sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Nunca Se Chega a Paris a Primeira Vez)


“Ton souvenir em moi luit comme um ostensoir!”
(Baudelaire)


Como homem e como poeta vou carregando um pequeno drama: conheci Paris muito cedo, com dezoito anos, e receio revê-la tarde demais. Há idade para se conhecer Paris, como há idade, por exemplo, para se beber. Muito jovens, não bebemos: apenas nos embriagamos; muito velhos, o fígado, “esse infame policial”, nos mantém temerosos, e já não podemos escalar os muros ao redor, ou tentar fugas ao encontro da vida e do sonho.

Na verdade, não conheci Paris; olhei-a apenas nos olhos. E, como é natural, a Paris que encontrei foi a do Folies Bergère, do Maison dês Nudistes, do velho Moulin Rouge, dos bares alegres, dos cafés mundanos se espraiando pelas largas calçadas dos boulevards.

Era uma mocidade em férias, um adolescente poeta brasileiro que fora a Portugal numa caravana de estudantes, e que, depois, se perdera pela Europa enquanto os seus colegas voltavam ao Brasil.

Lembro-me daquela noite em que saltei na Gare du Nord, vindo do Havre. De maleta em punho, antes de ir para o hotel, eu só pensava numa coisa: ver a Torre Eiffel. Queria me convencer de que aquilo era Paris, que não estava sonhando. E só quando descortinei do alto do Trocadero, no Champs de Mars, a sobra do seu vulto sobre o fundo iluminado da noite parisiense, me dei por satisfeito.

Mas operou-se, então, em mim, uma repentina transformação, A ânsia da expectativa, do encantamento, transmudou-se numa tranqüila emoção de reconhecimento. De repente, percebi que nunca se chega a Paris pela primeira vez. Eu já tinha estado ali, certamente - quando, não sabia, - e aquelas ruas, aqueles monumentos, aquela paisagem, tudo me era familiar. Não conseguia olhar com olhos de inédito, nem experimentar a emoção do forasteiro diante de um lugar desconhecido. E a impressão iria confirmar-se depois, com mais vagar, enquanto sobrevoava Paris, seus boulevards, seus teatros, cabarés e lugares pitorescos. Era como se estivesse retornando a uma cidade de onde partira na infância, talvez. Estava revendo Paris.

De repente, retocava a paisagem esbatida com nova presença. Eu já passara antes por aqueles vendedores de livros e gravuras, com seus mostruários debruçados sobre o Sena; aquela pesada Notre Dame, povoada de história e de lendas, com seus nichos de pedra e seus apóstolos, com seu pequeno jardim e seus pombos, me parecia tão reconhecida como a igrejinha de S. Sebastião, se pudesse revê-la, nas barrancas do rio Acre; aquelas ruas do Quartier Latin, pululando de estudantes, e Montmartre, e Pigale, com seus cabarés, seus bares e cafés literários, eram um mundo que vinha à tona de regiões imponderáveis.

Poderia cruzar em Montmartre por La Goulue ou por Jane Avril, vindas do Can-Can, ou das pinturas de Toulouse Lautrec; encontrar no Quartier Latin os estudantes pobres e as costureiras românticas de La Bohème...

Ninguém chega a Paris pela primeira vez. É impossível. Todos nós nascemos, vivemos, amamos, morremos em Paris em infinitas encarnações. Nélson Rodrigues diria que o abominável Homem das Neves, o mais branco zulu africano, ou o mais frígido esquimó da Groelândia morreu de amores por Paris sem saber. Como o mar, como o céu, como o sol, Paris está em toda parte: não é apenas uma referencia geográfica, ou mais uma cidade. Amá-la não desnacionaliza, antes, amplia o nosso amor até os limites do universal. O mais ferrenho patriota, ao lado do Hino Nacional de sua terra, entoa, no coração, a sua Marselhesa. Paris está em nosso sangue, no nosso espírito, na infância, na adolescência, em todas as idades. É História, nos livros escolares - Joana dÁrc, Maria Antonieta, Napoleão,- romance e ficção, em Júlio Verne, Alexandre Dumas, Victor Hugo.

Literariamente, moramos em Paris. Clássicos, românticos, parnasianos, simbolistas, foram vizinhos e companheiros de seus mestres: Ronsard, Musset, Verlaine, Baudelaire. Somos, por isso, o Petit Trianon.

É como se o salão de Nodier abrisse suas janelas, não para a rua Sully e a ilha de Louvier, mas para a Rua do Ouvidor, ou para a Glória... E já que o curso destas considerações me levou aos Nodier, lembro-me daquela que foi a namorada de três poetas, a musa do romantismo francês, e a quem foram dedicadas as mais belas poesias de amor: Marie Nodier.

Uma dessas poesias, um soneto, escreveu-o um poeta menor, então quase desconhecido, Félix Arvers, no mesmo álbum em que figuram originais autografados de Musset, Victor Hugo, Vigny, Lamartine, Saint-Beuve. A França vivia seu apogeu romântico.

A melhor homenagem a Paris -a cidade luz dos turistas - a capital do amor e da poesia, para os amantes e poetas de todo mundo, será fechar esta página com o mais célebre soneto de amor de todas as literaturas. Traduzi-o, ainda agora, para a coletânea “Os mais belos sonetos que o Amor inspirou”, volume III:

SONETO DE ARVERS

Na alma tenho um segredo e na vida um mistério
um grande e eterno amor, num momento irrompido;
é um mal sem esperança, e assim, profundo e sério,
aquela que o causou nem sabe que é nascido.
Azar! Passo a seu lado, em vão, despercebido,
portanto, sempre só, sem nenhum refrigério,
e hei de chegar ao fim, à campa, ao cemitério,
nada ousando pedir ou tendo recebido.

E ela que o céu criou boa e terna, hei de ver
seu caminho a seguir, e a ouvir, sem entender,
o murmúrio de amor que a seus pés se erguerá;

a um austero dever, piedosa, se desvela,
e dirá quando ler meus versos cheios dela:
- “Que mulher será essa?”... e não compreenderá.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

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