Felicidade é a gente poder olhar para trás e encontrar esse vago mundo em “sol menor” que se chama infância. Adivinhação da vida. Bem sei que, com muita gente, acontece essa coisa estranha: torna-se adulto sem ter sido criança. Ou, o que é pior: ter sido criança sem ter tido infância.
A infância, para mim, não é apenas e simplesmente uma idade, mas justamente aquele mundo de pequeninas coisas que tornam inconfundível na lembrança um tempo de alegria, um tempo em que conhecemos a felicidade sem ao menos nos apercebermos dela.
Uma vez escrevi:
“Infância mesmo
a gente só pode ter
depois de crescer.
Porque antes
a gente não sabe.”
Não é uma pena que a gente só descubra a infância depois que ela passou? Que ela seja como um sonho de que só temos consciência quando acordamos, já adultos? Ah, se pudéssemos retornar o sonho, tão próximo e tão distante, interrompido pela vida, para revive-lo plenamente, com a consciência, com os sentidos despertos.
Ocorrem-me agora aqueles versos:
“Mamãe - palavra azul, cor da distancia,
quem não pode algum dia pronunciá-la,/
nasceu, cresceu... mas nunca teve infância...”
Mas não quero referir-me somente aos que não conheceram seus pais, os que nasceram órfãos, os que nunca souberam o que significa um lar, mas aos que não tiveram a oportunidade de experimentar tantas e infinitas alegrias colhidas com liberdade e amor.
Os que nunca souberam pronunciar a palavra infância com todas as suas letras; não tiveram companheiros de aventuras; não sabem o sentido de coisas simples e inesquecíveis como bolas de gude, piões, papagaios, balões... Sou um homem feliz porque tive infância. E quantas vezes tenho fugido para ela, tentando reabastecer o coração de esperanças e ilusões. Sim: posso encontra-la viva, intensa, apenas volto o rosto, em cada curva da lembrança.
Por isso tenho escrito sobre suas recordações e sobre a sua eterna presença. Releio outro poema, ainda inédito:
“Ah, a infância, esse país de lenda
sem a ameaça da morte.”
Me lembro da minha infância: trago-a intacta dentro de mim, posso quase toca-la com as mãos. Nela fui rei e moleque. Ficaram em meu corpo suas marcas e cicatrizes e me orgulho delas como um combatente de suas medalhas. Cada uma tem uma história, encerra uma aventura. Vivi todos os seus riscos, junto aos companheiros. Ainda ouço a voz de minha mãe me repreendendo, quando voltava para casa:
- Já não disse que não quero você com aqueles moleques?
E quantas vezes ouvi também outras mães chamando por seus filhos e repreendendo-os com as mesmas palavras.
Me lembro de minha infância. Esbocei dela dois pequenos retratos no livro. A Outra Face. Um, com oito a dez anos, em Rio Branco no Acre, garoto solto, de beira-rio (sem o lirismo casiminiano), tomando banho nos igarapés, tirando alfenim na engenhoca, comendo cacau maduro na floresta; outro dos 11 aos 15 anos, aqui no Rio, em Botafogo, metido em “peladas”, e pescarias nas pedras atrás do morro da Viúva.
Fui rico de infância: tive uma, no interior, livre, em contato com a natureza, aprendendo com os bichos e as coisas; outra, na cidade grande, já sabido apavorando as tias, desencaminhando os primos; capitão de moleques.
O velho rio é a moldura da primeira, sublinha a sua paisagem. Pergunto por ele num poema ainda por publicar:
“Onde estás, rio Acre, de Rio Branco,
rio vermelho que o tempo azulou,
que corres para a distancia
e que foges de mim?
Rio Acre da minha infância
que sempre vais
de onde eu vim...”
No livro Amo! há outras reminiscências, em tantas perguntas:
“Onde estão aqueles olhos cheios de desejos puros
e que mesmo rebeldes
olhavam para os céus?
E aquela alma inquieta, como os caminhos
nos campos, os varadouros
e os igarapés alegres da floresta?
E aqueles lábios que não conheciam o sabor dos beijos
mas mordiam os bagos branquinhos e doces de ingá
e a polpa suculenta dos cajus?
Onde está o meu primeiro amor
a menina de cabelos negros
e de olhos da cor do rio
que nunca será esquecida?”
E a resposta inexorável:
“O tempo ladrão roubou/ de parceria com a vida...”
Me lembro de tudo. E quero fixar nesta página os traços do retrato mais distante, que ficou no Acre. Primeiro, a paisagem: a casa grande, coberta de zinco, com um l argo alpendre aberto para as mangueiras, cercada pelo milharal. E meu pai:
O “velho” pigarreando
de chinela, de pijama,
despacha papéis na sala.
O anspeçada no alpendre
o milharal com penachos,
as saúvas carregando
como fardos, grãos de milho;
arma o tempo, baixa o tempo,
barrica cheia entornando
cantando embaixo da calha.
Que bom o banho na chuva!
Depois a visão do engenho:
Tempo bom! Engenho rude
boi rodando, boi rodando,
- que pena no olhar do boi!
Moenda geme sozinha,
garapa sempre escorrendo,
tachada de mel virando
rapadura se fazendo,
cana raspada prontinha
alfenim branquinho, puro
que nem o sonho de Eudóxia.
Ao mesmo tempo, as recordações do grupo Escolar 7 de Setembro, primeira escola, curso primário da vida:
Festa no Grupo Escolar:
eu, apache, ela, duquesa,
pulseirinha feito cobra
que o preso fez na cadeia,
tem meu nome, o nome dela,
- primeira algema de amor.
E a vida livre:
“Saguaçu voa na mata
baladeira estica, estica,
pedra parte, não vem mais.”
Lição de coisas:
“O touro
e a vaca pastam no campo;
o cavalo e a égua cruzam
nos terrenos da Intendência
à vista de D.Zefa
e do padre Bernardeli.
A molecada faz roda
seu padre faz que não vê.”
E a festa na vila, a “chata”que apitava lá em baixo, na curva do rio, junto da cadeia, anunciando a civilização.
“Sino tocando, tocando,
foguete no ar estalando
vestido novo, de seda,
chata trouxe de Manaus;
cara pintada, cabelo
com fita grande, parece
que borboleta pousou
na cabeça da Nininha.”
Roupa branca, meia branca,
camisa branca, sapato
branco, tudo branco,
parece até comunhão
mas não é, é festa só.
Meu Deus, quanta coisa, quanta
coisa mesmo se passou.
Será que isto tudo é meu
ou foi alguém que contou?
Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969
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