quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

J. G. De Araújo Jorge (O Primeiro Amor)


Somos simples metades: biológica e sentimentalmente. Como as moedas, temos duas faces: cara e coroa. No singular, não existimos, não podemos continuar. Até porque, surgimos de dois,trazendo o destino de "Ser", no plural: não "sou", não "és" Somos. Ora, a vida.

"Matemática esquisita
que das suas sempre faz,
ao final de nove meses
somando dois, multiplica,
e ao invés de dois, às vezes,
são três, são quatro, e até mais."


Estou pensando estas coisas, quando me perguntam o que acho do primeiro amor. É uma entrevista com colegiais. Sim, eu já escrevi sobre o primeiro amor. Também já acreditei que existia, ou que existiu. Ficou naquela visão trêmula como as imagens no espelho dos igarapés da infância. Sobreviveu em lembranças concêntricas, que se ampliam e diluem infinítamente no coração, quando a pedrinha de um fato cai sobre a superfície das águas do igapó da memória.

"Onde está o meu primeira amor
a menina morena de cabelos negros
e de olhos da cor do rio
que nunca será esquecida?

O tempo ladrão roubou
de parceria com a vida."


Sim, acreditei nele, como toda gente. E porque apascento versos desde menino, como um nômade pastor, lembrei-o muitas vezes:

"O meu amor primeiro, o meu primeiro amor
foi anseio, e viveu a incerteza de uma ânsia;
botão que não se abriu, que não chegou a flor
um pedaço de céu quase limpo e sem cor
perdido nos senfins azuis da minha infância..."

Andei com ele por aí:

"Braços dados, nós dois vamos sozinhos,
o teu olhar de encantamento espraias
pelas curvas e sombras dos caminhos,
debruados de jasmins e samambaias. . ."


E por isso, também identifiquei-me com os casais em tempo de sonho:

"Nada tolda os seus olhos, nem um véu...
Andam sem ver os lados, vendo o fim,
e o fim que vêem é o azul do céu...

Ah, se a gente, tal como os namorados
pudesse eternamente andar assim
pela vida, a sonhar de braços dados..."


Mas fui vivendo, como toda gente, ou como quase toda gente. E um dia, quando relia as provas dos meus versos, comecei a perceber que me enganara, como toda gente, ou como quase toda gente. O primeiro amor não é o primeiro amor.

Ou pelo menos o que chamamos de primeiro amor. Deviam ter outro nome aquelas emoções que esvoaçaram sem deixar pegadas, quase e apenas como nuvens brancas no limbo do coração; aquelas lembranças de mãos dadas, assexuadas, beijando só com os olhos, olhando sem nada ver. Se, na realidade, nós nem nos apercebemos dele ! E só o encontramos quando o tivemos perdido, e há tanto tempo que é quase impossível reconstituí-lo!

E então a pergunta: afinal que é o primeiro amor? E a conclusão que só a vida nos pode dar: é aquele amor completo em todas as direções, dos pés a cabeça, não apenas no céu, mas na terra, nas nuvens e nos ventos, nas raizes e na solidão. Quando se beija não apenas com os lábios, mas com todos os sentidos, quando tudo se vê, mesmo de olhos fechados, e se sofre, até com o pensamento. Para que possa ser perfeito, Buda aconselhou: não deves pecar. Os cristãos repetiram como um eco: guarda a castidade. Tolice, porque estamos sempre puros diante do amor, e quando ele chega, é sempre novo, é sempre o primeiro.

Há infinitos primeiros amores. Ama-se tantas vezes a primeira vez! Renascemos em suas ânsias e toda vez que o perdemos, ficamos à deriva em nosso destino. Felizes, ou infelizes - que importa? - os que encontram o primeiro amor. Porque há homens também que passam a vida inteira amando, de amor em amor, e não amam nunca a primeira vez. Bom é amar a primeira vez muitas vezes, tantas quantas a vida inventar, e o coração puder! Há tanta coisa por aí se chamando de amor que de amor nada tem, não justifica a dor e a alegria, não revela nenhum mistério; de nenhum milagre é capaz !

Ah, o primeiro amor! Às vezes não nos chega propriamente num dia, mas durante a vida toda, em que o vamos construindo de tantas e insignificantes grandezas, sem mesmo tomarmos conhecimento de sua importância. E entretanto, é tudo. Basta que, de repente, vacile, nos ameace, e falta-nos a luz, o ar!

Outras vezes, irrompe como um pé-de-vento abrindo uma janela, abrindo-a ou fechando-a instantaneamente, e nos aparece como algo que emergiu da sombra em que o velávamos, subitamente belo e iluminado.

Ou, ainda, pode explodir como uma granada, e nos cegar até, e nos atordoar. E caímos nele, feridos mortalmente, sentindo-o escorrer quente no corpo, doendo de tanta alegria!

Muitas ocasiões, pensamos encontrá-lo, quando na realidade saltamos sobre ele, e caímos adiante, em duro leito de pó, onde se espoja. Não era amor, mas sua filha bastarda: a paixão. Como surge desaparece, em disparada - potro selvagem em pasto aberto. Mas, então, que é o amor, esse que é sempre o primeiro, múltiplo e infinito como o mar? Dele tentei dizer:

"E de repente. . . (parece incrível)
o tudo de antes não existe mais
não interessa . . .

Um novo amor, amor
é sempre um mundo novo
que começa.

Não importa o percorrido
o conquistado,
ou o que antes foi desejado
por teu marinheiro coração:
um novo amor
começa tudo de chão.

É como se abrisses os olhos para a vida
naquele instante,
como se para trás nada tivesse havido.
Nasces com um novo amor! E então reviverás
o mistério, deslumbrante
do que há de acontecer, como se nunca tivesse
acontecido. . ."


Talvez seja aquela força indômita do coração que levou o poeta a penitencias como esta:

"Chegas. E de repente me pergunto
que amor é esse que existiu sem ti?
Que flores? Se não houve primavera. . .
Ah, nascemos agora, um para o outro,
e antes, não fomos mais que vã espera. . ."


Ou a esta confissão final:

"Éramos apenas dois bichos...
(ou deuses?)
...Nem podia ser mesmo humana
tão louca felicidade..."


Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

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