Um rei, que viajava nos seus estados, encontrou um homem a quem perguntou como se chamava, donde era, e que ofício tinha. Este respondeu:
– Senhor: eu sou um desgraçado, um miserável; nasci no vosso reino e chamo-me Ingratidão.
– Se pudesse contar com a tua fidelidade, disse o rei, tomava-te ao meu serviço.
O nosso homem prometeu ser fiel, e o rei ordenou-lhe que o acompanhasse. Desde que chegaram ao palácio, deu tais provas de habilidade, mostrou-se tão esperto e tão solícito que o rei afeiçoou-se a ponto de o nomear seu intendente, confiando-lhe a administração da sua casa. Deslumbrado por uma fortuna tão rápida, o seu orgulho desde então não conheceu limites; maltratava os inferiores, e não tinha compaixão dos desventurados.
Ora, na vizinhança do palácio, havia uma floresta cheia de animais selvagens e perigosíssimos. O intendente mandou aí fazer por toda a parte covas profundas, cobertas com folhas, de modo que as feras, caindo dentro, pudessem ser agarradas. Um dia que o intendente atravessava a floresta, ia tão absorvido pelos seus pensamentos orgulhosos, que se precipitou ele mesmo dentro de uma das covas.
Passado um instante, caiu um leão dentro do mesmo poço; caiu depois um lobo e em seguida uma enorme serpente, de aspecto pavoroso. O governador, ao ver-se em tão extraordinária companhia, ficou tão horrorizado, que lhe embranqueceram os cabelos; e toda a esperança de salvação lhe parecia perdida, que por mais que gritasse ninguém o vinha socorrer.
Esqueceu-nos dizer que havia na cidade um homem extremamente pobre, chamado António, que todos os dias ia rachar lenha à floresta, para ganhar o pão necessário à mulher e aos filhos. O António também lá foi nesse dia, corno de costume, e pôs-se a trabalhar não longe da cova em que caíra o intendente, cujos gritos de aflição não tardou a ouvir. O pobre rachador aproximou-se, e perguntou quem era que estava ali.
– Sou o governador do palácio do rei, e se me tirares daqui, prometo encher-te de riquezas; estou em companhia de um leão, de um lobo e de uma enorme serpente.
– Eu, respondeu o lenhador, sou um miserável jornaleiro, que não tenho para sustentar a minha família, mais que o produto do meu trabalho; bastava um dia perdido para me causar um grande desarranjo; vê lá, pois, se cumpres a tua promessa!
O intendente continuou:
– Pela fé que devo a Deus e a el-rei nosso senhor, juro-te que cumprirei a minha palavra.
Confiado nisto o rachador de lenha foi à cidade, e voltou com uma corda muito comprida, que deixou correr dentro do abismo. O leão atirou-se a ela, e suspendeu-se com uma tal energia que o lenheiro julgava que era o intendente.
Quando chegou acima, o leão agradeceu ao seu salvador com a maior amabilidade, e foi-se embora à procura de jantar, porque tinha fome.
António deitou outra vez a corda ao fundo do poço, e, julgando tirar o governador, enganou-se, porque era o lobo; à terceira vez subiu a serpente; e foi necessário fazer uma quarta tentativa para sair o governador. Este não perdeu tempo em agradecimentos, e partiu a correr para o palácio. O jornaleiro voltou para casa, e contou à mulher tudo o que se tinha passado, não lhe esquecendo, é claro, as brilhantes promessas do intendente. No dia seguinte, logo pela manhã, foi o pobre homem bater à porta do palácio. O porteiro perguntou-lhe o que queria.
– Faça-me o favor, respondeu o rachador, de dizer a S. Exª o intendente, que o homem com quem ele esteve ontem na floresta, lhe deseja falar.
O porteiro foi levar o recado, mas o intendente zangou-se e exclamou:
– Vai dizer a esse homem que eu não vi ninguém na floresta; que se ponha a andar, porque o não conheço.
O porteiro voltou, e repetiu o que o governador lhe tinha dito.
O pobre homem tornou para casa muito descoroçoado, e contou à mulher a odiosa perfídia de que fora vítima.
A mulher disse-lhe:
– Tem paciência, o senhor intendente estava hoje certamente muito ocupado, e foi talvez por esse motivo que te não pôde receber.
Estas palavras sossegaram o rachador que outra vez nutriu esperanças.
Na manhã seguinte, ainda muito cedo, bateu de novo à porta do palácio. Mas o intendente mandou-lhe dizer em termos ásperos, que não tornasse ali a aparecer, quando não, ver-se-ia obrigado a empregar meios violentos. A mulher ainda desta vez procurou consolá-lo:
– Experimenta terceira e última vez, disse-lhe ela. Talvez Deus o inspire melhor. E se assim não for, ainda que te custe, não penses mais nisso.
No dia seguinte o bom do homem voltou à carga; e tendo o porteiro consentido à força de súplicas em anunciá-lo ainda ao governador, este, encolerizado, atirou-se praguejando fora do quarto, e crivou o pobre homem de uma tal chuva de bengaladas, que o deixou quase morto no meio do chão. A mulher dele, sabendo disto, correu imediatamente com um burro, pôs-lhe em cima o marido, e levou-o para casa. As feridas levaram-lhe seis meses a curar, estando sempre de cama, e vendo-se obrigado a contrair dívidas para pagar ao médico. Quando finalmente tinha recobrado algumas forças, voltou ao bosque segundo o costume para fazer alguma lenha. Apenas lá chegou, apareceu-lhe o leão, que ele tinha ajudado a sair do poço.
O leão conduzia um burro diante de si, e este burro estava carregado de sacos cheios de preciosidades. O leão, vendo o António, parou e inclinou-se diante dele com um ar de respeitoso agradecimento. Depois disto continuou o seu caminho, fazendo-lhe sinal de que ficasse com o jumento. António, doido de alegria, levou o animal para casa, abriu os sacos, e viu que estava rico.
No dia seguinte, voltando de novo à floresta, apareceu-lhe o lobo, que o ajudou no seu trabalho, querendo provar-lhe desta maneira o quanto lhe era agradecido. Quando a tarefa estava concluída, e tinha carregado o burro com a lenha, viu vir ao seu encontro a serpente, que ele tinha tirado do fojo, e que trazia na ponta da língua uma pedra preciosa, em que brilhavam três cores – o branco, o preto e o vermelho. Quando a serpente chegou ao pé do rachador de lenha, deixou cair a pedra junto dele, e depois, dando um salto, desapareceu no matagal. António levantou a pedra, examinou-a por todos os lados, para ver que propriedade ou virtude ela teria. Para isto foi ter com um velho, afamado pela sua habilidade em decifrar o que diziam os astros. Este, assim que viu a pedra, ofereceu-lhe por ela uma grande quantia. António respondeu-lhe que não queria vender, mas simplesmente saber se seria boa.
O velho respondeu:
– São três as virtudes desta pedra: abundância contínua, alegria imperturbável, e luz sem trevas. Se alguém ta comprar por menos dinheiro que vale, tornará imediatamente para a tua mão.
António ficou muito contente com esta resposta, agradeceu ao velho da ciência maravilhosa, e correu a contar à mulher a sua felicidade. Como se imagina, graças à virtude da famosa pedra, não lhe faltaram daí em diante, nem honras, nem riquezas.
Tendo chegado aos ouvidos do rei a notícia destas prosperidades, mandou chamar o António, e mostrou-lhe desejos de adquirir o precioso talismã.
O António, vendo que semelhante desejo era uma ordem, respondeu:
– Devo prevenir a Vossa Majestade, de que se esta pedra me não for paga pelo que vale, tornará ela mesma para o meu poder.
– Descansa, hei-de pagar-ta bem, disse o rei.
E mandou-lhe dar trinta mil libras de ouro. No dia seguinte de manhã, o António achou outra vez a pedra em cima da mesa; e a mulher sabendo isto, disse-lhe:
– Torna a levá-la ao rei imediatamente; não vá ele persuadir-se de que lha furtaste.
O nosso homem seguiu este conselho, e, quando chegou à presença de sua majestade, pediu-lhe que lhe dissesse onde tinha guardado a pedra preciosa.
– Mandei-a meter com todo o cuidado dentro de um cofre de ferro, fechado com sete chaves, disse o rei.
O António mostrou-lhe então a jóia preciosa, e o rei ficou extraordinariamente espantado, e quis saber como ele tinha adquirido semelhante tesouro.
António contou-lhe tudo o que tinha havido, a ingratidão do governador e o reconhecimento dos animais ferozes. O rei indignado, mandou chamar o seu intendente, e disse-lhe:
– Homem perverso, com justo motivo te puseram o nome de Ingratidão, porque és falso e mais pérfido que os animais ferozes, e pagaste com o mal o bem que te fizeram. Mas justiça será feita. Dou ao António as tuas honras e os teus bens, e a ti hoje mesmo o castigo de seres enforcado.
Admiraram todos a sentença do rei, e o António desempenhou as suas altas funções com tanta sabedoria e bondade, que depois da morte do rei foi escolhido para o substituir, e reinou pacificamente durante longos anos gloriosos.
Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.
– Senhor: eu sou um desgraçado, um miserável; nasci no vosso reino e chamo-me Ingratidão.
– Se pudesse contar com a tua fidelidade, disse o rei, tomava-te ao meu serviço.
O nosso homem prometeu ser fiel, e o rei ordenou-lhe que o acompanhasse. Desde que chegaram ao palácio, deu tais provas de habilidade, mostrou-se tão esperto e tão solícito que o rei afeiçoou-se a ponto de o nomear seu intendente, confiando-lhe a administração da sua casa. Deslumbrado por uma fortuna tão rápida, o seu orgulho desde então não conheceu limites; maltratava os inferiores, e não tinha compaixão dos desventurados.
Ora, na vizinhança do palácio, havia uma floresta cheia de animais selvagens e perigosíssimos. O intendente mandou aí fazer por toda a parte covas profundas, cobertas com folhas, de modo que as feras, caindo dentro, pudessem ser agarradas. Um dia que o intendente atravessava a floresta, ia tão absorvido pelos seus pensamentos orgulhosos, que se precipitou ele mesmo dentro de uma das covas.
Passado um instante, caiu um leão dentro do mesmo poço; caiu depois um lobo e em seguida uma enorme serpente, de aspecto pavoroso. O governador, ao ver-se em tão extraordinária companhia, ficou tão horrorizado, que lhe embranqueceram os cabelos; e toda a esperança de salvação lhe parecia perdida, que por mais que gritasse ninguém o vinha socorrer.
Esqueceu-nos dizer que havia na cidade um homem extremamente pobre, chamado António, que todos os dias ia rachar lenha à floresta, para ganhar o pão necessário à mulher e aos filhos. O António também lá foi nesse dia, corno de costume, e pôs-se a trabalhar não longe da cova em que caíra o intendente, cujos gritos de aflição não tardou a ouvir. O pobre rachador aproximou-se, e perguntou quem era que estava ali.
– Sou o governador do palácio do rei, e se me tirares daqui, prometo encher-te de riquezas; estou em companhia de um leão, de um lobo e de uma enorme serpente.
– Eu, respondeu o lenhador, sou um miserável jornaleiro, que não tenho para sustentar a minha família, mais que o produto do meu trabalho; bastava um dia perdido para me causar um grande desarranjo; vê lá, pois, se cumpres a tua promessa!
O intendente continuou:
– Pela fé que devo a Deus e a el-rei nosso senhor, juro-te que cumprirei a minha palavra.
Confiado nisto o rachador de lenha foi à cidade, e voltou com uma corda muito comprida, que deixou correr dentro do abismo. O leão atirou-se a ela, e suspendeu-se com uma tal energia que o lenheiro julgava que era o intendente.
Quando chegou acima, o leão agradeceu ao seu salvador com a maior amabilidade, e foi-se embora à procura de jantar, porque tinha fome.
António deitou outra vez a corda ao fundo do poço, e, julgando tirar o governador, enganou-se, porque era o lobo; à terceira vez subiu a serpente; e foi necessário fazer uma quarta tentativa para sair o governador. Este não perdeu tempo em agradecimentos, e partiu a correr para o palácio. O jornaleiro voltou para casa, e contou à mulher tudo o que se tinha passado, não lhe esquecendo, é claro, as brilhantes promessas do intendente. No dia seguinte, logo pela manhã, foi o pobre homem bater à porta do palácio. O porteiro perguntou-lhe o que queria.
– Faça-me o favor, respondeu o rachador, de dizer a S. Exª o intendente, que o homem com quem ele esteve ontem na floresta, lhe deseja falar.
O porteiro foi levar o recado, mas o intendente zangou-se e exclamou:
– Vai dizer a esse homem que eu não vi ninguém na floresta; que se ponha a andar, porque o não conheço.
O porteiro voltou, e repetiu o que o governador lhe tinha dito.
O pobre homem tornou para casa muito descoroçoado, e contou à mulher a odiosa perfídia de que fora vítima.
A mulher disse-lhe:
– Tem paciência, o senhor intendente estava hoje certamente muito ocupado, e foi talvez por esse motivo que te não pôde receber.
Estas palavras sossegaram o rachador que outra vez nutriu esperanças.
Na manhã seguinte, ainda muito cedo, bateu de novo à porta do palácio. Mas o intendente mandou-lhe dizer em termos ásperos, que não tornasse ali a aparecer, quando não, ver-se-ia obrigado a empregar meios violentos. A mulher ainda desta vez procurou consolá-lo:
– Experimenta terceira e última vez, disse-lhe ela. Talvez Deus o inspire melhor. E se assim não for, ainda que te custe, não penses mais nisso.
No dia seguinte o bom do homem voltou à carga; e tendo o porteiro consentido à força de súplicas em anunciá-lo ainda ao governador, este, encolerizado, atirou-se praguejando fora do quarto, e crivou o pobre homem de uma tal chuva de bengaladas, que o deixou quase morto no meio do chão. A mulher dele, sabendo disto, correu imediatamente com um burro, pôs-lhe em cima o marido, e levou-o para casa. As feridas levaram-lhe seis meses a curar, estando sempre de cama, e vendo-se obrigado a contrair dívidas para pagar ao médico. Quando finalmente tinha recobrado algumas forças, voltou ao bosque segundo o costume para fazer alguma lenha. Apenas lá chegou, apareceu-lhe o leão, que ele tinha ajudado a sair do poço.
O leão conduzia um burro diante de si, e este burro estava carregado de sacos cheios de preciosidades. O leão, vendo o António, parou e inclinou-se diante dele com um ar de respeitoso agradecimento. Depois disto continuou o seu caminho, fazendo-lhe sinal de que ficasse com o jumento. António, doido de alegria, levou o animal para casa, abriu os sacos, e viu que estava rico.
No dia seguinte, voltando de novo à floresta, apareceu-lhe o lobo, que o ajudou no seu trabalho, querendo provar-lhe desta maneira o quanto lhe era agradecido. Quando a tarefa estava concluída, e tinha carregado o burro com a lenha, viu vir ao seu encontro a serpente, que ele tinha tirado do fojo, e que trazia na ponta da língua uma pedra preciosa, em que brilhavam três cores – o branco, o preto e o vermelho. Quando a serpente chegou ao pé do rachador de lenha, deixou cair a pedra junto dele, e depois, dando um salto, desapareceu no matagal. António levantou a pedra, examinou-a por todos os lados, para ver que propriedade ou virtude ela teria. Para isto foi ter com um velho, afamado pela sua habilidade em decifrar o que diziam os astros. Este, assim que viu a pedra, ofereceu-lhe por ela uma grande quantia. António respondeu-lhe que não queria vender, mas simplesmente saber se seria boa.
O velho respondeu:
– São três as virtudes desta pedra: abundância contínua, alegria imperturbável, e luz sem trevas. Se alguém ta comprar por menos dinheiro que vale, tornará imediatamente para a tua mão.
António ficou muito contente com esta resposta, agradeceu ao velho da ciência maravilhosa, e correu a contar à mulher a sua felicidade. Como se imagina, graças à virtude da famosa pedra, não lhe faltaram daí em diante, nem honras, nem riquezas.
Tendo chegado aos ouvidos do rei a notícia destas prosperidades, mandou chamar o António, e mostrou-lhe desejos de adquirir o precioso talismã.
O António, vendo que semelhante desejo era uma ordem, respondeu:
– Devo prevenir a Vossa Majestade, de que se esta pedra me não for paga pelo que vale, tornará ela mesma para o meu poder.
– Descansa, hei-de pagar-ta bem, disse o rei.
E mandou-lhe dar trinta mil libras de ouro. No dia seguinte de manhã, o António achou outra vez a pedra em cima da mesa; e a mulher sabendo isto, disse-lhe:
– Torna a levá-la ao rei imediatamente; não vá ele persuadir-se de que lha furtaste.
O nosso homem seguiu este conselho, e, quando chegou à presença de sua majestade, pediu-lhe que lhe dissesse onde tinha guardado a pedra preciosa.
– Mandei-a meter com todo o cuidado dentro de um cofre de ferro, fechado com sete chaves, disse o rei.
O António mostrou-lhe então a jóia preciosa, e o rei ficou extraordinariamente espantado, e quis saber como ele tinha adquirido semelhante tesouro.
António contou-lhe tudo o que tinha havido, a ingratidão do governador e o reconhecimento dos animais ferozes. O rei indignado, mandou chamar o seu intendente, e disse-lhe:
– Homem perverso, com justo motivo te puseram o nome de Ingratidão, porque és falso e mais pérfido que os animais ferozes, e pagaste com o mal o bem que te fizeram. Mas justiça será feita. Dou ao António as tuas honras e os teus bens, e a ti hoje mesmo o castigo de seres enforcado.
Admiraram todos a sentença do rei, e o António desempenhou as suas altas funções com tanta sabedoria e bondade, que depois da morte do rei foi escolhido para o substituir, e reinou pacificamente durante longos anos gloriosos.
Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.
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