papagaio - VIII - Os animais e a peste


O leão havia reunido toda a bicharia a fim de resolver sobre a terrível peste que estava arrasando o reino. Antes de decidirem qualquer coisa, os reis costumam consultar os sábios, os astrólogos, os bobos da corte e outras notabilidades do reino. Assim também fazia o Leão da Fábula. O primeiro consultado foi um macaco de barbas brancas, sabido como ele só.

— Qual a sua opinião, senhor mono, sobre a peste que nos desgraça?

O macaco alisou a barbaça, tossiu três vezes e disse:

— Saiba Vossa Majestade que esta peste é um castigo do céu. Ofendemos as majestades celestes, foi isso. Agora, o remédio é aplacarmos a cólera dos deuses com o sacrifício de um de nós.

— Muito bem — disse o leão. — Mas sacrifício do qual?

— Do mais carregado de crimes — respondeu o macaco.

O leão fechou os olhos e pôs-se a meditar. Recordou sua vida passada, suas injustiças, a crueldade com que matara tantas zebras, gazelas, veados, carneiros e até homens. E resolveu fazer um bonito: oferecer-se para o sacrifício como o mais carregado de crimes.

Nenhum animal teria a coragem de concordar com ele, de modo que ele fazia o bonito sem correr o menor perigo. Assim procedem os reis que desejam ficar famosos na história.

— Amigos — disse o leão com cara contrita. — Nenhuma dúvida me resta: quem deve ser sacrificado sou eu. Ninguém cometeu mais crimes do que o vosso rei, ninguém matou maior número de veados, carneiros, zebras e homens do que eu. Devo ser o escolhido para o sacrifício. Que acham?

Disse e correu os olhos pela corte, com ar de quem está pensando lá por dentro: “Quero só ver quem tem o topete de achar que sim”. Todos estavam convencidos de que de fato era o leão o maior criminoso da floresta, mas nenhum tinha a coragem de o dizer em voz alta. A raposa, então, adiantou-se e fez um discursinho.

— Bobagens, Majestade! — disse ela. — Se há no mundo um ente limpo de crimes, certo que é o nosso bondoso rei leão. Matou veados e carneiros e zebras e homens? Oh, isso em vez de crime constitui ato de nobre piedade. Para que servem tais bichos? Que é um veado, uma zebra ou um carneiro ou um homem, na ordem das coisas? Perfeitas imundícies, de modo que o que Vossa Majestade fez foi apenas uma obra de limpeza. Ninguém tome minhas palavras como lisonja, tenho horror a isso, mas Vossa Majestade, na minha opinião, em vez de ser um criminoso é um santo!

Uma chuva de palmas cobriu o discurso da raposa. O leão lambeu a bigodeira, de gosto, e agradeceu à raposa com um gesto cordial. Em seguida levantou-se o tigre e disse o mesmo que havia dito o leão. Acusou-se de grandes crimes e declarou que o merecedor do castigo só podia ser ele, não outro. A raposa fez novo discurso, ainda mais bonito que o primeiro, provando que o santo número dois da floresta era justamente o tigre. A cena repetiu-se com todos os animais de músculos fortes e dentuça afiada. Todos viraram santos.

Por fim chegou a vez do burro.

— Pondo a mão na consciência, não me sinto culpado de coisa nenhuma — declarou a burrísima criatura. Só como capim e outras ervas. Nunca matei um mosquito. Se mutuca me morde, o mais que faço é espantá-la com o espanador da cauda. Nunca furtei. Nunca tomei a mulher do próximo. Nem coices dou, porque sofro duma inchação nos pés, muito dolorosa. A consciência de nada me acusa.

Assim que o burro concluiu, todos os animais entreolharam-se.

Era muito grave aquela sua confissão! A raposa adiantou-se e falou, como intérprete do pensamento geral.

— Eis o grande criminoso, Majestade! — disse ela apontando para o pobre burro. — É por causa dele que o céu nos mandou esta epidemia. Ele tem que ser sacrificado. Não dá coices, confessou, “porque tem os pés inchados”. Quer dizer que se não tivesse os pés inchados andaria pelo mundo a distribuir coices como quem distribui cocadas. Morra o miserável burro coiceiro!

— Morra! Morra! — gritaram mil vozes. Vendo aquilo, o rei leão também indignou-se.

— Miserável burro de carroça! — berrou. — É por tua causa, então, que o meu reino está levando a breca? Pois te condeno a ser imediatamente estraçalhado pelo carrasco da corte. Vamos, tigre, cumpre a sentença do teu rei!...

Os olhos do tigre-carrasco brilharam. Estraçalhar animais era o seu grande prazer. Lambeu os beiços e armou o bote para lançar-se contra o trêmulo burro. Mas ficou no bote. Uma enorme pedra lhe caiu do teto da caverna bem no alto da cabeça — plaf! Grande berreiro!

Correria! Desmaios das damas. Quem é? Quem foi? Fora obra do Peninha.

— Bravos! — exclamaram os meninos. — Isso é que se chama boa pontaria.

— Fujamos enquanto é tempo — gritou Peninha. — O leão já nos farejou aqui e está lambendo os beiços.

Não foi preciso mais. Os meninos botaram-se pela montanha abaixo.
––––––––––––––
Continua… Pena de Papagaio – IX - Os prisioneiros

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Leme Franco (Livro de Trovas)


Amor em grande pedaço,
frio, sem sonho e sem dó,
é como amor de palhaço,
amor de quem está só.

Bebida, droga ou cigarro,
males do mesmo quartel,
causando sangue ou escarro,
levam-nos ao beleléu.

Com minha caneta mágica,
posso escrever até em branco.
letra capital ou básica,
Luiz Carlos Leme Franco

Eu caminho agora a fonte
buscar a pura bebida.
Ali, encontro, no monte
a divina água da vida.

Eu vou pra Maracangalha
hoje e também amanhã.
Lá não terei só migalha.
Serei também rei do clã.

Filhos, filhas, também netos
formam sempre bom legados;
Convivem no mesmo teto
E são sempre bem amados.

Jesus morreu no madeiro
para que tenhamos paz.
Que pena, aquele cruzeiro
deste feito foi incapaz.

Lá vem o mundo de novo
falar outra vez em guerra,
e o coitadinho do povo,
não pode cuidar da Terra.

Mamãe, papai, filho, neto,
formam família feliz.
Há pra tristeza um veto.
Vivem em paz, sempre se diz.

Meu cupido, meu cupido,
O amor velho morreu.
Antes não tivesse ido,
Antes não tivesse ido,

Minha vida tu levaste,
Eu só tenho que morrer.
Se meu coração roubaste
como posso assim viver ?

Motorista, bom amigo,
o vermelho é p’ra parar.
Neste caminho não sigo,
pois não se pode matar.

Ó quanta ternura vejo
em duas mãos enlaçadas,
em um abraço, em um beijo
e nas velhinhas amadas.

Peço paz á humanidade,
muito amor no coração.
Também bastante humildade.
Ouça Deus minha oração.

Quem não sabe discutir,
é muito melhor calar.
Ás vezes é bom ouvir
do que bobagem falar.

Quer uma boa empreitada?
Mude o rio sujo em novo,
nem poluição e nem nada
que possa matar o povo.

Ternura, quanta ternura,
Jesus Cristo nos deixou.
É para que com candura,
Perdoemos a quem errou.

Tudo o que sou ou serei,
devo a um livro amigo,
ao qual não esquecerei
e trago sempre comigo.

Versos, texto, canto ou fala,
mostram a mesma visão
em grande ou pequena escala,
do que diz o coração.

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor

Luiz Carlos Leme Franco


Professor desde 1966 e médico desde 1973, poeta com trabalhos publicados em Inglês, Espanhol, Chinês e Francês, além do Português, nos E. U. A., Paris e Brasil ( três livros próprios, várias antologias e poesias avulsas em jornais e revistas em vários estados ).

Tem poesias no google ( picasa ) e no you tube.

Premiado muitas vezes.

É verbete em livro do M. E. C. e pertence a mais de quarenta academias de letras no Brasil, Inglaterra e Itália.

Foi fundador e editor da revistas “ Poesia & Cia.” premiada nacionalmente e “Unindo o Brasil pela Trova”, bem como fundador da academia de letras de Londrina (PR) e de várias casas do poeta,

Ex-presidente para o Paraná de Academias Municipais de Letras, da Caravelas, da Casa do Poeta de Londrina, da Casa Literária Lampião de Gás (SP).

Pertence a quatro institutos históricos e geográficos.

Pertenceu a academias de letras maçônicas e clubes literários além de membros de várias instituições literárias.

Julgou em muitos concursos literários e escreveu muitos prefácios e apresentações de poetas.

Atual governador para o Paraná da Associação Internacional Poetas del Mundo, tem algumas páginas literárias virtuais e escreve em várias.

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 467)

Uma Trova de Ademar


Uma Trova Nacional

Nada mais nos aproxima...
e, nessa ausência de afeto,
nós somos trova sem rima
e sem sentido completo!
SÉRGIO FERREIRA DA SILVA/SP–

Uma Trova Potiguar


A saudade, a dor, o trauma,
que pranteia, os olhos meus,
tortura e faz de minha alma,
refúgio, de um triste adeus...
–FABIANO WANDERLEY/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


De ti distante, esquecida,
sem teu riso e a tua voz,
impera na minha vida
a calma triste dos sós...
–NYDIA IAGGI MARTINS/RJ–

Uma Trova Premiada


2002 - Nova Friburgo/RJ
Tema: CERTEZA - 1º Lugar


– Se tu vais, por gentileza,
deixa a porta sem trancar!
Não me roubes a certeza
de que logo irás voltar!
–ADÉLIA VICTÓRIA FERREIRA/SP–

Simplesmente Poesia

Ela
–J. G. DE ARAÚJO JORGE/AC–


Quando ela passa na rua
é como uma banda de música:
- um escarcéu!

E como sou maluco por música
desde garoto,
- lá vou eu !

Estrofe do Dia

Nasce a flor entre pedras e cascalhos
carregada de essência e de espetáculo,
traz no cálice e no seu receptáculo
as gotículas das noites com orvalhos,
o balanço na ponta dos seus galhos
vai soltando na relva o seu frescor
inspirando um cenário de amor
numa cena romântica e colorida;
a alegria é a fonte dessa vida
pra quem vê um sorriso numa flor.
–JÚNIOR ADELINO/PB–

Soneto do Dia

Soneto do Nascer
–RENATO ALVES/RJ–


Brilha ao longe uma luz no fim da estrada
Em que deslizo em contrações cativo
Vou migrando da bolha para o nada
Do destino refém ou fugitivo...

Era bem calma há pouco esta morada:
Um ninho acolhedor, convidativo.
Eu, grão imerso n’água abençoada,
Percorrendo o processo evolutivo.

De repente, porém, explode o ninho...
Lançado fora, tinto, mais que o vinho,
Sou arrastado, assim, de afogadilho...

Descerro os olhos: Há luz na saída!...
Os pulmões doem... Sorvo o ar da vida...
E, afinal, uma voz me diz: "Meu Filho!"

Fonte:
Textos enviados pelo autor
Montagem da trova sobre imagem enviada por Ademar Macedo

Adonias Filho (O Largo da Palma) 1. A Moça dos Pãezinhos de Queijo)


Espaços:

Largo da Palma, Igreja e Ladeira da Palma (visão animista). Os encontros entre Gustavo e Célia são no Largo da Palma e no Jardim de Nazaré. A casa dos pãezinhos de queijo e a de Gustavo.

Foco narrativo e Tempo

A narrativa é em terceira pessoa, com um narrador onisciente. Conhece presente e passado dos personagens, os fatos e os sentimentos internos dos personagens diante dos fatos.

Percebemos como os aspectos psicológicos são tão intensos que torna extremamente subjetiva a percepção do mundo exterior.

Embora a narração dos fatos enfatize sempre os aspectos psicológicos, interiores, o decurso temporal é cronológico, com pequenos flashes de volta ao passado (por exemplo: a morte do pai de Célia, a doença da mãe de Gustavo).

A narrativa é bastante lírica, embora aqui e ali se percebam aspectos críticos como quando fala de Largo “sempre mal-iluminado que parece em penumbra” ou quando fala da postura capitalista do pai de Gustavo em sua “decepção de ter um filho, quando não inválido, praticamente inútil”

Linguagem

Linguagem concisa, períodos curtos, incisivos. A linguagem narrativa é intensamente lírica. O narrador explora os aspectos poéticos da linguagem. Presença constante de metáforas, símbolos, comparações.

Uso do Discurso Livre Indireto:

Falará com a mãe, à noite seguinte, pouco antes de sair para encontrar-se com o rapaz. E se a mãe perguntar quem é ele e o que faz, como responderá? Dir-lhe-á que não sabe sequer o nome porque não houve tempo para maior aproximação. Confessará, porém, o detalhe: “Ele é mudo”. Inútil discutir, procurar explicar, tentar justificar-se frente ao espanto da mãe. Sabe que ela não compreenderá, ninguém entenderá, o sobrado inteiro a dizer que tem um parafuso a menos. Uma doida, apenas uma doida se deixará seduzir e fascinar por um mudo.

Personagens

Há nos dois personagens protagonistas uma intercomplementaridade (carência, desejo, complementação no outro).

Joana - viúva de Roberto Militão.

Célia - protagonista, moça de dezoito anos, cabelos de carvão que chegam aos ombros, olhos também negros que combinam com a pele amorenada. Há quem afirme ser mais bonita que o canto do pássaro. Gustavo - protagonista, ele adora, com a música, os ruídos das ondas do mar, do vento nos coqueiros e os cantos dos pássaros. Falar, porém, não fala. Expressa-se com as mãos e o rosto. Responde escrevendo ou gesticulando, porque é mudo. A avó, mãe do pai, é a sua verdadeira mãe. Sua mãe desaparecera e a avó corta, enérgica, qualquer pergunta a esse respeito dizendo: é uma doente da cabeça.

Enredo

É no Largo da Palma, tão velho quanto Salvador, na esquina da ladeira que desce no caminho da Baixa dos Sapateiros, é precisamente aí que fica “A Casa dos Pãezinhos de Queijo”. Ali vive um bocado de povo, cobertas coloridas enfeitam as janelas, e a gritaria dos rádios sufoca os pregões dos vendedores de frutas da Bahia.

Joana faz os pãezinhos no andar de cima e Célia, sua filha, os vende na loja, embaixo, com a freguesia aumentando dia a dia. Todos comentam a delicadeza de quem os vende.

Gustavo escuta a voz de Célia pela primeira vez quando vai comprar pãezinhos de queijo para a avó. Nada permanece a não ser a voz que acabara de ouvir. Doce e macia, ao lado do riso alegre, a voz da moça é música melhor de ouvir-se, nas manhãs de domingo, que o próprio órgão da igreja.

No dia seguinte volta à "Casa dos Pãezinhos de Queijo". O que deseja, no íntimo, é retroceder. As pancadas do coração, porém, ordenam que prossiga. Mas prosseguir para quê? É um homem sem voz que, ao tentar falar, consegue apenas guinchar como um bicho.

Apoiando-se no balcão, escreve: "não sou surdo e, porque ouvi, sei que você se chama Célia." Célia, sentindo mais que percebendo, sabe que ele fora para declarar-se como um namorado. Permanece, pois, fascinada pelo rapaz que não fala e que de rosto faz lembrar um dos anjos da igreja.

Sabe que não esquecerá jamais, com os cabelos negros e os olhos cor de avelã, o rosto do rapaz que reflete enorme amor de homem. Como entender o que acontece? Homem ele já é com o peito largo e forte que é quase um lutador. Alto e belo como uma árvore. E por que – Senhora Santa da Palma – e por que é mudo? Nasceu assim? Houve um acidente? Doença? Uma doida, apenas uma doida se deixaria seduzir e fascinar por um mudo!

O pai de Gustavo não ocultava a decepção de ter um filho, quando não inválido, praticamente inútil. Os médicos não admitiam a cura. Que moça, afinal, o aceitaria como namorado? Ou seria uma criatura extraordinária e incomum ou apenas uma vigarista que, sabendo-o rico, a ele se chegava por causa do dinheiro.

Ele tem medo. Medo de que ela escape qualquer dia por ele ser mudo e – ela escapando – sentir-se novamente desesperado e só.

O milagre

- Não quero que você escreva mais! Quero que você fale!

Gustavo ouve e sente que o amor e o beijo de Célia podem gerar o milagre. (...) As bocas se afastam, as mãos mais se apertam, as lágrimas nos olhos que parecem sangrar. Tudo, agora, é nele angústia e dor. (...) é como num parto, a voz está nascendo. (...) E ele a rir e a chorar ao mesmo tempo, exclama, em tom ainda fraco, mas exclama:

- Amor!

Fonte:
www.integralweb.com.br

J. G. de Araújo Jorge (A Noite e o Poeta)


Esta noite é igual a todas as noites, entretanto, subitamente, é aquela noite que ficará marcada para a minha alegria. Subitamente, estou dentro dela, consciente, e a sinto como se a tivesse aderente a minha pele, como uma tatuagem, como se pudesse envolve-la ou toma-la nos braços

Por que? Não sei. Parece apenas que tudo o que faz a noite, sua calma expectante, seus pequenos ruídos singulares, suas luzes, suas sombras, suas formas estáticas; todos os que são a noite estão presentes, posso senti-los como se fossemos uma mesma coisa, ou um mesmo ser. Como se subitamente, me transmudasse na noite que esta ao meu redor, como se ela estivesse em mim.

Todos os que estão acordados, uns poucos que, como eu, a estão velando ou saboreando, em estado de angústia ou de suprema paz; ou os que embarcaram nos pesados veleiros do sono, e estão adormecidos, onde ? em qualquer lugar, mas sinto que estão adormecidos, fazem parte da minha vida, e dão dimensões inimagináveis a minha solidão.

Sinto sua presença " física ", soma de tantas ausências, nesse extenso e enorme silêncio a volta, silencio de coisa em gestação, tecido de vagos movimentos apenas adivinhados, de sons que não chegam aos nossos ouvidos. Sem a sensação dessa falta, esse silêncio não seria possível, nem essa pausa, essa tranqüilidade, feita de tantos que estão submersos, que nasce da vida momentaneamente em sincope.

Essa hora tarde se impregna de humanidade, porque é justamente a hora em que a vida apenas lateja, distante, sob os meus dedos, como um pulso a apalpação do médico. Em que posso vir a mim, ou ir-me, a encontrar-me como a um velho conhecido, de raras visitas - para conversar sobre coisas de que só nós nos lembramos, tantas e infinitas coisas insignificantes, da maior importância para que continuemos vivos: para falar sobre todos a sobre tudo, a tentar descobertas como quem abre uma janela e se debruça para o acaso. Colho minha alegria em momentos assim. Em de repentes, em subitamentes, como se esbarrasse em transeuntes apressados e desconhecidos. Colho minha alegria de momentos assim, em que nada parece se ter alterado, em que as coisas permanecem como são, em sua rotina, mas em que surpreendentemente me reconheço e me revelo.

Então, ela cintila por segundos, me aposso dela com uma aguda e intensa percepção, penetro-lhe o mistério e o sentido. Mas perco-a também, logo após, tal como a encontrei. E ela se vai e se esvai como surgiu, e mergulho novamente como um ser comum na torrente igual da vida.

Quantos dias, quantos meses, tempo sem tempo, vou seguindo sem me aperceber disto? Mas, de repente, posso reconhecer que vivo.

Sim, a uma descoberta maravilhosa, e tudo me sabe então novo e inédito, como se acabasse de nascer. Grito-me para mim mesmo que estou vivo, e essa sensação é deslumbrante é misteriosa!

- Então eu vivo! E há calor em tudo que me cerca, diante de meus olhos, ao alcance de minhas mãos. Tantos semeando e colhendo. Há estrelas, distantes estrelas, tão próximas para os nossos olhos, nos momentos de desânimo. Há pássaros em perdulários cantos e algazarras, efervescendo nas ramagens ao cair da tarde; automóveis pulsando nas ruas, num vaivém taquicárdico de civilização cardiopática; banhista nas praias, displicentes, colhendo o sol e o mar; crianças, que são sempre crianças, que dão sempre a impressão de que não vão crescer, embaraçando de correrias os jardins, os recreios; e mães gritando há milênios, dos andares altos, das janelas abertas, anunciantes do futuro.

Não é extraordinário que eu descubra que há vida ao meu redor, vida com "V" grande, apenas vida, e que andava cego a surdo ? E que afinal devo a tantos que não me percebem, nem tomam conhecimento de minhas descobertas, e minha alegria de viver?

E só por isso, uma luminosa euforia lava meu coração, e o embebeda, e o abre como uma espátula de luz. Inexplicavelmente compreendo tudo, justifico tudo, e me sinto tocado de amor, de um ímpeto de braços dados, de mãos que se apertam, de peitos que se abraçam!

E só por isso, só ? Meu Deus ? - me sinto melhor, endividado com a vida, a agradecer a todos, e a perdoar até, a todos, a sua presença; paradoxalmente esquecido de mim, integrado a humanidade, a bendize-la.

Meu Deus, acho que nestes momentos fico poeta. Acho que ser poeta é só isto: encontrar-se subitamente dentro da vida, o coração nu, com esse estranho poder de despojar as coisas de si mesmas, a vê-las por dentro, e ama-las em sua palpitante beleza. Sentir-se ao mesmo tempo único a múltiplo, consciente de suas forças pelas infinitas placentas que o prendem ao mundo.

Acho que ser poeta é de repente poder se sentir feliz, apenas porque se vive, sem quaisquer indagações, em contato com Deus, seus mistérios e suas verdades. E a vida ser algo assim que se justifica pela simples e indescritível revelação de um momento perfeito, sem macula, sem preocupações, sem ódios, sem egoísmos, sem despeitos, e até sem desejos; tecido apenas de amor, um amor total, cósmico, transbordante; que não cabe a penas na mulher que nos espera; no filho que se quer; no amigo que nos companha; mas que os integra também na emoção imensa, ampla, profunda - como um remoinho em que nos abandonamos completamente - como uma nebulosa em que nos dissolvemos, inteiros.

Acho que ser poeta é poder colher esse instante, e tentar fixa-lo em palavras e cantos, servi-lo a mancheias, para matar a fome e a sede de paz e beleza, de comunicação e amor, e um mundo feito de ânsias e frustrações, de surdos corações e espíritos cegos.

Acho que ser poeta é poder colher esse instante de alegria como a uma flor imortal, para oferta-lo a todos, para que todos participem dele.

Talvez por isso, escrevi um dia aqueles versos. -

O poeta é um prestidigitador
faz mágicas com a vida
transforma água em vinho,
para a embriaguez da beleza

ou, quem sabe? estes outros:

Meus Deus
por que ser difícil ?

É tão fácil cantar: basta abrir a boca.
É tão fácil amar: basta abrir o coração.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Machado de Assis (Pai Contra Mãe)


A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de flandres.

A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

Cândido Neves, -- em família, Candinho,-- é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.

Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.

Contava trinta anos. Clara vinte e dois. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.

O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi – para lembrar o primeiro ofício do namorado, - tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.

-Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. -Não, defunto não; mas é que...

Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.

-Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.

-Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.

A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma coisa e outra; não tinha emprego certo.

Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.

-Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.

A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.

-Vocês verão a triste vida, suspirava ela. -Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara. -Nascem, e acham sempre alguma coisa certa que comer, ainda que pouco... -Certa como? --Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?

Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.

-A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau...

– Bem sei, mas somos três.

– Seremos quatro.

-Não é a mesma coisa.

- Que quer então que eu faça, além do que faço? -

- Alguma coisa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém.

- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.

Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.

Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de coisas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso.

Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.

Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos.

A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis. Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem.

-É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.

Cândido quisera efetivamente fazer outra coisa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.

A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.

--Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!

Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular...

Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio.

– Titia não fala por mal, Candinho.

-Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim...

Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor,-- crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dois foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.

--Quem é? perguntou o marido. --Sou eu.

Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.

--Não é preciso... --Faça favor.

O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.

-Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.

Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.

A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio.

Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dois, para que Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a
casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.

Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dois dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.

Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido.

Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.

Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.

Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.

-Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou
sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida.

Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.

--Mas...

Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona. --Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.

Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.

--Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!

- Siga! repetiu Cândido Neves.

– Me solte!

– Não quero demoras; siga!

Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes,-– coisa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites.

--Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.

Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes coisas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.

--Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.

- É ela mesma.

-Meu senhor!

-Anda, entra...

Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.

O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre.

Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.

--Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

Fonte:
Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
Texto-base digitalizado por NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística – Universidade Federal de Santa Catarina